A questão LGBT e as divergências no Movimento Comunista Internacional

Por Gabriel Landi Fazzio – membro do Comitê Central e do Comitê Regional-SP do PCB

“72) Defendemos a construção de um movimento LGBT que compreenda classe em seu sentido marxista, isto é, não de modo idealista. Em outras palavras, reivindicamos a heterogeneidade da classe trabalhadora e a articulação dos interesses particulares das LGBTs que em sua maioria constituem a classe trabalhadora. […]

73) Partindo da premissa de que a luta contra as opressões deve estar inserida na luta anticapitalista e anti-imperialista, devemos buscar construir um campo socialista revolucionário no movimento LGBT.”
XVI Congresso do PCB

Aspectos gerais da discussão

Os artigos recém-publicados dos camaradas Carlos Arthur [1] (citando o camarada turco Kemal Okuyan, do TKP) e Ivan Pinheiro [2] contribuíram para reavivar na literatura do movimento comunista brasileiro a discussão sobre uma série de questões de princípio (teórico-filosóficas e historiográficas, podemos dizer). Só por essa contribuição, ambos camaradas já merecem uma efusiva saudação – pois, como já indicava Lênin, sem literatura revolucionária comum não pode haver atividade revolucionária comum. Em seu artigo, o camarada Carlos Arthur se propõe a elencar aqueles que considera os cinco maiores desvios político-ideológicos que o Movimento Comunista Internacional deve enfrentar e superar no próximo período:

1) o etapismo estratégico;
2) o nacional–chauvinismo;
3) o doutrinarismo e a inflexibilidade tática;
4) a LGBTfobia e a transfobia;
5) o moralismo quanto às drogas.

Em sua intervenção, o camarada Ivan discorre principalmente a respeito dos primeiros três desvios, fazendo considerações que me parecem irretocáveis no que diz respeito aos problemas do etapismo, do chauvinismo e da assim chamada “inflexibilidade tática” no atual quadro do MCI. No entanto, tratando em especial da “questão da LGBTfobia”, o camarada confessa “ter pouco acúmulo sobre este debate” e sua “ignorância a respeito”, de modo que lhe “pareceu exagero o que ele [Carlos Arthur] chama de ‘atrasada concepção LGBTfóbica e transfóbica no interior dos Partidos Comunistas do mundo’ e, assim sendo, soou”-lhe “estranha sua proposta de que o PCB priorize tornar-se a vanguarda da luta contra estes desvios que considera haver no Movimento Comunista Internacional.”

Quando um camarada admite de boa fé sua falta de acúmulo em uma determinada questão, sobre a qual foi forçado a debruçar-se parcialmente devido a outros temas que pretendia debater, é sempre instrutivo que a oportunidade seja utilizada para fazer efetivamente avançar o acúmulo geral de nossa discussão a respeito desta questão específica, corrigindo assim não só esse camarada, mas o conjunto do movimento revolucionário.

Mas, antes de abordar a “questão LGBT” propriamente dita, valeria a pena refletir sobre um aspecto metodológico da discussão. Embora o camarada Carlos Athur elabore uma lista de cinco desvios específicos que considera os “maiores”, e o camarada Ivan discorde de que todos têm o mesmo “peso político”, pouco se discute sobre os critérios para medir a “grandeza” de um desvio político-ideológico.

Sem um critério definido, a discussão resvala no formalismo: caímos em um debate sobre o “estatuto teórico” das questões, o “nível de abstração” delas etc. E nesse âmbito, de fato, há grandes diferenças: enquanto o “etapismo”, o “nacional-chauvinismo” e a “inflexibilidade tática” são desvios que dizem respeito aos objetivos mais gerais do movimento comunista e suas mediações práticas, as duas outras questões se referem a dramas muito mais imediatamente concretos da vida das amplas massas da classe trabalhadora. Nesse segundo “tipo”, na verdade, poderíamos elencar inúmeros outros problemas que, mal compreendidos, resultam em graves desvios: não só o machismo e o racismo, cuja ausência na discussão até aqui salta aos olhos, mas também o fortalecimento do militarismo, da consciência religiosa, do pequeno-empreendedorismo etc. – além de toda uma outra série de questões que, repetimos, podem dar margem a graves desvios oportunistas e esquerdistas, se mal formuladas. Como dizia Lênin:

“Não há nem pode haver uma forma de luta política, uma situação política que não acarrete o risco de desvios. Se não houver instinto de classe revolucionário, se não houver uma visão do mundo integral que esteja ao nível da ciência, se não houver (diga-se sem pretender suscitar a cólera dos camaradas neo-iskristas) juízo na cabeça, então é perigosa tanto a participação nas greves – pode conduzir ao ‘economicismo’ -; como a participação na luta parlamentar – pode acabar no cretinismo parlamentar […]” [3]

Mas encerrar o debate aqui, seria cair numa discussão escolástica, desligada da práxis social, medindo e comparando a importância de “valores universais”, diferenciando as “questões históricas maiores” e as “questões menores do dia a dia” – o que significaria, no fim das contas, virar de ponta cabeça o problema teórico-político da conexão entre a exploração e opressão cotidiana sofrida pelo proletariado e os objetivos revolucionários finais dessa mesma classe. Para uma análise concreta da importância histórica de cada uma dessas questões, o nosso critério deve ser a própria atividade revolucionária. Não se trata de debater qual desvio é “pior em si”, mas sim quais desvios são mais influentes, quais desvios mais imediatamente desorganizam e desarmam ideologicamente o movimento comunista, quais desvios mais dificultam ao movimento comunista a realização de seus objetivos finais, por meio da sua “fusão” ao movimento operário e popular no curso de uma luta revolucionária etc.[4]

É no terreno desse critério, me parece, que devemos encarar o problema. Nesse sentido, em primeiro lugar, concordo com o camarada Ivan quando considera exageradas as críticas à “inflexibilidade tática” de alguns partidos comunistas. O “excesso de flexibilidade” parece um problema muito mais grave no MCI contemporâneo.

Mas, ainda assim, esse enquadramento do debate produz uma série de confusões – não haveria outros desvios mais graves, ou ao menos tão graves quanto esses (já citei alguns)? Mesmo entre esses cinco, haveria alguma gradação de importância? Ou interconexões internas? Por exemplo: é possível pensar no nacional-chauvinismo em separado do etapismo? Ambos não constituem, ainda mais nesses tempos em que rufam os tambores das guerras nacionais, desvios reformistas que caminham de mãos dadas em inúmeros países? Ou: é possível pensar no problema da “guerra às drogas” sem pensar no racismo e no militarismo?

Esse modo de ranquear os desvios, me parece, abriu as portas para que o camarada Ivan cometesse um grande equívoco: buscando diferenciar o significado internacional de uns desvios em comparação com outros, acabou por secundarizar um em relação a outros. Digo isso porque, de fato, nesse sentido limitado (o significado internacional de cada desvio), vejo sim uma diferença entre as questões elencadas – não quanto à sua importância em abstrato, mas quanto ao seu enquadramento à luz das atuais polêmicas do MCI.

Em outras palavras: as questões que estabelecem uma relação conceitual direta com os problemas da estratégia e da tática socialista do movimento comunista (envolvidas nos três primeiros problemas elencados) são questões que hoje delineiam grandes diferenciações no interior do MCI, demarcando de modo nítido – vide as resoluções do XVI Congresso do PCB [5] – um bloco revolucionário. São questões que traçam linhas de demarcação. Infelizmente, contudo, não se pode dizer o mesmo da questão LGBT: nesse caso, encontramos não apenas organizações revolucionárias que nutrem concepções profundamente errôneas, mas também as organizações etapistas que se dividem desde o flerte com concepções liberais essencializantes [6] até o chafurdar no lamaçal do “feminismo radical” transfóbico.

Nesse sentido, são de fato desvios de diferentes tipos: os primeiros são desvios que distinguem campos no Movimento Comunista Internacional; os últimos representam desvios amplamente difundidos em ambos campos. Uns que demarcam linhas nítidas entre a política revolucionária e a política possibilista; o outro, não – o que, poderíamos dizer em algum sentido, torna esse desvio ainda mais grave e digno de atenção, pelo quão difundidos são!

