40 anos sem Vianinha, intelectual comunista e dramaturgo da condição humana

Às vésperas de se completarem 40 anos da morte do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) – um dos mais importantes intelectuais do país e militante histórico do Partido Comunista Brasileiro -, publicamos a seguir entrevista com Dênis de Moraes, professor da Universidade Federal Fluminense e autor do livro Vianinha, cúmplice da paixão: uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho (Record, 2000), na qual analisa a sua rica trajetória como homem de cultura e ativista político.

Vianinha ingressou no PCB aos 9 anos de idade, em 1945, pelas mãos do pai, o também, dramaturgo comunista Oduvaldo Vianna. Permaneceu fiel ao Partido até a sua morte, aos 38 anos, em 16 de julho de 1974, tendo sido destacado integrante do Comitê Cultural desde os anos 1960. Foi um dos líderes do Teatro de Arena de São Paulo, do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes e do Grupo Opinião (movimento teatral de resistência à ditadura militar pós-1964). Nenhum outro autor teatral brasileiro recebeu tantos prêmios por suas peças, a maioria das quais proibida pela ditadura, entre elas a obra-prima Rasga coração, que é dedicada por ele “à velha guarda comunista”, como preito de gratidão pelas lições de coragem e combatividade em defesa da democracia e do socialismo.

Nos anos 1970, Vianinha contribuiu decisivamente para a renovação da teledramaturgia, com adaptações de clássicos teatrais para a televisão e o extraordinário seriado A grande família, exibido pela TV Globo e escrito em parceria com outros dois dramaturgos e militantes do PCB, Paulo Pontes e Armando Costa. Com rara habilidade para driblar as censuras policial e empresarial, essa comédia de costumes, protagonizada por uma família de classe média remediada, expunha as dificuldades enfrentadas pelo população durante os anos de chumbo. Vianinha conseguiu atrair audiência de massa com um seriado que sutilmente criticava a política econômica antissocial vigente, bem como a mentalidade reacionária e repressiva do regime militar.

Atuando em praticamente todos os meios de expressão do seu tempo, Vianinha foi um lutador social incansável, com clareza suficiente para perceber o papel dos intelectuais engajados na batalhas das ideias pela construção de outra hegemonia política e cultural.

Por Maura Voltarelli

Poucos são os artistas que conseguem unir à estética própria da obra de arte, as questões sociais e humanas de seu tempo. Oduvaldo Vianna Filho (1936–1974), mais conhecido como Vianinha, foi um deles. Com fortes bases teóricas em dramaturgos como Brecht, Vianinha foi um autor e ator que atuou nas mais diversas áreas. Fez teatro, televisão, cinema, jornalismo e até teoria crítica da cultura, faces múltiplas que fizeram da sua arte uma permanente passagem pela poesia e pelo social.

As questões humanas, a sociedade em que viveu, a política, os desafios, os sonhos de uma época estão expressos nas suas diversas peças de teatro. Todas com enredos e personagens originais, além de propostas quase sempre ousadas – principalmente para a década de 60 e posteriores anos de Ditadura Militar, contexto em que Vianinha mais produziu – grande parte delas foi censurada e o próprio Vianinha morreu sem ver algumas encenadas como Papa Highirte, que foi escrita em 1968 e montada onze anos depois, e Rasga Coração, que trabalha com uma multiplicidade de planos a alternar tempos, espaços e personagens distintos para falar da psicologia e das relações familiares de três gerações, de Getúlio Vargas ao Golpe Militar.

O teatro de Vianinha também produziu peças como Chapetuba Futebol Clube e A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar que traduz, por meio de uma prosa poética e, ao mesmo tempo, irônica, a teoria da mais valia.

Vianinha, no entanto, não fez viver sua consciência política e social apenas nos textos de teatro. Sempre engajado nas lutas e discussões de seu tempo, ele foi participante ativo do Teatro de Arena, de onde se desligou após a montagem de Eles Não Usam Black-Tie para fundar o Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE).

Em 1964, com o Golpe Militar e a extinção do CPC, participou da fundação do Grupo Opinião e, em 1973, em plena Ditadura Militar, aventurou-se no terreno da televisão e escreveu o seriado A Grande Família, com Armando Costa. Uma comédia de costumes que, tomando como protagonista uma remediada família brasileira, conseguiu driblar duas censuras, a da TV Globo e a dos militares, e produzir um conteúdo crítico que evidenciava a difícil vida do país nos “anos de chumbo”.

