Vai Passar, Apesar de Vocês. Sem Anistia!

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Por Leonardo Silva Andrada

Há alguma possibilidade de avanço efetivo, como balanço final da situação a que o bolsonarismo nos empurrou? É razoável esperar algo como uma efetiva desarticulação da rede neofascista, consolidada durante o governo encerrado no dia 31 de dezembro último, ou mesmo alterações ainda mais incisivas na estrutura de dominação autocrática da burguesia brasileira?

Os dados do cartão corporativo, cujo sigilo foi removido essa semana, indicam que a família Bolsonaro se valeu dos recursos públicos da maneira rastaquera em que tem expertise, para consolidar o movimento neofascista em território nacional. Bolsonaro nunca foi envolvido nos grandes esquemas, como gostava de alardear, porque ao longo de quase três décadas de legislativo, todos os que poderiam absorvê-lo em alguma rede de descaminhos de verba pública sabiam muito bem de quem se tratava. Incluí-lo no negócio era um risco elevado demais e muito provavelmente o inepto tornaria a todos personagens em uma grande matéria no Fantástico.

Foi perceptível, desde o primeiro pronunciamento, que o ex-presidente não consegue articular uma frase completa, com sujeito verbo e predicado, sem soluçar para ganhar fôlego. A sua dificuldade para abstração provoca tal efeito, como também limita sua capacidade para elaborar planos mais sofisticados do que superfaturar gasolina e sorvete. Foi com esse tipo de desvio da verba pública à disposição, que ele foi construindo uma motociata no Mato Grosso, uma jetskiata no litoral paulista, um rodeio no Tocantins, alguma outra manifestação kitsch de apoio em qualquer outro bolsão do neoconservadorismo brasileiro pelo país afora, deixando em cada pouso muitas “pontas”, segundo o jargão de Brasília.

A rede de apoio foi constituída, mas os limites à capacidade de elaboração permaneceram. Um movimento que tem Jair como líder e Carlos como ideólogo não tem condições estruturais de perdurar, a não ser enquanto sirvam a propósitos mais sólidos (e com mais recursos de poder). Jamais perceberam: seu maior mérito foi ser a única alternativa à mão para concluir a agenda do golpe que Michel Temer não dispôs de tempo hábil para concluir. O tripé teto de gastos – reforma trabalhista – reforma da previdência estava manco, e a crise de representação das frações dominantes é mais duradoura do que aparenta na superfície.

Com a leitura deturpada e deficiente da realidade, só se elaboram linhas políticas ruins. A história das más escolhas informadas por análises de conjuntura ruins, triunfalistas ou liquidacionistas, é extensa e dolorosa. O Neofascismo brasileiro, incapaz de enxergar o processo com acuidade, deu um passo muito maior do que permitiam seus cambitos. O que se pensava como movimento tático de emparedamento do governo tornou-se um catalisador de força contrária.

A manutenção dos acampamentos patrióticos e seu apogeu, em uma tomada de assalto da Bastilha e La Moneda indignamente mescladas, serviriam a múltiplas necessidades da dinâmica política no novo governo. No curto prazo, atenderia aos interesses chantagistas da família Bolsonaro, como cacife elevado na anistia aos seus crimes. Durante o andamento do mandato de Lula, serviria como permanente ameaça de mobilização e tumulto, como pressão para evitar avanços que perturbem o humor do mercado. Serviria, inclusive, a setores que compõem a frente amplíssima transposta para o governo, como a ministra que deixou claro em sua posse que mantém uma orientação econômica divergente do PT e do ministro da Fazenda.

A tentativa de abraçar o mundo com braços muito curtos empurrou o judiciário para um acordo com o novo executivo, neutralizando, em larga medida, o tremendo capital político constituído pelo bloco neofascista nas eleições legislativas recém concluídas. Além de articular rápida resposta, descartando uma GLO que traria o golpismo das FFAA para o olho do furacão, Lula soube capturar o apoio monolítico dos 27 governadores, aproveitando que dissidências na demonstração de apoio, nesse momento, inevitavelmente contariam como apoio ao terror golpista.

Com uma composição de forças dessa amplitude, o presidente está bem menos frágil diante de eventual reação corporativa das Forças Armadas. Essa condição será aproveitada para sair da defensiva no trato com os armados? Considerando o histórico da República, são compreensíveis as opiniões que não criam expectativas de que esse acúmulo conduza a uma lenta e progressiva transformação da composição do oficialato brasileiro; mas é forçoso notar: raras vezes se apresentou uma oportunidade histórica como essa. O que leva à questão que abriu a exposição: será possível orientar o sentido do desfecho desse processo, buscando avanço concreto, do ponto de vista das lutas populares e da superação das estruturas cristalizadas pela via prussiana colonial? Há no horizonte a possibilidade de uma intervenção na conjuntura, tão incisiva que acabe dialeticamente se tornando alteração na estrutura?

É preciso avaliar adequadamente as oportunidades e possibilidades, extrair a linha política mais adequada, e ponderar nossas capacidades.

Da institucionalidade, o que se pode esperar é uma tentativa de desarticulação da rede política e financeira estruturada em torno da família Bolsonaro, em uma simbiose entre executivo e judiciário, com ramificações no parlamento. É relevante que não desapareça do horizonte, pois as motivações desses atores passam longe dos interesses da classe trabalhadora. Cada polo de poder tem sua própria agenda, compatível com sua condição de ator institucional, e os interesses populares vão alguns marcadores adiante.