Uma “medição da gravidade” de um desvio (se não deseja se limitar uma pregação moral esterilizante contra “qualquer possibilidade de erro”, uma busca por “militantes perfeitos”, “organizações perfeitas” etc.) só pode significar isso: a urgência da solução de uma questão teórica e prática, a urgência da correção de uma determinada orientação errônea. Nesse sentido, então, embora as questões elencadas pelo camarada Carlos Arthur sejam de “diferentes naturezas”, sem dúvida todas elas tocam em polêmicas candentes do movimento comunista internacional contemporâneo.

A “questão LGBT”

Sobre a LGBTfobia, o camarada Ivan afirma: “não imagino que, entre comunistas, se trate de uma fobia, que subentende aversão, rejeição, escárnio, preconceito e até mesmo perseguição ao seu objeto.” De fato, o termo “LGBTfobia” padece dessa limitação “psicologizante” aparente. Quando debatemos racismo e machismo, ainda que o aspecto da “fobia” (individual ou social) possa surgir na discussão, é bem evidente de partida que tratamos de fenômenos sociais, não apenas da psicologia individual (ainda que, também no uso desses dois termos, predominem interpretações culturalistas, que resvalam para a mesma concepção idealista da questão).

Mas, verdade seja dita, mesmo essas reflexões “conceituais” não nos permitem fugir do fato de que, ao longo de muitas décadas, grandes parcelas do movimento comunista internacional sustentaram posições efetivamente LGBTfóbicas. Em uma breve recapitulação da história dessa polêmica no MCI, registramos que o primeiro impulso positivo da revolução de 1917 – que revogou as leis czaristas que criminalizavam a homoafetividade e nomeou Gueórgui Tchitchérin, homossexual reconhecido, para o importante cargo de Comissário do Povo para as Relações Exteriores, em 1919 – não foi profundo o suficiente para sustentar-se de modo duradouro. Não tardaria para que posições francamente reacionárias a esse respeito começassem a se disseminar em meio ao Movimento Comunista Internacional.

No início da década de 1930, a homossexualidade começou a ser vista, em alguns círculos importantes do Estado e do Partido Comunista soviéticos, como resultado da decadência moral e ideológica da burguesia. A comunista alemã Clara Zetkin contrapôs a essa tendência conservadora no interior do movimento comunista russo e internacional. Seu esforço foi em vão. Não apenas as relações sexuais entre homens foram criminalizadas na URSS em 1934 como, na mesma época, Máksim Górki escreveu: “Nos países fascistas, a homossexualidade, açoite da juventude, floresce sem o menor castigo; no país onde o proletariado alcançou o poder social, a homossexualidade tem sido declarada delito social e é severamente castigada. Na Alemanha já existe um lema que diz: ‘Erradicando os homossexuais, desaparece o fascismo’”.

O Comissário do Povo para a Justiça, Nicolái Krilênko, em 1936, assim se exprimiu: “As massas trabalhadoras acreditam nas relações normais entre os sexos […]. Quem fornece a principal clientela para esse assunto (homossexualismo)? As massas trabalhadoras? Não! Os desclassificados, os resíduos da sociedade ou remanescentes das classes exploradoras.” A segunda edição da Grande Enciclopédia Soviética (1952) agora dizia: “A origem do homossexualismo está ligada às condições sociais cotidianas. Para a esmagadora maioria das pessoas que se entregam ao homossexualismo, essas perversões cessam assim que encontra um ambiente social favorável”. [7]

A esse respeito, a Reconstrução Revolucionária do Movimento Comunista Internacional faria bem em voltar seus olhos para Cuba, um país cujo governo em poucas décadas passou da LGBTfobia semi-institucional para uma autocrítica vigorosa e profunda por parte de seus próprios dirigentes (Fidel Castro incluso), passando a encampar uma legislação de vanguarda no tema – o Código das Famílias, em Cuba, é hoje sem sombra de dúvidas o mais avançado do mundo. [8] O Estado socialista é hoje um aliado objetivo da população LGBT cubana.

Trata-se, portanto, de mais do que “diferenças no trato desta questão entre os PCs”. De fato, se hoje poucos PCs sustentam concepções tão reacionárias sobre a questão LGBT como as de Górki e Krilênko, citadas acima, e muitos apenas “subestimam” as implicações da questão LGBT para a luta de classes, talvez isso seja um avanço – mas um “avanço” insuficiente, aquém das necessidades históricas da luta política do proletariado!

