Guerra às drogas, imperialismo e saúde pública

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Por Rômulo Caires, via Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia

Foto: Danilo Verpa/Folhapress

IMPERIALISMO, SAÚDE PÚBLICA E MILITARIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA

Em 1971, o então presidente dos EUA, Richard Nixon, declarou que o uso e o abuso de drogas ilegais era o “inimigo público número um” do país e conclamava o Congresso norte-americano por maiores investimentos e intervenções para sanar o problema. Desde então, o termo “Guerra às Drogas” tem sido aplicado a um conjunto de ações que relacionam proibição de drogas, ajuda e intervenção militar para impedir ou reduzir a produção e comercialização de determinadas substâncias psicoativas.

O primeiro aspecto que devemos considerar para compreender a gênese da “Guerra às Drogas” é que o consumo de substâncias psicoativas nem sempre foi regulado institucionalmente, tampouco as formas de regulação passaram necessariamente pela intervenção médica. O uso de substâncias psicoativas atravessa a história da humanidade e muitos foram os modos de “controle social” deste uso. Foi apenas no início do século XX que ele se tornou um “problema médico”.

O marco inaugural da regulação do uso de substâncias psicoativas como uma questão médica, ou mais precisamente como uma questão de “saúde
pública”, foi a Conferência de Haia de 1912. Não havia ainda proibição da produção, venda e consumo de qualquer substância, mas a formulação de que “o uso não medicinal [de drogas] é patológico em si”. Com essa conferência se desenvolveu uma tendência progressiva de recriminação do “uso recreativo” de substâncias psicoativas e a defesa estrita do “uso médico”.

Ganhava força a imagem de que substâncias como o ópio e a morfina desencadeavam problemas de saúde pública e que necessitavam de controle rigoroso. Nesta época, já existia em circulação a vinculação entre abuso de substâncias psicoativas e a presença de determinados grupos de imigrantes e/ou minorias étnicas. Tal vinculação, de corte xenófobo e racista, relacionava, por exemplo, uso de maconha nos EUA com imigrantes hispânicos, ópio com chineses, cocaína com negros e o álcool com irlandeses e italianos. No Brasil, o uso de maconha já era associado aos negros praticantes de capoeira desde o século XIX.

A aprovação da Lei Seca nos EUA em 1919 pode ser considerada a primeira grande vitória dos adeptos da criminalização e repressão do uso de drogas, tornando ilegal a produção, comércio e consumo de álcool. Apesar de revogada em 1933, a Lei Seca deixou como legado o fortalecimento de grupos ilegais ligados ao tráfico e a extensão do modelo proibicionista para uma série de outras substâncias, como a maconha e a cocaína. Notemos
que há uma certa ordem lógica que precede o proibicionismo: primeiro tratou-se de moralizar o uso de substâncias psicoativas, em seguida tratou-se de estabelecer as condições de uso consideradas “higiênicas” em contraste com o “uso recreativo”. Posteriormente, com a proibição total de um conjunto de drogas psicoativas, é que a questão sanitária se transformou em problema de segurança pública, majoritariamente fundamentado em concepções racistas, que demonizavam aqueles que usavam e/ou negociavam tais substâncias.

O proibicionismo se generalizava e ao mesmo tempo já demonstrava que o suposto objetivo de impedir a venda e o consumo de drogas ilícitas não se efetivava. Ao contrário, apenas impulsionou que tais ações fossem realizadas por meios às margens da lei. Assim, se a “questão das drogas” sequer era um problema antes do século XX, passou a ser considerada, desde então, como uma verdadeira ameaça às sociedades “civilizadas”. É muito importante notarmos, como já pudemos demonstrar em textos anteriores, que a Medicina e as práticas de saúde não são neutras e a suas intervenções na chamada “questão das drogas” contribuiu decisivamente para racializar, naturalizar e transformar problemas complexos em “problemas médicos”, dando os contornos “científicos” das práticas proibicionistas.

Após a Segunda Guerra Mundial, temos uma mutação do fenômeno que analisamos. Houve um grande aumento da demanda por drogas ilícitas e uma verdadeira internacionalização dos mecanismos de produção e distribuição. Ao mesmo tempo, foi construída uma espécie de agenda internacional da diplomacia proibicionista, restringindo cada vez mais o número de substâncias consideradas legais, fortalecendo o controle daquelas com algum uso medicinal e banindo todas as drogas incompatíveis com os parâmetros de saúde elencados. Não será objeto deste artigo a discussão aprofundada dos debates médicos em torno do uso de substâncias psicoativas. Porém, é necessário frisar, como já foi dito anteriormente, que muito mais do que uma autêntica preocupação com a regulação e criação de modos saudáveis para usufruir tais substâncias, as operações visavam principalmente agrupamentos sociais considerados “indesejáveis” no jogo geopolítico que se desenhava.

Voltamos então aos anos de 1970 e a consolidação da chamada “Guerra às Drogas”. Se, após a Segunda Guerra Mundial, os EUA emergiram como a maior potência econômica e militar global, transformando-se em verdadeiros “xerifes” do mundo, os anos iniciais da década de 1970 traziam em seu bojo a deflagração de uma enorme crise econômica mundial. Para manter sua estrutura de dominação em voga, garantir o escoamento da gigantesca produção militar e exportar os conflitos internos para longe de seu território, os EUA ampliaram o que alguns autores chamaram de “imperialismo dos direitos humanos”. Com o pretexto de levar democracia, os EUA intensificaram as intervenções em outros países, contribuindo com uma verdadeira generalização da militarização da vida cotidiana. Se o fortalecimento dos grupos armados ilegais era uma consequência imanente do proibicionismo, os EUA ampliaram o leque de estigmas sociais, criando a figura do terrorista e do narcotraficante.

A partir de Nixon assistimos a associação cada vez mais frequente entre o imaginário do que seriam os guerrilheiros que lutavam contra as ditaduras sangrentas do Cone Sul ou contra invasões externas e a ideia de “narcotraficante” e “terrorista”. Um exemplo notório é o caso da Colômbia, que se tornou um grande polo mundial de produção de cocaína, sendo um país com enormes desigualdades e altos índices de violência. Justamente aqueles opositores ao ordenamento social colombiano, que tem amplo apoio dos EUA, passaram a ser vinculados aos “narcotraficantes”, e o pretexto da Guerra às Drogas passou a ser utilizado para militarizar cada vez mais a vida cotidiana na Colômbia e ampliar os graus de violência daquele país. O mesmo fenômeno se repete nos países caribenhos e, no Brasil, a Guerra às Drogas se tornou o suporte jurídico-político do genocídio dos negros e do encarceramento em massa dos pobres e oprimidos.

Nesse sentido, assistimos a consolidação de uma política de controle social do uso de drogas que se insere diretamente na dinâmica da luta de classes em nível mundial. A partir da construção de determinadas concepções de saúde pública, a Medicina e demais práticas de saúde forneceram o arcabouço “científico” para a justificação do proibicionismo ao redor do globo. A Guerra às Drogas nasce como uma espécie de guia geral para a salvação da civilização ocidental, trazendo por trás de si as marcas do racismo e da eugenia. Quando aqueles que acertadamente denunciam os interesses genocidas da Guerra às Drogas defendem que o uso de substâncias psicoativas seja uma questão de “saúde pública”, devemos ir além e perguntar: mas que tipo de saúde pública? A saúde pública que nos interessa certamente não será aquela que transformará problemas sociais tão complexos em “problemas médicos”.

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