Ao lançar um olhar sobre sua trajetória, a impressão que se tem é que, para Vianinha, arte e vida sempre caminharam juntas. A intensa poesia e a elevada dramaticidade presentes nos seus textos teatrais eram as mesmas que ele encontrava nas ruas, nos movimentos populares.

E foi assim, popular, que ele se fez. Popular e revolucionário. Um teatro crítico e social, mas com uma nítida preocupação em não se fechar em torno de si mesmo e falar ao povo, de onde ele emanava. É sobre Vianinha e sua arte engajada que o jornalista, escritor e professor Dênis de Moraes, autor da biografia Vianinha, cúmplice da paixão, fala nesta entrevista.

Entre outras coisas, Dênis de Moraes mostra a expressiva relação entre o teatro de Vianinha e o do dramaturgo alemão Bertold Brecht ao dizer que em ambos havia uma preocupação fundamental: “atuar sobre o real para mudar o mundo que não serve, porque reifica, marginaliza, exclui e castiga”. Também lembra que o mundo expressivo de Vianinha transcendia os gêneros teatrais e que o teatro foi, para ele, a descoberta de uma ferramenta poderosa de expressão, participação e intervenção em um mundo hostil e injusto, espécie de cimento para as suas convicções mais genuínas e profundas. Convicções essas que, muitas vezes, colocaram Vianinha diante do dilema entre o que se quer ser e o que se pode ser.

Dilemas à parte, segundo Dênis, em apenas 38 anos de vida, esse genuíno artista viveu pelo menos 100, escrevendo uma história apaixonante que nunca parou de se renovar. “Diariamente, penso nele e tento aprender e me orientar por suas lições de coerência e de coragem para travar o bom combate. Sobretudo nos momentos mais difíceis e quando tenho dúvidas”, diz o escritor.

E talvez seja isso mesmo o que se espera dos grandes artistas: que a eles possamos voltar, às suas palavras, às suas imagens, aos seus sons, nos momentos mais difíceis, ou quando temos dúvidas…

Maura Voltarelli: Quero começar a entrevista com uma frase de Brecht que parece dizer algo sobre o teatro de Oduvaldo Vianna Filho, O Vianinha, de quem você escreveu a biografia, e também sobre a postura deste autor e ator diante da arte e da vida. O dramaturgo alemão diz “apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la”. Vianinha teria, de certa forma, tomado de empréstimo essas preocupações de Brecht em situar sua obra teatral no âmbito de uma perspectiva social, refletindo e discutindo ele também a realidade social de seu povo, país e época como forma de revelar a dominação e desigualdade social, esclarecendo e dizendo por meio da arte aquilo que outros já não eram capazes de dizer?

Dênis de Moraes: Sem dúvida. Não é casual o fato de Brecht ser uma das referências fundamentais no aprendizado teórico de Vianinha, ainda na fase do Teatro de Arena de São Paulo e, sobretudo, após o célebre Seminário de Dramaturgia que Augusto Boal dirigiu naquele grupo, em fins da década de 1950. O sentido precípuo do trabalho intelectual de Vianinha era fazer da expressão artística uma ferramenta para intervir na realidade e, em um processo de lutas contínuas e permanentes, transformá-la, na direção de uma sociedade mais igualitária, justa e inclusiva. Vianinha e Brecht coincidem em vários pontos. Um dos mais relevantes: a exigência insuperável de uma dramaturgia que investigue as aspirações e os dilemas da condição humana, em conjunturas quase sempre marcadas por conflitos, desigualdades e discriminações de todo o tipo. Atuar sobre o real, para ambos, não significava apenas tomar os elementos da vida cotidiana e social como fontes de inspiração; implica processar e angular esses elementos em uma perspectiva de compreensão aprofundada para formular e propugnar por um ideário de radical transformação. Mudar o mundo que não serve, porque reifica, marginaliza, exclui e castiga. Aos artistas e intelectuais conscientes e comprometidos se impõe, para Brecht e Vianinha, uma atitude dialética entre a observação crítica da realidade e a definição de formas estratégicas e táticas capazes de sintonizar a produção artística e intelectual com a ação política emancipatória.