Aqui, evidentemente, como em toda questão, são possíveis dois tipos de desvios. Por um lado, é possível um desvio que podemos chamar de economicista, ou dogmático, que expressa a incapacidade de compreender como o próprio proletariado é afetado pelas opressões decorrentes de orientação sexual e identidade de gênero. É um desvio que se manifesta nitidamente na ideia de que as lutas contra as opressões particulares de determinadas camadas da sociedade “dividem a classe trabalhadora”. Essa forma de conceber o problema é duplamente equivocada. Em primeiro lugar, porque invisibiliza por completo as camadas LGBTs do próprio proletariado. Em segundo lugar, porque mesmo no caso das camadas não-proletárias atingidas pela LGBTfobia, uma postura de abstenção diante de sua opressão é absolutamente inaceitável, do ponto de vista do leninismo:

“Não é suficiente esclarecer os operários sobre sua opressão política (como não o seria esclarecê-los sobre a oposição de seus interesses em relação aos de seus patrões). É necessário fazer a agitação a propósito de cada manifestação concreta desta opressão (como fizemos em relação às manifestações concretas da opressão econômica). Ora, como esta opressão se exerce sobre as mais diversas classes da sociedade, manifesta-se nos mais diversos aspectos da vida e da atividade profissional, civil, privada, familiar, religiosa, científica etc. etc. […]

A consciência da classe operária não pode ser uma consciência política verdadeira, se os operários não estiverem habituados a reagir contra todo abuso, toda manifestação de arbitrariedade, de opressão e de violência, quaisquer que sejam as classes atingidas; a reagir justamente do ponto de vista social-democrata, e não de qualquer outro ponto de vista. A consciência das massas operárias não pode ser uma consciência de classe verdadeira, se os operários não aprenderem a aproveitar os fatos e os acontecimentos políticos concretos e de grande atualidade, para observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações de sua vida intelectual, moral e política; se não aprenderem a aplicar praticamente a análise e o critério materialista a todas as formas da atividade e da vida de todas as classes, categorias e grupos de população.” [Lênin, em Que fazer?]

Não é, portanto, um desvio novo, mas uma nova forma do velho economicismo. Inclusive, vale lembrar: à época do debate sobre a autodeterminação dos povos, Lênin definiu como “economicismo imperialista” a subestimação da luta contra a opressão nacional-étnica por parte de alguns “esquerdistas”, como até mesmo Rosa Luxemburgo. Lênin criticou aqueles marxistas que secundarizavam as opressões nacionais com base na ideia de que “a revolução socialista tudo resolverá! Ou, como por vezes dizem os partidários das concepções de P. Kíevski: a autodeterminação sob o capitalismo é impossível, sob o socialismo é supérflua.” Há quem pense parecido sobre os temas chamados de “identitários”: é inútil falar deles, pois sob o capitalismo sempre haverá opressão, e sob o socialismo ela acabará automaticamente. Não compreendem que a revolução proletária é impossível sem o empoderamento (não em sentido subjetivista, mas prático: a elevação à condição de classe dominante) das milhões de pessoas mulheres, negras, LGBT etc., que compõe concretamente, ao lado de uma camada branca, masculina, heterossexual, cisgênero etc., a classe trabalhadora! Forjar essa unidade revolucionária da classe trabalhadora na luta contra toda exploração e toda opressão é a razão de existir do Partido Comunista, uma vez que essa unidade não se dá espontaneamente, com cada luta travando seu curso separado e particular.

No caso da questão LGBT, talvez pudéssemos falar então em um “economicismo patriarcal”. Retornarei a isso mais adiante.

