Razão e desrazão de uma guerra

Por Mauro Luis Iasi

“Algo debería
Hechizar porta-aviones
Alguien debiera
Apretar un botón
Que reciclara metralha en razones
Y poderío en conmiseracíon.”
Silvio Rodríguez

BLOG DA BOITEMPO

Quem vos fala é um comunista, portanto, alguém que luta por uma humanidade sem classes e sem Estados. Uma humanidade emancipada certamente não será homogênea, seguirá sendo composta por uma rica complexidade de povos, culturas, línguas e tradições diversas. Podemos supor que nem sempre a relação entre pessoas e povos será harmoniosa, muitas vezes a convivência poderá ser tensa e conflituosa. No entanto, retirados antagonismos fundamentais, espera-se que pessoas emancipadas não se matem em guerras fratricidas.

A rigor, quem faz guerras não são os povos, mas os Estados. O brutal conflito nas terras que nunca foram santas não é, como nos quer fazer crer a mídia corporativa, uma guerra de Israel contra o Hamas, nem mesmo uma guerra entre árabes e judeus. Os analistas disputam uma origem para um conflito que se arrasta no tempo, escolhendo ao sabor de seus interesses um início para a guerra, seja nos tempos bíblicos, seja na formação do Estado de Israel por resolução da ONU em 1947/1948, seja no mais recente ato de violência, excetuando, lógico, aquele cotidiano exercício de barbárie ao qual está submetido o povo palestino.

Escolho um outro momento para tentar compreender o conflito: o acordo de Oslo, em 1995, entre a OLP e o governo de Israel. Vejamos o porquê desta escolha.

A remissão histórica desta pequena faixa de terra espremida entre dois mundos, a África e a Ásia, ajuda pouco. Por lá passaram e viveram inúmeros povos, desde os egípcios (século XV a.C.), assírios (722 a.C.), babilônicos (fins do século VII a.C.), persas aquemênidas (539 a.C.), greco/macedônios (331 a.C. a 220 a.C.) e selêucidas (220 a 142 a.C.), passando por uma retomada pelos locais asmoneus até a invasão romana (63 a.C). Aqueles que hoje se reconhecem como árabes e judeus eram tribos de pastores ou agricultores dispersas entre nômades e sedentários, quase sempre oprimidos por uma ou outra destas invasões.

Devemos nos deslocar para um contexto específico da história contemporânea, mas precisamente o mundo que emerge de duas guerras mundiais no qual as potências imperialistas partilham o planeta em áreas de influência. É neste contexto que a população judaica, espalhada pelo mundo, reivindica a formação do Estado de Israel. Este movimento político se origina ainda no final do século XIX com a publicação de Theodor Herzi defendendo um Estado para os judeus e organizando um congresso mundial sionista em 1897.

Houve ondas de imigração de judeus para a Palestina, o que se intensificou pelos conflitos mundiais e a perseguição que este povo sofria na Europa. Após a Segunda Guerra Mundial, a Palestina estava ocupada pela autoridade colonial britânica e abrigava muçulmanos, judeus e católicos em um mesmo território. Em 1947, a ONU aprovou uma resolução que criava o Estado de Israel, reduzindo as fronteiras do Estado da Palestina, ou seja, a mesma resolução deveria definir os dois Estados. A proposta foi viabilizada em razão da ocupação inglesa e contra a resistência da maioria árabe na região. A formação de Israel e sua independência só ocorreu pela luta armada dos israelenses contra os ingleses, principalmente através do terrorismo (atentados a bomba contra quartéis e instalações britânicas).

Um pequeno parênteses, o terrorismo é uma forma de luta que se apresenta em uma situação de grande disparidade de forças entre as forças de libertação e os exércitos opressores, como no caso de uma seção colonial e em outros contextos, como na resistência francesa, iugoslava ou grega contra os nazistas, ou dos argelinos contra a dominação colonial francesa, entre outros.

