O projeto neoliberal para a educação no RS

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A Portaria 305/2022 e o projeto neoliberal para a educação pública no Rio Grande do Sul

Por Ian Kelvin Mattos Costa

Em novembro de 2022 escrevi um breve texto expondo que, no dia 12 de setembro do ano passado, a prefeita de Pelotas baixou o decreto 6.640, por meio do qual cedia ao Poder Executivo do município o poder de escolha dos diretores das escolas municipais, passando por cima da participação comunitária e da gestão democrática das escolas públicas da cidade. A escolha do diretor escolar pelo Chefe do Poder Executivo é uma ofensa (além de ser inconstitucional). A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) afirma nos artigos 14 e 15 que os sistemas de ensino devem definir as próprias normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, assegurando às unidades escolares de educação básica e seus progressivos graus de autonomia pedagógica.

Mesmo sendo uma ação em nível municipal, expressa a política neoliberal avançando sobre a educação pública, com o objetivo de promover a ideologia burguesa, deteriorar o que resta de processos democráticos de inserção popular nas instituições públicas e consequentemente promover o processo de privatização.

Agora vamos sair do nível municipal e ir para o nível estadual: no dia 30 de dezembro de 2022, foi publicada pela Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul a Portaria 305/2022, que na prática desobriga a frequência mínima de 75% para aprovação nas escolas do estado. De acordo com essa portaria, passa a ser permitido aos estudantes que não obtiverem a frequência necessária realizarem avaliações que são chamadas de “Avaliações entre Períodos Letivos” e uma prova final que, somadas as notas e divididas por dois, precisa resultar numa média 5 para a aprovação, necessitando de uma avaliação para
cada componente na qual o educando não foi aprovado. Na mesma portaria, foi modificada a forma de avaliação das disciplinas Projeto de Vida, Protagonismo Juvenil e Estudos Orientados, do “Novo” Ensino Médio. Agora essas disciplinas passarão a ter avaliações por meio de parecer descritivo, facilitando a sua aprovação.

Além de flexibilizar e desobrigar a presença de disciplinas essenciais para a formação do sujeito – como Sociologia, História e Filosofia – fomenta-se o currículo precário e empobrecido, com as disciplinas de Projeto de Vida e Protagonismo Juvenil, imersas na ideologia “empreendedora” e meritocrática, representando o projeto de pauperismo brutal do pensar crítico que ainda resta (ou restava) do currículo. Essas “disciplinas” servem para naturalizar as relações de dominação, individualismo, mistificar as desigualdades e a exploração dos sujeitos. Ambas as disciplinas não possuem fundamentações teóricas, científicas e pedagógicas. Isso precisa ser retirado dos currículos urgentemente.

Questão de simples imaginação: qual criança ou jovem que, inserido numa vida empobrecida materialmente, sem acesso aos seus direitos, com moradia precária, ausência de saneamento básico e água, com insegurança alimentar desde que nasceu, abandonado pelas instituições públicas, pelas autoridades, imerso na violência doméstica e social muitas vezes praticada pelo próprio Estado através das forças de violência, conseguirá elaborar um projeto de vida com o professor na sala de aula? Qual criança ou jovem terá autonomia e consciência crítica necessária para elaborar um projeto de vida? Como estimular e dar perspectivas de vida e futuro para uma criança e adolescente com fome?

Os autores desses avanços neoliberais sabem muito bem que a elaboração dessas mudanças vai afetar profundamente o desenvolvimento dos filhos da classe trabalhadora. Assim, ou promovem a retirada destes das salas de aula, ou os condicionam à reprodução da ideologia, mistificando e naturalizando a realidade exploratória da sociedade burguesa.

Voltamos à Portaria 305/2022: afinal, o que está por trás da desobrigação da frequência mínima de 75%? Esta é uma medida neoliberal, primeiro feita para aparentar governança, mas principalmente para avançar com o projeto neoliberal de desmonte da educação pública para fomentar o setor privatista gradualmente. O propósito prático é diminuir o tempo de permanência dos alunos em séries e aumentar os índices de aprovação, aumentando o IDEB, assim como o mecanismo de aprovação automática nos primeiros anos do ensino fundamental. Aumentar os índices de avaliação permite que o Estado do Rio Grande do Sul receba mais recursos dos grupos e fundações privadas, que já fazem o famoso lobby através de grupos, dentre os quais há o senhor que acabou de sumir com 20 bilhões das Lojas Americanas.