Por outro lado, não é raro encontrarmos na esquerda no geral, mas também no MCI, o caso oposto, de um desvio oportunista, ou culturalista, neste tema. Esse desvio se expressa na incapacidade de diferenciar a perspectiva proletária de luta contra a LGBTfobia das perspectivas burguesas e pequeno-burguesas, na tendência a aceitar acriticamente as formulações predominantes nos movimentos contra a opressão em cada país, sem formular concepções próprias, marxistas-leninistas. Ou seja: a incapacidade de compreender que a luta por uma política proletária para o fim da opressão LGBT significa também uma luta ideológica contra as tendências liberais ou obscurantistas que predominam não só no movimento LGBT, mas também no movimento feminista, no movimento negro etc. Nesse caso, encontramos toda uma série de organizações autoproclamadas marxistas (especialmente as mais “possibilistas”) que fazem concessões de princípio às palavras de ordem do feminismo transfóbico, em alguns casos; em outros, às concepções materialistas metafísicas que afirmam que a orientação sexual é algo dado biologicamente no nascimento, e que certas pessoas nascem gays, “por isso mesmo devem ser aceitas” – numa “inversão liberal” do discurso biológico reacionário, e em uma tentativa estreita de combater propostas reacionárias com a tal “cura gay” com um argumento pseudo-materialista. Não me alongarei em exemplos, basta constatar a existência de inúmeras manifestações possíveis desse desvio. Nesses casos, é bem comum que uma “fraseologia revolucionária” no campo moral/cultural se combine a um pragmatismo reformista no plano político.

Valeria aqui destacar, contudo, que o predomínio de tendências liberal-reformistas não é uma exclusividade dos movimentos contra a opressão LGBT, ou de gênero, ou racial. Ao contrário: também no próprio movimento sindical não é assim? Também ali não predominam hoje tendências liberais, “cidadãs”, corporativistas, economicistas, obreiristas – poderíamos dizer, então, tendências “identitárias” do movimento operário? Como muito corretamente indicou um camarada:

“O marxismo-leninismo nos ensina que a luta sindical, sozinha, não é garantia de luta revolucionária. A luta sindical mobiliza as pautas econômicas e imediatas da classe trabalhadora, e sendo assim, é fundamental. Mas também é fundamental evoluir das pautas econômicas de cada categoria de trabalho para um programa político que possa unificar a classe operária e as demais classes trabalhadoras em um todo coeso, direcionado à tomada do poder, à derrubada do Estado burguês, da escravidão assalariada, rumo ao socialismo. Aqui entra o papel do Partido Comunista.

[…] Se a luta sindical sozinha não garante luta revolucionária, podendo ser desviada para o peleguismo, a identidade do “trabalhador” também não garante nada, podendo ser um instrumento desse mesmo peleguismo.

O Partido Comunista deve se preocupar com a unidade da classe trabalhadora. Isto é certo. Mas a sua fórmula para essa unidade não é a diluição sem critérios.” [9]

Nesse sentido, portanto, concordo com o camarada Carlos Arthur: o Partido Comunista Brasileiro, tendo avançado imensamente nos aspectos teóricos dessa questão, e tendo dado seus primeiros passos vigorosos para a sua solução prática, com a criação do Coletivo LGBT Comunista, tem muito a contribuir para a formulação adequada da questão e para a luta ideológica no Movimento Comunista Internacional. É verdade que nisso não estamos sozinhos: podemos citar o exemplo do TKP turco, com sua luta secular implacável contra o moralismo religioso, ou o exemplo do Connoly Youth Movement irlandês etc. Mas isso não significa que devamos menosprezar o significado de nossas conquistas teóricas e práticas.

Vale destacar aqui, além das Resoluções Congressuais citadas na abertura desse texto, uma série de notas políticas do Coletivo LGBT Comunista que armam ideologicamente a militância comunista tanto para a luta contra a opressão quanto para a luta contra o liberalismo. Citarei apenas um trecho de uma nota, mas muitas outras podem ser consultadas no site do Coletivo:

“Quando falamos de movimento negro e movimento LGBT, o fundamento do discurso racista em traços fenotípicos e a crença de que a sexualidade é um dado inato da personalidade do indivíduo fomentam tal atuação em paralelo por parte de determinadas organizações. Parte do movimento negro aceita sem questionamento a concepção da existência de uma ‘raça branca’, também biológica, que utiliza da exploração e da violência contra a negritude para manter relações de poder que a beneficia no seio social. Concepção semelhante é adotada por parte do movimento LGBT, que entende que pessoas homossexuais sempre existiram e que ao longo da história foram sucessivamente silenciadas por integrantes de uma sexualidade dominante, a heterossexualidade. Ambos entendimentos, portanto, conduzem à ideia de que a violência contra esses grupos sempre existiu e que sempre esteve vinculada a traços essenciais ou biológicos, não necessariamente sociais.

