“A batalha de Gaza é a batalha de todos nós”

Entrevista com a antropóloga libanesa e líder comunista Leila Ghanem, conduzida e traduzida para a Coordenação dos Núcleos Comunistas (CNC) por Ángeles Maestro.

Coordenação de Núcleos Comunistas

“Ninguém é morte se estiver em sua montaria” (*)

1 – Por que a operação militar do Hamas de 7 de Outubro chocou o Oriente Médio e até o mundo? Qual é o impacto histórico deste acontecimento nos movimentos de resistência do Oriente Médio?

Não há dúvida de que, para o povo palestino e na verdade para o povo árabe, o “Dilúvio de Al-Aqsa” de 7 de Outubro foi uma operação militar de proporções míticas; em todo caso, sem precedentes desde a ocupação da Palestina em 1948, uma espécie de epopeia lendária aos olhos dos povos árabes. Alguns escritores remontam a Homero para evocar a imagem da Ilíada, uma lenda heróica “na qual o fraco consegue derrotar o seu colonizador num equilíbrio de forças inimaginável”. Em apenas duas horas, a maior potência do Oriente Médio, o quinto maior exército do mundo, sofreu uma derrota esmagadora pelas mãos de uma modesta unidade de comando apelidada de “Distância Zero” (para destacar o confronto do corpo contra o tanque), composto por uma centena de homens modestamente armados, mas dotados de coragem heróica. Vinte assentamentos libertados, bases militares ocupadas – uma das quais abrigava o quartel-general de Tsahal no sul –, um observatório militar de alta tecnologia encarregado de controlar a fronteira; a unidade de pesquisa 545 e a unidade de inteligência 414 foram neutralizados e dois generais capturados. A lenda ocidental-sionista da invencibilidade do estado sionista foi destruída. Em poucas horas, Gaza tornou-se Hanói. E recordamos a famosa frase do General Giap durante a sua visita a Argel em dezembro de 1970: “Os colonialistas são maus estudantes de história”.

Para o escritor e ativista palestino Saif Dana, o exemplo que mais se aproxima desta vitória militar, apesar do desequilíbrio na relação de forças entre colonizados e colonizadores, é a “Revolução Haitiana”, que foi e continua a ser um símbolo importante para as pessoas de cor em todo o mundo. Os haitianos, armados de coragem e de uma “vontade de emancipação”, lançaram-se, liderados por Dessalines, numa batalha decisiva contra os colonizadores franceses, que acabavam de receber reforços, comandados pelo general Rochambeau. Esta batalha parecia estrategicamente impossível, mas depois de quatro ataques heróicos liderados pelo líder negro Cabuat, os franceses foram finalmente forçados a capitular em 18 de novembro de 1803 no Forte Vertières, embora os haitianos tenham sofrido perdas consideráveis de vidas. As guarnições francesas renderam-se uma a uma, permitindo que a ex-colônia proclamasse a sua independência em 1º de janeiro de 1804. A partir de então tomou o nome de Haiti. Esta batalha lendária ficou nos anais da história. Mais tarde, ela inspirou revoltas de escravizados em outros lugares, como a rebelião de Aponte em Cuba em 1812 ou a conspiração de Dinamarca Vesey na Carolina do Sul em 1822. Essa vitória também influenciou decisivamente Simón Bolívar e outros líderes de movimentos de independência na América Latina, embora tivéssemos que esperar até 1834 para abolir a escravatura.

O que aconteceu em 7 de outubro na Palestina é tão lendário quanto a batalha do Haiti, e de agora em diante ficará nos anais da história, como as batalhas de Hittin, El Kadissiya, etc. no tempo de Saladino. Imaginem o terremoto que abalou todo o sistema do Império no Ocidente devido à súbita derrota de seu braço direito, no qual tinha investido bilhões de dólares durante quase um século. O mesmo poder a que o Império confiou a função de ser uma ponte imperial para controlar rotas marítimas estratégicas, recursos vitais como petróleo, gás e urânio e constituir a chave para consolidar o seu domínio, desestabilizando os inimigos do Império, introduzindo relações de classe em benefício dos opressores… Israel estava no centro deste sistema capitalista que tinha de manter os países do Sul dependentes dele; para isso, o povo palestino teve que se tornar um cenário precursor, um modelo de perseguição… Para conseguir isso, foi necessário expulsá-los de suas terras, desumanizá-los, mantê-los sob bloqueio, massacrar os seus líderes históricos… Isto exigiu um estatuto específico para seus fantoches e proteção política, institucional, financeira e midiática…

O alarme imediato que abalou todos os líderes do mundo capitalista em 8 de outubro, que afluíram a Tel Aviv, é uma prova irrefutável do investimento do mundo ocidental neste Estado constituído à margem da lei, independentemente de todos os direitos e normas humanas. Direitos e normas criados pelo próprio regime burguês ocidental. O 7 de Outubro foi uma derrota para o Ocidente imperialista. E, a partir de agora, haverá um antes e um depois desse 7 de outubro.

