No Pará, indígenas lutam contra Vale
O Território Indígena Mãe Maria, no município de Bom Jesus do Tocantins, é um respiro de verde no Pará, estado que lidera o ranking de desmatamento da Amazônia Legal, conforme os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nele vivem três povos indígenas – Gavião Akrãtikatêjê, Gavião Kykatejê e Gavião Parkatêjê – que somam pouco mais de 700 habitantes (Siasi/Sesai 2013). Eles se dividem atualmente em nove aldeias, em uma área de 62 mil hectares de floresta preservada na região sudeste do estado, pressionada há mais de 30 anos pela mineração e por obras de infraestrutura.
A reportagem é de Joana Zanotto, publicada pela Agência Pública, 12-06-2015.
Os Parkatêjê são os mais numerosos entre os povos de Mãe Maria, embora tenham perdido mais de 70% da população após o traumático contato com não indígenas, ocorrido durante a década de 1950. O território que habitam foi alvo dos projetos de integração do governo militar. Hoje é cortado pela rodovia BR-222, pela linha de transmissão de energia de Tucuruí, da Eletronorte, e pela estrada de ferro Carajás, alvo da batalha mais recente travada pelos Gavião – incluindo os Parkatêjê – com a mineradora Vale S.A.
A ferrovia foi construída no início dos anos 1980, durante o governo de João Figueiredo, último presidente da ditadura militar, e começou a operar em 1986, na transição democrática do país. Pertencia à então estatal Companhia Vale do Rio Doce, privatizada em 1997. O trilho de 892 quilômetros liga as minas da Floresta Nacional de Carajás (PA) ao terminal marítimo de Ponta da Madeira, no Maranhão, cortando terras indígenas, quilombos e 22 unidades de conservação.
O barulho, os atropelamentos, e os danos ambientais provocados pela estrada de ferro nas comunidades do entorno prometem aumentar. Em novembro de 2012, o Ibama concedeu Licença de Instalação (LI) para o projeto de expansão da mineração da Vale S.A. na Floresta Nacional de Carajás. Além da abertura de uma nova frente de extração de minério na floresta, o projeto prevê a duplicação de 786 quilômetros da via, em linha paralela à existente. O objetivo é ampliar a produção e exportação de minério de ferro escoada pela ferrovia, passando de 130 milhões de toneladas/ano para 230 milhões de toneladas/ano até 2018 (veja aqui a série sobre o tema no especial Amazônia Pública).
As obras em terras indígenas são submetidas à legislação específica, e por isso a LI 895/2012, concedida pelo Ibama para a duplicação, não contemplava os trechos em que a ferrovia atravessa o território Mãe Carú, no Maranhão, e o Mãe Maria. Exige-se antes a aprovação do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima ) e do Estudo de Componente Indígena pelas comunidades atingidas, em um processo intermediado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A partir desse ponto, é elaborado o Plano Básico Ambiental, em conjunto aos indígenas, com a especificação das ações mitigatórias de redução de impacto, condição para que a licença seja retificada e as obras em trechos condicionados, liberada.
A LI 895/2012 foi retificada duas vezes. Na última, datada de 4 de dezembro (confira o documento na íntegra), os trabalhos em Mãe Carú foram autorizados. O Ministério Público Federal do Maranhão tenta sua anulação. Já em Mãe Maria, ainda se espera a manifestação definitiva da Funai.
No início deste ano as desavenças aumentaram. A companhia rescindiu o Convênio nº 0333/90 firmado entre os Parkatêjê e a mineradora – na época, estatal CVRD – em 1990 e estendido aos demais povos Gavião à medida que estes se dividiam em novas aldeias, em busca de autonomia. O convênio, de prazo indeterminado, garantia aos indígenas assistência à saúde, educação, fomento a atividades produtivas, vigilância e proteção territorial. Para cumprir suas obrigações, eram acordados termos de compromisso, com tempo de vigência estipulado, estabelecendo-se o valor dos repasses financeiros, renovados geralmente a cada cinco anos. A assistência à saúde era garantida pelo Plano de Assistência à Saúde do Aposentado da Vale (Pasa).
Com a expiração dos termos de compromisso prevista para janeiro, desde novembro passado a ValeS.A. passou a negociar com os Gavião a assinatura de novos termos. Numa reunião no dia 25 de fevereiro entre as comunidades e a empresa, intermediada por assessoria jurídica dos indígenas, a posição da mineradora foi manter os repasses de custeio mensais ajustados pelo IPCA, sem aporte financeiro para demais projetos.