A luta contra a dominação inglesa culminou com a independência do Estado de Israel em 14 de maio de 1948. Em seguida, os países árabes vizinhos atacaram o recém nascido Estado de Israel e provocaram uma guerra que se alastrou por um ano, definindo fronteiras e já incluindo áreas ocupadas por Israel naquilo que se tornaria a Cisjordânia. Para que fique claro, não existe uma fronteira definida para o que seria ou não Israel. O mapa, como toda fronteira contemporânea, foi traçado à força e sangue através de guerra e conquista.

Seguiram-se vários conflitos, entre eles a Guerra dos Seis Dias (1967), no qual Israel conquistou a faixa de Gaza, antes ocupada pelo Egito, a estratégica península do Sinai e as Colinas de Golã. Durante todo este tortuoso conflito, a ONU acompanhava bovinamente sem nenhuma posição mais decisiva para intermediar a situação na busca de uma solução, muito em função dos interesses geopolíticos das grandes potências.

Diante da consolidação do Estado de Israel, o povo palestino resolve em 1967 se levantar em uma luta armada em defesa de seu território e funda a Organização para Libertação da Palestina (OLP), liderada por Yasser Arafat. Desde a fundação de Israel, o governo era controlado pelo Partido Trabalhista. O sionismo não é um movimento homogêneo e, inicialmente, houve políticos sionistas-socialistas, como o primeiro governante de Israel, David Ben-Gurion, do Mapai. O início foi marcado por uma intensa imigração dos judeus de todo o mundo para construir na Palestina seu Estado, levando mais de dois milhões até 1958. Na época da resolução da ONU, os palestinos eram 67% da população da região e os judeus viviam em cerca de 3% do território. Com a repartição proposta, o Estado judeu ficaria com 56% das terras, incluindo faixas costeiras e terras mais férteis.

Em 1977, encerra-se a longa hegemonia dos trabalhistas com a eleição de Menachem Begin, do Likud, partido de direita que formou sua base nos colonos judeus que ocupavam territórios antes ocupados por palestinos e que defendiam uma política mais agressiva. Em 1981, as forças israelenses intervêm no sul do Líbano e destroem as bases da OLP. No vazio deixado, se estrutura, com o apoio do Irã, uma milícia fundamentalista islâmica: o Hezbollah.

Em 1992, elege-se o primeiro-ministro Yitzhak Rabin, iniciando um movimento de negociação com os países árabes para se chegar a uma paz duradoura. Assim, chegamos ao ano de 1993 e aos acordos de Oslo. Shimon Peres, por Israel, e Mahmoud Abbas, pela OLP, assinam um acordo que previa a retirada das forças israelenses da faixa de Gaza e da Cisjordânia, que passariam a ser governadas pela autoridade palestina; a formação de um governo interino na Palestina por cinco anos; e a negociação sobre o retorno dos refugiados palestinos espalhados pela região, sobre a cidade de Jerusalém os assentamentos israelenses no teritório palestino e o estabelecimento de três áreas: uma sobre controle total da Palestina, uma com população palestina, mas ainda com presença militar israelense e outra sob controle total de Israel.

Yitzhak Rabin e Yasser Arafat são laureados com o prêmio Nobel da Paz. Apesar de o acordo ser claramente limitado, uma vez que o Estado de Israel estava consolidado e o Estado Palestino encolhido e sem forma instituída, além de uma vaga autoridade palestina sobre Gaza e Cisjordânia, poderia abrir caminho para o estabelecimento de um Estado Palestino e, pelo menos, uma suspensão das hostilidades. No entanto, não foi o que aconteceu.

Dissemos que as guerras não são feitas pelos povos, mas por Estados. É verdade, no entanto, que em momentos de extrema instabilidade aquela aparente pretensão de sacralidade do Estado como espaço de gestão da norma jurídica e de inquestionável poder soberano está submetida às lutas políticas. A extrema-direita de Israel assassinou Yitzhak Rabin em 1995, abrindo espaço para a intensificação dos assentamentos judaicos nas terras da Palestina e o fortalecimento do Likud, que acabou por eleger Benjamin Netanyahu, ele mesmo, em 1996.