Maura: Vianinha escreveu muito. São diversas peças, com enredos e personagens originais, além de propostas quase sempre ousadas, principalmente para a década de 60 e posteriores anos de ditadura militar. Muitas de suas peças foram inclusive censuradas e ele próprio faleceu sem ver algumas delas encenadas como Papa Highirte e Rasga Coração. De onde vem toda força do teatro de Vianinha? Da qualidade do texto, bem escrito, com uma poesia própria que aparece em versos rimados e sonoros? Do didatismo, ou seja, da preocupação em revelar certos mecanismos de funcionamento da estrutura social, como o da exploração capitalista, por exemplo, esboçado na peça A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar, na qual as formas de dominação se revelam ao público enquanto se revelam para o próprio personagem e onde também existe certa veia cômica dos tipos humanos representados e das situações? Ou é uma combinação de tudo isso?

Dênis: Uma combinação de tais inspirações e compromissos. Em Vianinha não havia dissociação entre o trabalho artístico, a ousadia criativa e as intenções sociais e política de uma obra dramatúrgica. Ele foi capaz de experimentar-se dos textos de agitação e propaganda até as elaborações mais sofisticadas, não hesitando em valer-se de fórmulas outras que pudessem retratar suas visões de mundo, como as comédias de costumes, os shows musicais e os roteiros televisivos. Se observarmos bem, em qualquer desses experimentos imaginativos há traços que o distinguem como autor, como a fenomenal carga poética, a aguda dramaticidade , a argúcia para o humor e a ironia, a corrosiva crítica social. São elementos constitutivos de seu mundo expressivo que transcendem os gêneros teatrais, e parecem mesmo se infiltrar entre eles, com efeitos estilísticos e de comunicabilidade os mais diversos. É importante ressaltar que, no limite do possível e mesmo do impossível, ele jamais admitia renunciar à busca da construção em nome dos apelos ideológicos. Talvez tenha sido um de seus grandes méritos como homem de teatro: na ampla maioria de sua obra, não submeteu a sensibilidade aos cálculos políticos da hora, por mais que o sentido da política o norteasse e o demandasse o tempo inteiro. Digo ampla maioria porque, evidentemente, houve exceções, como os autos de agit-prop e didatismo do CPC, por exemplo, ainda que possamos apontar o seu esforço em forjar ali tipos de espetáculos que tentassem encurtar o caminho de compreensão de problemas cruciais da realidade brasileira para plateias populares (o que, afinal, não alcançou êxito, inclusive pelo corte brutal das experiências do CPC pelo golpe militar de 1964). Vianinha tentava harmonizar o impulso criativo e as razões de ser de seu teatro, que se projetavam para muito além de círculo existencial, ainda que também o refletisse em inúmeras situações evidenciadas em suas peças, roteiros e escritos.

Maura: Entre os escritos de Vianinha está também o seriado para TV A Grande Família, escrito em 1973, durante a ditadura militar, com Armando Costa e que faz sucesso até os dias de hoje. É interessante perceber que no meio de tantas peças Vianinha também escreveu para televisão escolhendo justamente como tema a família brasileira. Como você vê essa criação no contexto da trajetória artística de Vianna Filho? Em que medida ela dialoga com a linha crítica e social da sociedade e dos seus costumes presente em sua obra teatral?