Este modelo teórico, contudo, falha ao nos explicar as bases materiais que fundamentam tais relações de violência. A humanidade é um gênero de seres composta por indivíduos singulares, apresentando uma diversidade de interesses, sonhos, desejos e características físicas. A questão que resta é desvelar em que momento um conjunto de tais características deixam de ser individuais e tornam-se sociais e políticas. Em que momento tornam-se determinantes ao ponto de cindir a humanidade em grupos que se relacionam hierarquicamente, e com quais bases materiais e econômicas o discurso que fundamenta as relações de violência e de exploração é criado.

Compreender as determinações sociais das diferentes identidades políticas é tarefa fundamental para que os movimentos sociais não confundam seus inimigos. É identificando e combatendo as causas do problema que se pode estabelecer uma estratégia para sua superação. Enquanto parte desses movimentos permanecerem eclipsadas pelo discurso essencialista e biológico, dificilmente os movimentos sociais formularão políticas que tenham como objetivo superar de uma vez por todas o racismo e a LGBTfobia.” [10]

Economicismo patriarcal?

“Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro a seguinte frase: ‘A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos’. Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino.” Engels [11]

“Infelizmente, ainda pode dizer-se de muitos companheiros: ‘Raspa um comunista e encontrarás um filisteu!’ Evidentemente, deve-se raspar no ponto sensível, em sua concepção sobre a mulher.” Lênin [12]

Não tenho nenhum apreço particular por esse termo recém-cunhado. Minha intenção foi apenas, aqui, lançar luz sobre a conexão entre a “questão LGBT” e o machismo, ou melhor dizendo (em termos mais inequivocamente estruturais), o patriarcado. A ausência dessa reflexão nos textos dos camaradas demonstra ou uma parca percepção dos problemas práticos que o machismo ainda acarreta no dia a dia do movimento comunista [13] ou uma incompreensão teórica dessa conexão inseparável entre a opressão da mulher pelo homem e a opressão de todas as orientações sexuais e identidades de gênero que “contrariem” essa superestrutura de dominação patriarcal e as bases estruturais em que ela se funda (a divisão sexual do trabalho). Os apontamentos das camaradas do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro indicam com nitidez essa unidade:

“A luta da comunidade LGBTQI+ é permeada de enfrentamentos na sociedade de base patriarcal, que normatiza um único tipo de família estruturada na posse de bens, no controle da reprodução de pessoas e na legitimação de um Estado que por muito tempo legitima opressões àqueles que compõem os degraus mais baixos da pirâmide social.” [14]

“Como feministas classistas, entendemos que a categoria ‘gênero’ é uma construção social que, na sociedade capitalista, tem atribuído distintos papéis a serem cumpridos, determinados historicamente. A construção da posição social dos homens e das mulheres oprime e marginaliza quem desvia dos padrões dominantes, também posicionando as mulheres trans e travestis no polo da feminilidade explorada pela divisão sexual do trabalho. Portanto, [comentando a transfobia radfem] entendemos que se opor a grupos que passam por essas opressões de maneira tão violenta na sociedade brasileira é não compreender o modo de operação capitalista e do patriarcado, o que é contrário à análise do materialismo histórico e dialético.” [15]

Uma vez desvelada essa conexão, talvez valeria dizer: seria melhor enquadrar toda essa discussão sob a rubrica do “chauvinismo” – que o camarada Carlos Arthur limitou à sua dimensão “nacional”, mas que vai muito além disso! Não à toa, o termo foi usado diversas vezes pelas mulheres comunistas em sua luta contra o “chauvinismo masculino”. Não à toa, os e as comunistas negros e negras por diversas vezes condenaram o “chauvinismo branco”. Com tanto ou mais direito, caberia ao movimento LGBT comunista falar em um “chauvinismo heterossexual e cisgênero”. E, não à toa, mais uma vez, todos esses chauvinismo se irmanam e andam de mãos dadas ao lado do chauvinismo nacional e do chauvinismo militarista no fenômeno que chamamos, genericamente, de fascismo, a forma acabada do chauvinismo total.