2 – O Hamás é uma organização terrorista?

Comecemos por dizer que, além dos Estados Unidos e da União Europeia, nenhum outro país do mundo acusa o Hamas de terrorismo. Se olharmos para a história, o termo “terrorista” nem sempre foi pejorativo. Os revolucionários usaram o “terror” contra os seus inimigos de classe. Foi durante a Revolução Francesa que o termo “terrorista” foi usado pela primeira vez por Gracchus Babeuf ao falar dos “patriotas terroristas do segundo ano da República”. Para o marxismo, o Terror não era de forma alguma um objetivo político, mas sim uma ferramenta, o instrumento de uma política, e deve ser julgado em relação aos objetivos dessa política. Isto levanta duas questões diferentes: 1ª.- A questão da legitimidade dos propósitos políticos. 2º.- A adequação dos meios. Condenar o Terror como um “sistema” metafísico esconde o interesse em deslegitimar os objetivos políticos que o estabeleceram.

Tomemos o exemplo da Comuna de Paris, o clímax da guerra civil francesa. Após a sua derrota, os comunardos foram descritos, para citar apenas o Le Figaro, o órgão da reação de Versalhes, como “terroristas do Hôtel de Ville [da Câmara Municipal] ou “terroristas de 18 de Março” ou “a Comuna terrorista”. O terror era defendido ou combatido com base nos objetivos perseguidos pelas diferentes classes sociais e facções políticas e que cada uma delas considerava legítimos. Numa carta à sua mãe, Friedrich Engels explicou: “Fala-se muito dos poucos reféns que foram fuzilados ao estilo prussiano e dos poucos palácios que foram queimados ao estilo prussiano, porque todo o resto é mentira; mas dos 40.000 homens, mulheres e crianças que Versalhes massacraram com metralhadoras depois de terem sido desarmados, ninguém fala.

Parece que esta descrição de Engels se referia aos acontecimentos em Gaza. Poderíamos pensar que ele está descrevendo como os meios de comunicação ocidentais avaliaram desproporcionalmente (e continuam a fazê-lo) o impacto do ataque do Hamas em 7 de Outubro, e o genocídio que se seguiu com a vingança sangrenta do exército Tsahal – o exército de Israel – apoiado pela Força Delta estadunidenses e os seus três porta-aviões no Mediterrâneo. Aqueles que falaram da Hiroshima de Gaza não estão longe da cifra das 70.000 vítimas que caíram no Japão em agosto de 1945. Em Gaza, o número de civis assassinados sobe para 50.000.

Os Estados imperialistas-coloniais denunciaram rotineiramente o terrorismo das lutas dos povos submetidos ao seu domínio e dos seus combatentes tratados como terroristas. Recordemos, mais uma vez, que diversas organizações, depreciadas como terroristas ao longo da história, chegaram a ser interlocutores legítimos. Foi o caso do Vietcongue, do Exército Republicano Irlandês (IRA), da Frente de Libertação Nacional da Argélia, do Congresso Nacional Africano (ANC) e de muitas outras organizações que também foram classificadas como “terroristas”, como a OLP e a FPLP na Palestina. Com este termo pretendeu-se e pretende-se despolitizar a sua luta, apresentá-la como um confronto entre o Bem e o Mal. Cada vez que os palestinos se rebelam, o Ocidente – tão rápido a glorificar a resistência dos ucranianos – invoca o terrorismo. Fê-lo durante a primeira Intifada em 1987 e a segunda em 2000, durante as ações armadas na Cisjordânia ou nas mobilizações para Jerusalém, durante os confrontos em torno de Gaza, sitiada desde 2007 e que sofreu seis guerras em 17 anos.