Particularmente no caso da ponta de lança desse processo de desestruturação do bolsonarismo, o poder que ora é catalisado em Alexandre de Moraes não vai simplesmente evanescer. O tratamento que vem recebendo dos veículos de mídia desde a campanha eleitoral, intensificado depois da arruaça do 8 de janeiro, parece indicar que as frações dominantes estão testando a adequação do ministro do supremo ao papel de um novo Moro. Seria curiosamente a reafirmação da crise de representação das frações dominantes. Teriam que terceirizar, mais uma vez, o exercício da dominação, delegada a um agente político de frações secundárias do bloco histórico no poder.

Como, de resto, já tinha sido o caso do Jair. O agitador neofascista tinha no lumpesinato legislativo uma casta. Em uma longeva carreira parlamentar, nunca lhe foi dada a condição para alguma mobilidade ascendente. Suas dificuldades cognitivas certamente têm um peso nessa inércia cármica. Um representante do baixo oficialato de corte agitativo, uma linhagem histórica em nossas FFAA, e não mais que isso. Os setores econômicos associados a seu governo, financiadores da caricata resistência patriótica nas rodovias e quartéis, refletem no conjunto burguês o mesmo tipo social que o apoia no congresso e na caserna. A sua base é recrutada em meio à burguesia delinquente do extrativismo ilegal (garimpo, madeira) e frações da agroexportação dependentes de desregulamentação do trabalho, da aniquilação de normas sanitárias, e mesmo da confusão legal nos limites das propriedades.

É certo que essa composição precisa ser complementada pelo varejo de pequenos e médios empresários, além de setores populares, todos cooptados ideologicamente pelo neofascismo. Nas três décadas em que foi financiada pela vida legislativa, a família Bolsonaro não foi capaz de se oferecer como empregados das frações mais destacadas do capital. Ficaram relegados aos setores menos prestigiosos, porque menos poderosos, até a oportunidade de gerenciar o capitalismo brasileiro em crise, chance de ouro perdida em virtude das severas limitações operacionais da gang.

Alexandre de Moraes, atualmente portador de legitimidade para qualquer gesto de controle, também não alcança as mais elevadas arenas institucionais, a partir dos setores hegemônicos da coalizão burguesa. Foi nomeado para o STF por Michel Temer, nome ligado a certa burguesia comercial paulista, articulador de facções organizadas no aparelho estatal desde que a Nova República era projeto. Certamente conectado com os demais ramos, e portando mentalidade menos embotada, foi capaz de amealhar prestígio com estes, ao longo de uma carreira duradoura. O relevante, nesse aspecto, é notar que o vice mdbista de Dilma não é Febraban e nem Fiesp, apesar de sua capacidade política para manter laços estreitos com estes e demais polos de poder.

O que houve com as frações hegemônicas da burguesia brasileira? Vive, há tempos, uma verdadeira crise de representação? Se este é mesmo um dos aspectos que abre a brecha histórica para o fascismo, como já pontuaram autores com estofo, então o ciclo neofascista brasileiro, antes de estar se esgotando, estaria apenas se renovando? Quais as chances de um avanço, como balanço desse processo que ora vivemos?

Não virá da institucionalidade, está claro, o impulso que aponte para um salto qualitativo a partir da luta de classes em nossa quadra histórica. Dependemos da força popular mobilizada e politizada em sua radicalidade, para aproveitar a oportunidade implícita que o passo em falso do bolsonarismo nos proporciona. As organizações populares precisam encontrar o programa político e a forma de comunicá-lo, para galvanizar o movimento de massas capaz de sustentar essa intervenção efetiva.

Não podemos marcar passo, e muito menos apostar na imobilidade e inércia, para evitar fricções, como já anunciam alguns setores. É necessário tensionar, do contrário um novo 1979 servirá apenas para perpetuar uma vez mais a impunidade que alimenta os impulsos golpistas terroristas da corporação fardada. A reação rápida e decidida, com expressivo apoio imediato, à manifestação mais crua dos intentos direitistas, indica o caminho da aglutinação popular.

A palavra de ordem sem anistia deve ser levada às últimas consequências, envolvendo os representantes do capital e da institucionalidade, que perpetraram os mais variados crimes em todas as esferas durante o governo Bolsonaro e nessa primeira semana de governo Lula. É essa a oportunidade que o momento histórico apresenta como possibilidade de luta, capaz de envolver setores amplos. A luta imediata pela punição dos crimes de Estado, dos crimes comuns e de toda a barbárie que foi imposta ao povo brasileiro pode servir para transformar um dos legados do golpe burgo-militar de 64 que permanece mais resistente, que é a hegemonia incontestada da formação ideológica entreguista da Escola Superior de Guerra.

Se conquistarmos vitórias historicamente tão expressivas como essa, o julgamento de Bolsonaro e seu entorno, a aplicação da lei a figuras do grande capital, teremos um ganho político valioso para manter o movimento ativo e atuante, com capacidade para a permanente luta voltada a neutralizar os elementos mais retrógrados da composição eclética desse governo. As organizações populares dependem dessa força para arrancar a revogação das reformas trabalhista e previdenciária. Os momentos em que a luta de classes se agudiza oferecem oportunidades para saltos qualitativos; é preciso intervir adequadamente para poder aproveitá-las.

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