A ascensão do Likud se explica, também, por problemas no lado palestino. Descontentes com o acordo de paz, militantes do Hamas (Movimento de Resistência Islâmica, fundado em 1987) rompem com a OLP e passam a intensificar os ataques suicidas em Israel.

Pensamos que a luta armada, assim como suas formas extremas, como o uso do terrorismo, são recurso por vezes necessários na luta dos povos. No entanto, a experiência de nossa classe demonstra que o recurso armado é um momento específico da luta política e a ela deve se subordinar. Todo esforço armado visa conquistar um certo equilíbrio ou impasse militar que force a saída política, como foi na própria guerra do Vietnã, como afirma seu principal estrategista, o general Vo Nguyen Giap. Mesmo em contextos revolucionários nos quais a força das massas rebeladas se junta às vanguardas e chega a derrotar as forças contrarrevolucionárias, como na Rússia de 1917 ou em Cuba em 1959, segue-se o esforço político de consolidação e resistência do novo Estado. O longo percurso de uma luta, no entanto, pode criar um impasse que, ao contrário de levar à saída política, pode acabar por inviabilizá-la.

O retorno de Netanyahu ao poder em 2009 e, novamente agora, em uma aliança com a extrema-direita ultraconservadora israelense, como Bezalel Smotrich, que lidera o Partido Sionista Religioso, e Itamar Ben-Gvir, líder do Partido Poder Judaico, deu sequência e intensificou a ocupação dos colonos judeus na Palestina e uma verdadeira política da apartheide contra a população palestina, principalmente os mais de dois milhões confinados na faixa de Gaza. Não apenas a população palestina vive sob estrita vigilância do exército, como tornou-se uma reserva de força de trabalho barata a ser explorada por Israel.

A fala do fascista ministro da defesa de Israel, o general Yoav Gallant , dizendo que iria cercar a faixa de Gaza impedindo a entrada de alimentos, energia elétrica e combustíveis, porque se tratava de uma guerra contra animais, é expressão da barbárie da extrema-direita israelense que os rebaixa ao patamar de seus antigos carrascos.

Neste sentido, a extrema-direita de Israel acaba por alimentar o Hamas e inviabilizar uma saída real para o conflito, que só pode se iniciar pela aceitação imediata do direito dos palestinos ao seu Estado com fronteiras definidas e capacidade de lograr uma soberania política e econômica para garantir a vida e a dignidade de seu povo. Por isso, nos somamos à solidariedade às vítimas israelenses e palestinas e à posição do Partido Comunista de Israel contra o governo fascista de Netanyahu quando afirma que “é impossível ‘gerir’ o conflito ou resolvê-lo militarmente. Só há uma solução: lutar para acabar com a ocupação e reconhecer os direitos legítimos do povo palestino e as suas justas reivindicações. Acabar com a ocupação e insistir numa paz justa é do interesse claro de ambos os povos”.

Ocorre que o que é o interesse de ambos os povos pode não ser interesse de seus governantes. Em Torre de Babel, livro do escritor australiano Morris West, o personagem Jakov Baratz, um ministro israelense, preocupado com a crise econômica que assolava seu país, com a crise comercial, a falência dos bancos, o crescimento do desemprego, a frustração e a insegurança da população com as instituições, afirma de forma dramática que “para o bem do país, precisamos de uma pequena guerra, e já”. Diante disso, o chefe do Estado-Maior lhe responde: “Até quando teremos necessidade de guerras? Uma democracia deve sustentar-se a si própria; portanto, qual o problema? Autodefesa, claro! Mas com o exército como arma de propaganda e homens mortos para manter o contingente de vivos… de maneira nenhuma! Se é esse nosso futuro como nação, é preferível desistir já. Voltemos a dispensar-nos e acabemos com isso!”.

Mas Jakov Baratz, o personagem fictício de Morris West, não comanda as forças armadas de Israel, mas sim Yoav Gallant e suas mãos cheias de sangue palestino.