Insatisfeitos, os Parkatêjê e os Akrãkaprêkti ocuparam o leito da ferrovia como protesto. O advogado Anderson Costa Martinez, da assessoria jurídica do povo Parkatêjê, diz que não houve fechamento da estrada, apenas uma movimentação dos indígenas. Não é a primeira vez que manifestações desse tipo ocorrem; em 2003, a ação dos indígenas chegou a ser reprimida com violência por tropas da Polícia Federal.
A resposta da Vale S.A.: benefícios suspensos
Como resposta, a ValeS.A. rescindiu o convênio e interrompeu o pagamento do termo de compromisso, expirado em janeiro, além de cancelar a assistência de saúde. Segundo Luana Andrade, a empresa não tem obrigação legal de manter o convênio, e a atitude dos indígenas fez com que os denunciasse por “justa causa”, porquanto o fechamento da estrada envolve “questão de segurança operacional com pessoas na faixa”. “Uma locomotiva não freia de uma hora pra outra”, diz a gerente da Vale.
A procuradora da República Andrea Costa de Brito discorda da posição da companhia. Segundo ela, “os acordos firmados com a ValeS.A., ao contrário do que a empresa sustenta, no sentido de que seria mera liberalidade, decorre de previsão contida no artigo 231, §3º da CF-88. Pode-se afirmar que a nova Constituição de 1988 tornou verdadeira obrigação, portanto, imposição. Risco de parar de efetuar repasses sempre há, mas, certamente, caso a exploração das terras persista, iria flagrantemente contra a lei.”
O Ministério Público Federal deu início a uma ação civil pública, requerendo no início de março que a Vale S.A. fosse “imediatamente compelida a sustar toda e qualquer determinação de suspensão do atendimento aos indígenas às empresas prestadoras de serviço, restabelecendo-se imediatamente o plano de saúde dos indígenas Gavião, devendo, também, ser impedida de proceder a novas suspensões”. Na ação afirma-se que a “situação não configura justa causa para a rescisão do convênio, o qual, frise-se, não se consubstancia em mera liberalidade por parte da requerida, mas se trata, sim, de obrigações assumidas em contrapartida à concessão de direito real de uso da Terra Indígena Mãe Maria”.
A procuradora da República Lilian Miranda Machado ainda atesta na ação que “afirmou a Vale S/A no Ofício encaminhado às comunidades e a este Órgão que teria havido a interdição da Estrada de Ferro Carajás. Ocorre que a própria empresa ajuizou uma ação de interdito proibitório e não de reintegração de posse, o que demonstra que interdição ou ocupação por parte dos indígenas não ocorreu. Desde já fica evidenciada a má-fé da ValeS/A no trato com os indígenas, afirmando situação que sabe não ter ocorrido. Não é demais frisar que, conforme certificado por oficial de justiça no bojo da ação de interdito proibitório ajuizada pela requerida, não houve interrupção, e nem haveria, no trânsito de locomotivas na linha férrea. Não houve, assim, nenhuma ameaça e, muito menos, foi colocada em risco a segurança e a vida dos usuários do trem de passageiros, funcionários e dos próprios indígenas”.
Em abril, a mineradora voltou a disponibilizar às comunidades o plano de saúde em sua integralidade após a recomendação do Ministério Público Federal. No mesmo mês, os Parkatêjê assinaram novo termo de compromisso, com tempo delimitado de vigência, sem reatar o convênio. O novo valor de custeio mensal é de R$ 547 mil, até janeiro era de R$ 639 mil. Dos nove grupos de Mãe Maria, três continuam sem receber o termo de compromisso: os Kyikatêjê, os Koyakatie os Kriãmretijê.
Segundo a advogada dos três povos, Cristiane Bline, a Vale S.A. condicionou o termo de compromisso à retirada da ação judicial, movida por meio de sua assessoria jurídica, pedindo a retomada do convênio. Os grupos alegam que não participaram da manifestação de fevereiro e que, portanto, não deveriam perder o direito ao convênio. Cristiane afirma que os índios estão em condições ruins, com pessoas passando fome e sob fortes ameaças dos fornecedores de alimentos, a quem devem dinheiro.