Cabe questionar a legitimidade de Israel para se defender e desarmar o Hamas. Alguns meios de comunicação sionistas chegam ao ponto de invocar Thomas Hobbes e a sua percepção daquilo que ele chama de domínio, pelas classes dominantes, do “monopólio da força física legítima”. Ignora-se assim que esta legitimidade não pode ser aplicada a um Estado colonialista, uma legitimidade contestada em primeiro lugar pelos palestinos, pelos povos dos países à sua volta que foram atacados (libaneses, sírios, iraquianos, iemenitas e iranianos) e por todos aqueles que o consideram um estado colonizador. Antes da farsa do “Acordo de Paz” de Oslo, a maioria dos países do mundo não reconhecia Israel. A sua legitimidade baseia-se, sem mais delongas, numa decisão das Nações Unidas, enquanto Israel rejeitou sistematicamente todas as decisões relativas ao povo palestino (resoluções 242, 323, 194, direito de regresso dos palestinos ao seu país).

3 – Pode você explicar brevemente o conteúdo político do Eixo da Resistência, quem são seus membros e que lugar a Palestina ocupa nele?

São dois eixos diferentes, que se sobrepõem, mas não têm uma direção comum. Aí estão o eixo dos Estados Irã, Síria, Iêmen, Líbano (Sul) e o eixo dos movimentos de resistência que são grupos político-militares anti-imperialistas de orientações diversas, que vão do xiitismo dos deserdados ao Marxismo. Todos eles, incluindo o Hamas, levantam a questão anticolonial e alguns defendem a justiça social no seu programa. São essencialmente constituídos por Hezbollah (Líbano), Jihad (Palestina), Houthiyeen (Iêmen), AL-Mad shaabi / “Reforços populares” (Iraque); e podemos acrescentar a este bloco a FPLP (Palestina), a Saraya (unidade especial dos campos de refugiados palestinos no Líbano) e outras organizações comunistas, como o Partido Comunista do Líbano, que acaba de apelar aos seus militantes para a mobilização e estão treinando nas bases do Hezbollah.

Existe uma importante coordenação entre estes grupos político-militares, que atuam sob o lema “Unidade de Caminhos”, forma que garante a relativa independência de cada organização, particularmente daquelas sediadas na Palestina, como o Hamas. No entanto, importa referir que a coordenação com o Hamas está mais ou menos distante, essencialmente por razões ideológicas – o Hamas pertence à Irmandade Muçulmana, um grupo islâmico sunita conservador – mas também devido a diferenças políticas, à aliança do Hamas com o Qatar e a Turquia, que tem afetado as suas relações com a Síria. Em 2014, o Hamas teve de abandonar o campo de Yarmouk, na Síria. No entanto, é importante notar que o Hamas tem uma estrutura diferente das organizações mercenárias islâmicas criadas pela CIA, como a Al Qaeda ou a Anossra ou o Estado Islâmico, cujo único objetivo era destruir as estruturas dos Estados Árabes e combater a sua resistência anti-imperialista.

O Hamas é um movimento palestino enraizado nas classes trabalhadoras de Gaza, na Cisjordânia e na zona rural palestina do Líbano, Síria e Jordânia. O Hamas foi eleito democraticamente numa eleição supervisionada pelas Nações Unidas em 2007 e, desde então, Gaza tem sido bloqueada não só por Israel, mas também pela Europa e pelos Estados Unidos. Não é o Islã que incomoda os imperialistas, que historicamente souberam usar perfeitamente o Islã fascista. O confronto com o Hamas se dá porque esta organização se recusa a depor as armas até libertar a Palestina e rejeita os chamados tratados de paz, como os de Camp David ou Oslo, que apenas serviram para usurpar 78% do território da Palestina histórica anterior à Nakba de 1948. O Hamas recebe atualmente treino e armas do Eixo de Resistência anti-imperialista e não dos seus amigos ideológicos em Istambul ou no Qatar. Isto explica as diferenças dentro do Hamas entre dois ramos: o ramo militar, AL-Qassam, e o ramo político cujo líder vive no Qatar e não em Gaza. Deve-se também notar que a libertação da Palestina está no centro do programa deste Bloco de Resistência, tal como o fim da interferência ianque no Oriente Médio. Apesar destas diferenças, a batalha por Gaza atualmente travada exigiu a unidade de todos os componentes acima mencionados e uma coordenação militar perfeita. Sua engenhosidade e bravura ficarão para a história.