Nesses termos, então, retornando ao começo da discussão, a “questão LGBT” deixa de aparecer no debate como um problema prático secundário, e revela sua conexão com o próprio problema estratégico-tático do chauvinismo – ou, entendido em outros termos, o problema da unidade da classe trabalhadora e da superação na luta das contradições que a atravessam. Só assim, sob esse enquadramento, o problema surge em toda sua magnitude histórica, e podemos equacionar o devido significado estratégico, para o proletariado, da luta contra a homotransfobia, o machismo e o racismo.

Digo isso tudo, evidentemente, sem qualquer pretensão de ter esgotado o debate, ou estar isento de qualquer limitação em minha concepção do assunto. Certamente há muitas e muitos camaradas que dominam todos esses complexos temas muito mais. Mas considerei importante estabelecer esses pontos de princípios gerais e introdutórios.

Breves comentários sobre o “moralismo quanto às drogas”

Sem aprofundamentos no tema, gostaria apenas de destacar alguns aspectos da questão:

Nesses termos específicos, a questão parece se apresentar como um problema moral, subjetivo. É compreensível: já que a guerra aos pobres que se trava a pretexto da guerra às drogas escandaliza toda pessoa sensível à opressão, o “moralismo” parece ser a única explicação de um desvio tal qual o menosprezo por esse tema.

Contudo, assim colocado, faz parecer que o problema das drogas é, principal e primeiramente, um problema de liberdade de consciência, da liberdade democrática do uso de substâncias psicoativas etc. Não é a intenção do camarada Carlos Arthur, visivelmente, que coloca o acento nos aspectos corretos do problema. Mas ocorre que, de fato, também a incompreensão dessa dimensão do problema constitui um desvio. Atualmente, a luta ideológica em curso no movimento pela legalização/discriminalização das drogas exige ir além do problema da liberdade individual, acentuada pelos setores liberais do movimento em detrimento da denúncia e do combate à guerra aos pobres propriamente dita. Felizmente, hoje este movimento aceleradamente pende para a segunda perspectiva, proletária, em detrimento da perspectiva puramente pequeno-burguesa do “direito ao uso” sem mais.

Devemos também abordar em nossa propaganda teórica o problema da liberdade e do uso de substâncias psicoativas, inclusive no sentido de uma propaganda científica e materialista. Mas vale frisar que, em nossa agitação, o centro da questão deve ser o racismo, o militarismo, a guerra aos pobres, e não pode nem deve ser a “liberdade de escolha” ou não do usuário (que, como o camarada Carlos Arthur mesmo indicou, pode facilmente levar à conclusão de que é preferível a “liberdade de escolher a abstinência”, desconsiderando todas as bases materiais do fenômeno da massificação do uso de substância psicoativas em nossa época).

Felizmente, no caso desse desvio, me parece que o movimento proletário revolucionário brasileiro avançou nos últimos anos muito mais do que frente aos outros desvios elencados, e a postura demagógica de conciliação com o discurso religioso sobre as drogas é cada vez mais repudiada pela vanguarda e limitada ao proselitismo dos reformistas. Trabalhemos para que esse seja um caminho sem volta, e os comunistas que nutrem quaisquer confusões a esse respeito retifiquem em tempo seu caminho.

Notas:

[1] https://pcb.org.br/portal2/30248

[2] https://pcb.org.br/portal2/30390

[3] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/03/30.htm

[4] “A primeira pergunta que surge é a seguinte: como se mantém a disciplina do partido revolucionário do proletariado? Como é ela comprovada? Como é fortalecida? Em primeiro lugar, pela consciência da vanguarda proletária e por sua fidelidade à revolução, por sua firmeza, seu espírito de sacrifício, seu heroísmo. Segundo, por sua capacidade de ligar-se, aproximar-se e, até certo ponto, se quiserem, de fundir-se com as mais amplas massas trabalhadoras, antes de tudo com as massas proletárias, mas também com as massas trabalhadoras não proletárias. Finalmente, pela justeza da linha política seguida por essa vanguarda, pela justeza de sua estratégia, e de sua tática políticas, com a condição de que as mais amplas massas se convençam disso por experiência própria. Sem essas condições é impossível haver disciplina num partido revolucionário realmente capaz de ser o partido da classe avançada, fadada a derrubar a burguesia e a transformar toda a sociedade. Sem essas condições, os propósitos de implantar uma disciplina convertem-se, inevitavelmente, em ficção, em frases sem significado, em gestos grotescos. Mas, por outro lado, essas condições não podem surgir de repente. Vão se formando somente através de um trabalho prolongado, de uma dura experiência; sua formação é facilitada por uma acertada teoria revolucionária que, por sua vez, não é um dogma e só se forma de modo definitivo em estreita ligação com a experiência prática de um movimento verdadeiramente de massas e verdadeiramente revolucionário.” Lênin, Esquerdismo
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/cap01.htm#I

[5] ““129) É preciso fortalecer o bloco revolucionário em articulação no interior do movimento comunista internacional, que se reúne anualmente no Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários, assim como contribuir para a construção do polo revolucionário dos Partidos Comunistas da América Latina, com inserção suficiente no movimento operário-popular para barrar a ofensiva imperialista-capitalista no nosso continente e tirar a direção da classe das mãos da socialdemocracia. Isso não obstante, é fundamental avançar no sentido de buscarmos construir um espaço permanente de articulação entre os PC’s da América Latina, com o objetivo principal de coordenar lutas comuns.

130) O PCB respeita a diversidade de opiniões existente no atual Movimento Comunista Internacional e busca estabelecer um diálogo com todos os partidos comunistas do mundo, para trocar avaliações acerca dos processos políticos em curso e coordenar ações comuns contra a ofensiva burguesa. No entanto, o PCB deve privilegiar aproximações e ações políticas com os partidos do bloco revolucionário, que se articulam em espaços como a Iniciativa Comunista Europeia e a Revista Comunista Internacional, preservada a nossa autonomia política.

131) O PCB considera que é negativo para a classe trabalhadora que os Partidos Comunistas abram mão de defender o programa revolucionário proletário para abraçar programas reformistas pequeno-burgueses, seja em nome da “unidade contra o neoliberalismo”, seja pela “unidade antifascista”. A experiência recente do nosso país e toda a história do movimento comunista internacional demonstram nitidamente que, ao invés de gerar um acúmulo de forças, o que isso gera na prática é o desarmamento político, ideológico e real da classe trabalhadora. A desilusão gerada pelo não cumprimento das promessas da socialdemocracia é um dos fatores que contribui para a chegada do fascismo ao poder e a sua aceitação por parte das massas populares, como já nos apontava a Internacional Comunista antes do estabelecimento da linha das Frentes Populares, de colaboração com a socialdemocracia.”
XVI Congresso do PCB:
https://drive.google.com/file/d/1F_5SvtoZsxCyfsp6dx1gek0kMYEoDTvX/view

[6] https://lgbtcomunista.org/2021/02/02/racismo-lgbtfobia-e-a-armadilha-da-identidade/

[7] https://pcdob.org.br/noticias/os-marxistas-e-a-homossexualidade/

[8] https://pcb.org.br/portal2/29264

[9] https://lavrapalavra.com/2023/02/01/notas-sobre-a-questao-lgbt-e-o-movimento-comunista/

[10] https://lgbtcomunista.org/2021/02/02/racismo-lgbtfobia-e-a-armadilha-da-identidade/
Vide também:
https://lgbtcomunista.org/category/nota-politica/

[11] https://www.marxists.org/portugues/marx/1884/origem/cap02.htm

[12] https://www.marxists.org/portugues/zetkin/1920/mes/lenin.htm

[13] https://coletivominervinocom.wordpress.com/2023/05/03/a-violencia-de-genero-nas-esquerdas/

[14] https://anamontenegro.org/cfcam/2020/09/23/existimos-e-resistimos-dia-da-visibilidade-bissexual/

[15] https://anamontenegro.org/cfcam/2021/07/27/feministas-classistas-contra-a-transfobia-e-em-defesa-da-populacao-trans/

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