Dênis: O seriado A Grande Família, escrito em plena ditadura militar, é a demonstração definitiva do talento criativo e da incrível habilidade de Vianinha para tentar driblar as duas censuras (a do regime e a da própria emissora, a TV Globo). A partir do cotidiano de uma família da classe média remediada, ele conseguiu traduzir aspirações e dilemas de boa parte da sociedade brasileira em meio ao chamado milagre econômico. Enquanto a máquina governamental de propaganda enaltecia os feitos do governo do general Médici, o seriado focalizava as agruras e as dificuldades impostas pelo modelo econômico excludente, perverso e entreguista em que o país vivia, com níveis alarmantes de concentração de renda e riqueza, ao mesmo tempo que as perseguições, as prisões, as torturas e os assassinatos de opositores do regime aconteciam, sob o manto do silêncio, nos porões de quartéis e órgãos de segurança. Vianinha soube mesclar a interpelação crítica da realidade com a comédia de costumes, criando uma atmosfera familiar à ampla maioria dos telespectadores, ao mesmo tempo em que infiltrava nos scripts uma série de temas, questões e impasses que caracterizavam a difícil vida do país nos anos chumbos. Tudo isso dentro de uma emissora de televisão que se alinhava ao regime militar e à sua política econômica elitista e antipopular. A enorme empatia do público com o seriado por certo contribuiu para dificultar uma censura mais severa por parte da Globo, na medida em que personagens e situações faziam somar pontos, fidelidade e liderança de audiência. Vianinha, na prática autoral, conseguiu evidenciar a importância de se explorarem brechas e contradições dentro dos grandes meios de comunicação, ocupando espaços preciosos na formulação de uma teledramaturgia mais próxima da moldura social brasileira, com sua carga atômica de mazelas, desigualdades e exclusões. Quanto à atual versão de A grande família, cabe registrar o sucesso de audiência conquistado em todos esses anos. Mas, à exceção do notável desempenho de Marco Nanini em um personagem (Lineu) muito fiel à concepção original de Vianinha, penso que a versão no ar está muito longe de espelhar a riqueza e a energia crítica da versão original, que, como já ressaltado, foi exibida nos piores anos da repressão e, ainda assim, promovia um questionamento até mais inteligente, articulado e incisivo.

Maura: A preocupação social que Vianinha deixa escorrer para a maioria de seus textos também parece ter acompanhado boa parte da sua vida pessoal. Sempre engajado nas lutas e discussões de seu tempo, ele foi participante ativo do Teatro de Arena, fundou o Centro Popular de Cultura (CPC) ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), participou da fundação do Grupo Opinião e também fundou o Teatro do Autor. Diante de toda essa trajetória ligada ao ativismo e participação nos processos sociais e históricos nacionais, é possível separar o artista do homem no caso de Vianinha? Aliás, tal separação seria possível na arte de forma geral e, particularmente, no teatro?

Dênis: Vianinha nasceu, cresceu, formou-se e tornou-se adulto em uma família de militantes comunistas, como eram seus pais, o dramaturgo Oduvaldo Vianna e Deocélia Vianna. A construção de sua fisionomia política e intelectual tem muito a ver com a trajetória de resistência e luta dos pais. Os valores que ele assumiu ao longo da vida – sobretudo a necessidade de solidarizar-se com os oprimidos, recusando e combatendo o egoísmo e a ganância do meio burguês, bem como a exploração do homem pelo homem – desbordaram para a sua obra teatral de maneira coerente e permanente. Não havia linhas de fronteira entre vida e criação; eram, na maioria das situações, uma simbiose, ou uma relação de extensão, fertilização mútua e complementaridade. Ele seguia uma existência quase franciscana, vivendo com o mínimo indispensável à sobrevivência, totalmente refratário ao consumismo, à acumulação material, à ostentação e ao desperdício. Detestava a mentalidade consumista, os valores e a hipocrisia social. Tudo o que escreveu estava impregnado dessas visões de mundo, desses compromissos ético-políticos. Não foi, portanto, um teórico do que se poderia ser; ele, a muito custo e enfrentando dificuldades financeiras e incompreensões de várias ordens, procurava praticar, coerentemente o que pensava e acreditava (desafio imenso, quase uma impossibilidade, se extremarmos esse compromisso). Assim podemos vê-lo no Teatro de Arena, no CPC, no Opinião, tanto quando escrevia ou representava, tanto quando debatia, propunha ideias, pelejava por alternativas e saídas. É claro que se deparou, frequentemente, com o dilema, tantas vezes dilacerador, entre o que se quer ser e o que se pode ser. Não é casual que, em várias peças, esse mesmo dilema aparece a alguns personagens, sobretudo quando se trata de alguém que tem compromissos com a transformação social e esbarra em obstáculos de monta, desde a família até as engrenagens de dominação, passando pelas tensões profissionais e pelas crises afetivas e amorosas. Então, não se pode absolutamente separar o homem do criador em Vianinha, sob pena de desfigurá-lo.