4 – Pode-se falar de Bloco Histórico?

Para caracterizá-lo, remetemos a Gramsci e seu conceito de Bloco Histórico, cuja primeira menção se encontra no Caderno 4, em trecho que trata da importância das superestruturas – estas são vistas por Gramsci como a esfera na qual os indivíduos tomam consciência das suas condições materiais de existência – e da necessária relação entre a base e a superestrutura.

Os movimentos anticoloniais, independentemente da sua filiação declarada, desempenham um papel progressista na dinâmica da história e representam as aspirações de emancipação das classes dominadas e exploradas. A sua luta no terreno das contradições sociais os radicaliza necessariamente. É o caso do Hamas, que trava uma guerra de libertação nacional e forjou alianças no campo de batalha com todos os componentes da resistência. Em outra passagem, no Caderno 7, Gramsci vincula o Bloco Histórico à força da ideologia e à relação entre ideologias e forças materiais; insiste que se trata de uma relação de unidade dialética orgânica, em que as distinções são estabelecidas apenas por razões “didáticas”.

Uma das afirmações de Marx, muito significativa, é aquela que garante que uma convicção popular muitas vezes tem o mesmo poder que uma força material. Acredito que a análise destas afirmações leva a reforçar o conceito de “Bloco Histórico”. No Caderno 8, Gramsci insiste na identidade entre história e política, identidade entre “natureza e espírito”, na tentativa de elaborar “uma dialética de diferentes momentos, como aqueles que operam no interior da luta de classes, de uma forma que o impulso revolucionário dos povos oprimidos atua nas relações sociais de produção.”

5 – Será a demonstração da vulnerabilidade militar do Estado Sionista para a Resistência Palestina comparável à vitória da Resistência no Líbano em 2006?

Sem dúvida que as semelhanças existem, porque em ambos os casos são comandos precariamente equipados que enfrentam um exército regular dotado de recursos importantes. Os relatos da batalha que nos chegam todos os dias a partir de Gaza mostram que a força da determinação dos combatentes é decisiva para o resultado da batalha. Quando os habitantes de Gaza se referem aos seus combatentes como “samurais” ou falam em “Distância Zero”, eles querem mostrar o enorme valor de “um caça enfrentando um tanque”. Em 2006, na planície de Khiam, quando os combatentes do Hezbollah apreenderam 40 tanques Mer-Kaba sem os destruir, usaram a mesma tática. Sayed Hassan Hasrallah disse então para encorajar seus homens: “Israel é mais fraco que uma teia de aranha.” Nas palavras de Mao, “o imperialismo é um tigre de papel.”

A derrota do Tsahal foi tão amarga que desde 2006 Israel, que travou seis guerras destrutivas em 25 anos, já não se atreve a aventurar-se no Líbano. Hoje em Gaza, sua terrível vingança covarde contra civis, sobretudo mulheres e crianças, não funciona a seu favor. Em termos militares, as forças fortemente armadas israelo-americanas, Tsahal e Delta, não foram capazes, em 40 dias de guerra feroz, reprimir o fogo dos combatentes, deter o Hamas ou capturar um único dos seus combatentes. A resistência de Gaza, de seu povo e de seus combatentes estão fazendo ressuscitar a batalha de Stalingrado.

6 – A opinião de que o governo sionista sabia do ataque palestino de 7 de Outubro e permitiu que este desencadeasse o massacre tem alguma base real?

Como já referimos anteriormente, Israel foi escandalosamente apanhado de surpresa. O comando passou a ocupar os gabinetes da Direção-Geral, que se apresentava como uma jóia da tecnologia. O ataque revelou as falhas estruturais do 5º exército mais poderoso do mundo; mostrou como este exército foi desestabilizado e começou a disparar contra tudo o que se movia, incluindo os seus próprios cidadãos. Estes fatos foram revelados tanto por membros do comando palestino como pela imprensa israelense, que citou testemunhas. Nasrallah também aludiu no seu discurso à perplexidade do exército israelenses, que disparou contra civis israelenses.

7 – Quais são os principais planos do imperialismo sionista que foram frustrados pelo ataque palestino?