No caso do Novo Ensino Médio, aumentar as aprovações dos alunos aparenta sucesso da reforma. Mas claro que o objetivo final não é a formação de sujeitos autônomos e prontos para escrever sua própria história com seu próprio punho. Primeiro, o aumento das aprovações através dessas flexibilização de mecanismos institucionais de avaliação gera uma falsa aparência de sucesso no processo. Estão aprovando vários alunos, são recordes de aprovação, claro. Mas e a essência do processo? E qual a função da educação? E a construção do conhecimento destes indivíduos? No que isso irá resultar? Estão formando sujeitos ricos, cultural, social e intelectualmente? Ou estão em processo avanço em séries, aprovação e formação, sujeitos mais alienados, mais imersos na ideologia e que obviamente servirão apenas para a reprodução de mão de obra na sociedade burguesa? Já temos as respostas para estes questionamentos, garanto.

Essa é uma prática de puro retrocesso para a classe trabalhadora. Uma medida como essa pode fortemente desestimular as crianças e jovens a irem para a escola, como bem facilitar que elas sejam impedidas de frequentar escolas com as quais as famílias “não concordem”, fomentando ainda mais e tornando práticas as pautas conservadoras do ensino domiciliar, por exemplo. A portaria 305/2022 também pode dar margem a abusos psicológicos, físicos e sexuais de crianças e jovens, assim como fomentar o próprio trabalho infantil, afinal a escola deixa de exercer os mecanismos de controle para que equipes diretivas
acionem as autoridades em casos irregulares.

Como os profissionais da educação irão perceber, identificar problemas de socialização gerados pelos vários tipos de violência
doméstica? Como irão detectar que a criança e o adolescente estão sendo obrigados a trabalhar ao invés de ter acesso ao seu direito à educação? Como irão acionar as autoridades, já que a frequência escolar está flexibilizada pelo Estado?

Vamos ao exercício de imaginação novamente: se uma criança ou adolescente de um local periférico ou mesmo rural, que já tem dificuldade de acessar a escola, pois é longe, não tem ônibus ou precisa ir em uma viagem de 2h ou 3h de barco até a escola, que já tem uma estrutura precária, quase sem professores, onde o processo longo e demorado de estudar em todas as séries muitas vezes pode não parecer (e muitas vezes realmente não é) “vantajoso” para a família desse sujeito.

As famílias brasileiras são historicamente constituídas como mão de obra barata, como sujeitos superexplorados e muitas vezes imersos na ideologia burguesa, reproduzindo o discurso de que são apenas mão de obra e isso não passa. Então, nesse sentido, para que o filho irá estudar? Se o avô não estudou, o pai não estudou, o moleque também não precisa, tem de trabalhar! Ou seja, será mais útil se este jovem promover algum tipo de renda imediata para o seio familiar, que normalmente imersa na pobreza material, com insegurança alimentar e demais precariedades. Estudar? É coisa de rico.

Se antes, com a obrigatoriedade de frequência e todos os mecanismos de controle, as crianças já são exploradas no meio rural, nas periferias e grandes centros, vendendo bala de goma e chicletes no sinal, imaginem flexibilizando a frequência nas escolas
públicas. No capitalismo, desde sua consolidação com a Revolução Industrial, a mão de obra infantil sempre foi alvo de exploração e o Estado burguês está sempre tentando avançar com todos os mecanismos de exploração da classe trabalhadora.

Precisamos combater os avanços do neoliberalismo. A flexibilização da frequência mínima de 75% nas escolas do estado é para aumentar o IDEB e permitir que o Estado receba mais investimento do setor privatista e o retroalimente, basicamente, permitindo o avanço do mercado educacional em detrimento da educação pública. Além disso, reforço aqui que a Lei de Diretrizes e Bases tem como princípio a necessidade de 75% de frequência para aprovação, tornando essa portaria inconstitucional, como citado anteriormente. Ela precisa ser revogada urgentemente, é um ataque à educação e vai na contramão do que precisamos para a escola pública.

Os grupos neoliberais estão avançando com sua ofensiva sobre a educação pública em todos os níveis institucionais: municípios, estados e federação. O atual ministro da educação (o agrônomo) Camilo Santana e o presidente Lula (PT) já anunciaram o reforço ao setor privado da educação, através de ProUni e FIES. Devemos pressionar a fim de que os representantes da esquerda se articulem contra esses avanços neoliberais, no município, no estado bem como em nível nacional. É preciso que a Assembleia Legislativa do Estado faça com que o governo revogue a portaria 305/2022, pois é um
retrocesso gigantesco para a educação pública do RS. Assim como o governo de Lula deve prioritariamente revogar a reforma do Novo Ensino Médio, seguido de uma reformulação de um Ensino Médio feita por educadores, cientistas, comunidade acadêmica, todos os movimentos democráticos que lutam pela educação pública, crítica, laica, emancipadora e não por grupos do mercado educacional.

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