Maura: Falando em teatro, em livros que narram a formação do sujeito burguês clássico como Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, do escritor alemão Goethe, o personagem principal se apaixona pelo teatro, mas, no caminho de sua formação, acaba deixando de lado tal paixão para que a sua entrada no mundo burguês fosse possível. Essa separação entre o teatro e o mundo burguês aconteceria, pois nos palcos, o sujeito pode ser tudo e viver em constante metamorfose e redescoberta de si mesmo, invocando justamente tudo aquilo que a sociedade burguesa procura sufocar, ou seja, o mundo mítico, a totalidade, o encantamento com o corpo, com as cores, com o ser. Em outras palavras, o teatro é tudo aquilo que a sociedade burguesa não quer. Neste sentido, seria o teatro o destino maior de uma personalidade como a de Vianna Filho, crítica, revolucionária, e a forma clássica por excelência para que sua consciência social e sua luta contra o imperialismo cultural pudessem jorrar? Ou, perguntado de outra forma, alguém como Vianinha renunciaria ao teatro e seria capaz de viver em um mundo onde a possibilidade de experimentar a totalidade não existisse?

Dênis: O percurso de Vianinha até o teatro foi influenciado, como mencionei, pela atmosfera familiar e também pelo contexto das lutas sociais e políticas dos anos 50. A sociedade burguesa e o tipo de desenvolvimento excludente e elitista que o Brasil então reproduzia (e dramaticamente continua reproduzindo mais de meio século depois, na atualidade) eram recusados ferozmente pela geração estudantil da qual Vianinha participava. O teatro foi, para Vianinha, a descoberta de uma ferramenta poderosa de expressão, participação e intervenção em um mundo hostil e injusto. Nesse sentido, sim, se constituiu em destino maior para uma personalidade rebelde, questionadora, inconformada. Tanto assim que o grupo no qual ele despontou e depois viria a ser um dos expoentes, o célebre Teatro de Arena de São Paulo, se projetou no cenário artístico e cultural do país como um dos principais centros de formação de consciência crítica, seja no plano interno do grupo (formando e/ou consolidando uma admirável geração de atores e diretores engajados politicamente), seja no plano externo, na medida em que constituiu em torno de si plateias receptivas a um teatro participante, crítico e empenhado em levar aos palcos o homem brasileiro, em suas múltiplas dimensões (as convergências, as diferenças, os conflitos, os anseios, as dúvidas, as esperanças, os limites, as frustrações, as conquistas, as utopias). Assim sendo, o teatro foi um cimento para as convicções mais genuínas e profundas de Vianinha; tudo aquilo que ele sentia e almejava, tudo que lhe incomoda e doía, tudo aquilo que tinha urgência e impelia à criação e à interpretação estavam relacionados, efetivamente, a uma busca, determinada, vigorosa e às vezes desesperada, de uma totalidade que refletisse não apenas o seu ser e estar no mundo, mas o mundo mais amplo, em seu ser e estar tão contraditório e fascinante. Daí eu perceber em Vianinha a necessidade de sínteses dialéticas entre a dimensão do indivíduo e a dimensão coletiva, o que não se alcança sem um profundo mergulho em nós mesmos e nas teias que a sociedade estabelece à nossa volta, com todas as consequências existenciais, sociais e políticas daí decorrentes.

Maura: Você escreveu sobre a vida de um homem que, por sua vez, escreveu e viveu a vida de muitos outros homens sempre de forma intensa, onde o social, o indivíduo, as paixões e todas as misérias do ser e do mundo pulsavam em cada ato. Qual o maior desafio em biografar um ator e alguém como Oduvaldo Vianna Filho?

Dênis: Vianinha, em apenas 38 anos, viveu pelo menos 100, tamanha a intensidade de seu envolvimento com suas crenças e com a exigência crucial de tentar transpô-las para fora de si, através do teatro e da arte, o que implicou um esforço descomunal para superar as contingências cotidianas e as barreiras impostas pelas circunstâncias dos contextos em que viveu, sobretudo durante a ditadura militar. Esse esforço o tornou um homem múltiplo e mesmo multimídia (fez teatro, televisão, cinema, jornalismo, teoria crítica da cultura), ao mesmo tempo em que era um militante comunista em tempo integral, no setor cultural. Tudo confluía para o ponto-chave: fazer política, lutar sem trégua pelas causas democráticas, socialistas e humanistas, explorando todos os espaços possíveis na batalha das ideias. Ele resumiu esse compromisso inabalável com as lutas sociais, mesmo nas condições mais adversas, numa de seus reflexões mais agudas: “Uma derrota não significa a falência de nossas convicções; antes, significa que precisamos aprimorar nossos planos de ataque.”

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