O Hamas ainda não revelou as duas razões fundamentais da sua intervenção: a escolha da data e local da sua operação, mas vale a pena fazer algumas análises para caracterizar a situação:
– A necessidade vital de romper o bloqueio, após o fechamento dos túneis do lado egípcio em operações conjuntas israelo-egípcias em 2019, que sufocaram Gaza;
– A vontade de parar a limpeza étnica que ocorre na Cisjordânia desde 2020 e que atingiu 1.600 jovens, especialmente em Jenin, Nablus, Jerusalém e El-Hawara, onde houve um pogrom em 2022.
– O desejo de salvar El-Aqsa, santuário muçulmano e símbolo da capital da Palestina, que Netanyahu decidiu confiscar e abrir ao Muro das Lamentações. Os ataques nas orações de sexta-feira tornaram-se sistemáticos.
– Acabar com o processo de reaproximação entre a Arábia Saudita e Israel, que incluiu a construção, já iniciada, do Canal Ben Gurion (1) entre a Arábia Saudita e Israel, o qual deveria levar a Gaza.
– A intenção de Israel de tomar os campos marítimos de gás de Gaza (2).
– As repetidas declarações de Israel sobre a necessidade de reduzir a população de Gaza para metade e enviar a outra metade para o Sinai, bem como de enviar combatentes do Hamas para Guantánamo e os líderes políticos para o Qatar.

8 – Por que a solução de dois Estados, israelense e palestino, é inaceitável para as diversas correntes da Resistência Palestina, que descrevem esta proposta como uma colaboração com o inimigo?

Se quisermos resumir a história da ocupação da Palestina em algumas datas, diremos que a Palestina foi ocupada em três fases: a Nakba de 1948, a Naksa ou derrota de 1967 e os acordos de Oslo de 1993. Como reconhece Elías Sambar, chefe da delegação palestina responsável pelas negociações de paz, os assim chamados acordos de paz (sic), que duraram 32 anos, serviram apenas para reduzir gradualmente a Palestina. Hoje restam apenas 6% da Palestina original.

Além disso, uma das razões para a “popularidade” do Hamas, que foi eleito democraticamente em 2007 sob os auspícios de uma missão internacional de observação da ONU, é que os habitantes de Gaza, contra todas as probabilidades, escolheu este partido não pela sua “doutrina islâmica”, mas porque esta organização se recusa a depor as armas e a negociar um acordo de “capitulação”. Uma postura que custou a vida a uma dúzia dos seus líderes históricos, incluindo o seu fundador, o Xeque Yasin, brutalmente assassinado. Desde então, Israel colocou Gaza sob bloqueio como punição coletiva. Um bloqueio total que dura 17 anos, que transformou Gaza numa prisão a céu aberto, antes de se tornar um cemitério a céu aberto.

O Hamas não foi o único a rejeitar os Acordos de Oslo, conhecidos como Acordos Vergonhosos. Todas as outras organizações palestinas os rejeitam, incluindo facções do Fatah (Conselho Revolucionário), bem como a maioria dos líderes da OLP e personalidades próximas de Arafat, como Mahmoud Darwish, que escreveu os discursos de Arafat, ou Edward Said. O Estado dormitório, ou Estado-tampão presidido por Mahmoud Abbas, é acima de tudo um Estado de segurança concebido para proteger Israel. Na realidade, a solução de dois Estados nada mais é do que um engodo que permitiu a Israel continuar a desapropriar os palestinos, acelerando a construção de centenas de colonatos e a realização de limpeza étnica sistemática na Cisjordânia. Este ano, antes do 7 de Outubro, 266 jovens palestinos foram massacrados nas suas casas diante das suas famílias, numa operação preventiva, já que por decisão do Tsahal “estes jovens são terroristas” em potencial.

Israel nunca escondeu a sua intenção de “reduzir para metade, isto é – aniquilar um milhão de seres humanos – o número de palestinos na Faixa de Gaza”, provocando uma “Nova Nakba” e, portanto, o êxodo e o genocídio. O que estamos atualmente a viver em Gaza faz parte de uma longa e sangrenta provação para o povo de Gaza: em 2006, 400 mártires; em 2008-2009, 1.300 mártires; em 2012, 160 mártires; em 2014, 2.100 mártires; em 2021, quase 300 mártires; e na primavera de 2023, várias dezenas. Segundo Michèle Sibony [Michèle Sibony para Agence Média Palestine, 13 de outubro de 2023] (3), declarada anti-sionista e porta-voz da União Judaica Francesa para a Paz (UJFP): «Sabemos o que o objetivo de longa data é: “o menor número possível de palestinos no maior território anexado possível, desde o mar até ao Jordão”. Por outras palavras, uma terra esvaziada dos seus habitantes palestinos e aberta à colonização, uma verdadeira “grande substituição”.

Em um artigo publicado em Haaretz, intitulado “Por que os palestinos nos matam”, Amira Hass, jornalista israelense antissionista, comenta os acontecimentos de 7 de Outubro da seguinte forma: “Os palestinos não atiraram em nós porque somos judeus, mas porque somos os seus ocupantes, os seus torturadores, os seus carcereiros, os ladrões das suas terras e da sua água, os demolidores das suas casas, aqueles que os exilaram e bloquearam seus horizontes. Os jovens palestinos estão dispostos a dar as suas vidas e a causar uma enorme dor às suas famílias porque o inimigo que enfrentam mostra-lhes todos os dias que a sua crueldade não tem limites.”

Um dos criadores de Oslo, Gideon Lévy, que foi o braço direito de Simón Pérez , acaba de declarar numa conferência de imprensa em Nova Iorque que “Israel é responsável pelo que está acontecendo em Gaza e o problema não é o atual governo de extrema-direita, mas o fato de Israel recusar a paz e ter mentido o tempo todo. Para ele, Israel só tem uma ideia fixa: cumprir o que começou com a guerra de 1948. Tania Reinhardt já publicou um livro com o mesmo título. Para Israel, a paz “nada mais era do que um pretexto para ganhar tempo e terras e continuar a construir assentamentos”.

É evidente que a “paz” de Oslo foi feita sob os auspícios dos Estados Unidos, que queriam proteger o seu subordinado, dando-lhe reconhecimento internacional. Oslo deu a Israel o reconhecimento de todos os países asiáticos, incluindo a China, os países latino-americanos e 52 países africanos. Segundo Ilan Pappé, a chamada paz também deu ao Estado colonizador “a absolvição total de todos os seus crimes cometidos contra o povo palestino desde 1948”.

9 – O que mudou definitivamente na região desde o 7 de Outubro?

Ainda é cedo para avaliar todo o significado do acontecimento, que dependerá do resultado da guerra, mas o certo é que estremeceu a equação em que assenta o equilíbrio entre o arrogante Ocidente imperialista e os países do Sul. O fato de Israel ter devastado o norte de Gaza e matado 30.000 civis, 70% dos quais mulheres e crianças, e forçado um milhão e meio de pessoas a fugir, não significa que Israel tenha vencido. Após 40 dias de ataques, os seus objetivos não foram alcançados. É também verdade que a desocidentalização do mundo se acelerou para os países do Sul. O Ocidente bárbaro foi desmascarado diante dos povos. É marcante o fim das ilusões sobre a Europa como um modelo de democracia ou um santuário para os direitos humanos, e a sua verdadeira face foi revelada em todo o mundo. Os responsáveis no Ocidente são acusados de serem criminosos de guerra.

Segundo um jornal dos EUA, Israel é o país mais odiado do mundo, o que afetará o seu estatuto privilegiado. Num editorial intitulado “É hora de acabar com a relação especial entre os Estados Unidos e Israel”, Stephen Walt, professor de Relações Internacionais na prestigiada Universidade de Harvard (Boston MA), acrescenta que o “apoio incondicional” ao Estado de Israel começa a cobrar seu preço. “O custo desta relação estratégica está aumentando e este custo não é apenas político, mas também econômico.” E acrescenta: “Quando os Estados Unidos usam o seu veto três vezes, sozinhos, no Conselho de Segurança da ONU sobre um cessar-fogo, estão na verdade endossando o ‘direito de Israel se defender’, um direito que se apoia numa nova transação militar no valor de 735 milhões de dólares. Gastando muito ou não, os EUA não abandonarão a sua criatura Israel, mas tais vozes revelam uma nova realidade.

No que diz respeito à posição dos BRICS, constitui uma decepção total para o mundo árabe e especialmente para os movimentos de resistência. Os BRICS têm-se mostrado uma aliança exclusivamente econômica, que só zela pelos seus próprios interesses. Isto está muito longe do espírito do Não-Alinhamento ou de Bandung. Estão interessados em que os EUA afundem no Oriente Médio e esperam tirar partido disso.

10 – Qual a importância da solidariedade internacional nos países que estão hoje no centro do imperialismo?

De Los Angeles ao Rio de Janeiro, de Estocolmo a Madri, da Tunísia à Cidade do Cabo e de Bombaim a Sydney, a opinião pública mundial tem expressado a sua revolta frente à guerra impiedosa de Israel contra os palestinos há mais de um mês. Agora que as massas tomaram conta da internet para a colocar a seu serviço a sua causa, desafiando e contornando todos os métodos repressivos das multinacionais que dominam os meios de comunicação social, conseguiram abrir uma brecha no muro midiático para mostrar o que está acontecendo no território e transmitir aos habitantes de Gaza a solidariedade dos povos em todo o mundo.

As manifestações massivas em todas as principais cidades do mundo são o testemunho de uma revolta contra os crimes de Israel e dos seus protetores envolvidos em ações militares com os Estados Unidos; uma revolta contra a hipocrisia de um Ocidente que moveu céus e terras contra Putin a um ponto que beira o racismo anti-russo, enquanto aqui permanecem silenciosos contra estes crimes sórdidos. Assim, enquanto os Estados Unidos se consideram o principal defensor de Israel , é interessante notar que as imagens de manifestações estudantis em apoio ao povo palestino nos campi estadunidenses mostram uma mistura heterogênea de árabes, descendentes de escravos americanos e netos de emigrantes latino-americanos.

A opressão sofrida pelo povo palestino é ecoada tanto pelos países do Sul como por uma parte importante dos cidadãos dos países do Norte, que se lembram da opressão sofrida durante séculos de colonização e dominação, e até mesmo da humilhação e da crueldade infligidas por parte de seus antepassados. Israel aparece assim como o último dos países “brancos” a oprimir um povo do Sul. E o palestino despossuído, pobre e aterrorizado torna-se um símbolo de classe. Lendo as faixas dos manifestantes, tem-se a impressão de que a “exceção israelense”, concedida pelo Ocidente em nome das vítimas do Holocausto, e que minimiza o sofrimento e a crueldade sofrida por outros povos do mundo, em breve chegará ao fim.

É preciso dizer que esta solidariedade internacional é alimentada pela resistência e pelo sacrifício de um povo martirizado que sofre três guerras ao mesmo tempo: o terrível bloqueio total, o genocídio e o êxodo. Um representante da FPLP declarou que “o nosso povo recusa-se a partir, aprendeu desde a primeira Nakba que, se deixarem a sua terra natal, nunca mais regressarão; então sua única opção é “vencer ou morrer”. Permanecer na sua pátria já é uma vitória.

Pessoalmente, estou convencida de que a batalha de Gaza é a batalha de todos nós, tal como foi a Guerra Civil Espanhola, a de Beirute em 1982, ou a do Líbano em 2006. Ainda ressoam em meus ouvidos as palavras de Miguel Urbano quando veio saudar a resistência: “Onde o imperialismo concentra as suas forças militares, políticas, econômicas e midiáticas, aqueles que o confrontam fazem-no em nome de toda a humanidade.” A queda de Gaza será a queda de todos nós perante a barbárie capitalista. O mérito desta solidariedade é ter apontado o dedo ao nosso inimigo de classe.

Novembro de 2023

* Verso da poesia “Galope” de Rafael Alberti:

Nadie, nadie, nadie, que enfrente no hay nadie;
que es nadie la muerte si va en tu montura.
Galopa, caballo cuatralbo,
jinete del pueblo,
que la tierra es tuya.

¡A galopar,
a galopar,
hasta enterrarlos en el mar!

1 – Nota de tradução. A importância estratégica do Canal Ben Gurion (Ben Gurion é o nome do líder sionista que dirigiu o massacre e expropriação do povo palestino em 1948) que iria do Mar Vermelho a Gaza, uma alternativa ao Canal de Suez e que canalizaria 30% do comércio mundial de energia, pode ser entendida aqui: https://es.sott.net/article/90564-Israel-se-propone-abrir-el-Canal-Ben-Gurion
 
2 – Nota de tradução. A importância do campo de gás da Marina de Gaza estimada em 30 bilhões de metros cúbicos, juntamente com outros campos de gás e petróleo encontrados em terra, entre Gaza e a Cisjordânia, na atual guerra de Israel contra a Palestina, é analisada aqui: https://www. palestinalibre.org/articulo.php?a=51528

3 – Michèle Sibony para l’Agence Média Palestine, 13 outubro de 2023Tradução do espanhol para o português: Partido Comunista Brasileiro (PCB)