No dia 18 de abril, a pedido da mineradora, foi expedido mandado de reintegração de posse pelo juiz federal da 2ª vara, Bruno Teixeira de Castro, sob alegação de fechamento da ferrovia pelos Kyikatêjê, Koyakati e Kriãmretijê. O documento afirma que “a conduta dos indígenas possui um desvalor gigante, que beira os limites do ardil, da torpeza e da vilania”. Ainda diz que eles “buscaram, por meio da força, da violência e da anarquia, impor seus interesses”.
No dia seguinte, de acordo com uma certidão expedida pela oficial de Justiça Maria José de Freitas, os representantes dos três povos foram à Polícia Federal, acompanhados da Funai, do antropólogo do Ministério Público Federal e da advogada Cristiane e “alegaram todos, não terem os indígenas, esbulhado ou turbado a estrada de ferro e sua área de domínio, tendo realizado tão somente manifestação pacífica, sem impedir a passagem de qualquer composição da Vale”. O documento prossegue: “Declarou o Delegado Viana, após o sobrevoo da área com a Polícia Militar, que não havia obstrução da ferrovia, nem presença de indígenas no local indicado pela Vale, tendo a composição seguido normalmente pelos trilhos da ferrovia, sendo desnecessário disponibilização de efetivo policial à reintegração”. Os três grupos continuam sem receber o custeio mensal repassado pela mineradora.
Os Parkatêjê sempre lutaram contra a tutela do Estado, exigindo autonomia para gerir seu território e negociar compensações por conta própria. Hoje, duas aldeias distantes quatro quilômetros uma da outra formam o lar dos 422 indígenas. A aldeia do “Trinta” e o “Negão” têm casas de alvenaria, escola, campinhos de futebol, enfermaria, igreja e uma sede para a associação administrativa do povo. O portão de entrada é guardado por três indígenas da Guarda Florestal – da própria comunidade –, que impedem a entrada de bebidas alcoólicas e exigem a identidade de quem entra. A ferrovia atravessa toda a parte sul do território, a menos de dez quilômetros de uma das aldeias, em área concedida pela União para o empreendimento.
Embora sejam conhecidos como “Gavião”, a alcunha que receberam dos moradores da cidade, que os temiam, os indígenas se autodenominam Parketêjê. Mais tarde eles provariam coragem ao enfrentar a invasão de seu território, cortado pelo rio Tucuruí e modificado pela barragem e a linha de energia da Eletrobras já na inauguração do Programa Grande Carajás, em 1976. A antropóloga Iara Ferraz, que auxiliou os índios nas conversações com o governo e seus representantes, relatou na sua dissertação de mestrado para a USP, escrita em 1984, que “em abril de 1980, os presidentes da FUNAI e da Eletronorte estiveram na aldeia do ‘Trinta’ e, nessa ocasião, apresentaram ameaças explícitas de intervenção militar naquele território, caso os componentes do grupo não aceitassem uma contraproposta de indenização”. Segundo a antropóloga, em “maio de 1980, o representante tutelar regional esteve no Mãe Maria para convencê-los a aceitar a indenização, enfatizando a possibilidade de intervenção militar na área”.
Dois anos depois, em 1982, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) firmou um acordo de cinco anos com os Parkatêjê. O Banco Mundial, financiador do Projeto Grande Carajás, determinou que os recursos financeiros, então advindos de um convênio assinado entre a Funai e a CVRD, fossem destinados a “projetos de apoio” aos indígenas afetados pela ferrovia. Foi por meio desse convênio que, em 1984, os indígenas receberam uma indenização de 56 milhões de cruzeiros – U$$ 1 milhão – quando a estrada de ferro Carajás começou a ser construída. Desde o início, porém, os Parkatêjê demonstraram vontade de dispor de modo autônomo desses recursos, sem a intermediação da Funai. Segundo Iara, “as negociações para o pagamento dessa indenização verificaram-se de forma precipitada e sob intensa pressão sobre ‘Cotia’ e ‘Krohokrenhum’, principalmente (os representantes da ‘comunidade’), exercida pelos agentes da empresa estatal responsável pelo empreendimento”.
Os Parkatêjê, porém, continuaram lutando pelo direito de administrar o território e o dinheiro advindo das compensações pelo seu uso. Jóaxarare, o “radialista” da aldeia, que faz a comunicação entre os indígenas pelo alto-falante “Bocão”, ainda lembra bem o dia em que eles fecharam a ferrovia para exigir o fim da intermediação da Funai. Ele conta que veio gente de todo o Brasil, inclusive a imprensa, para acompanhar as manifestações. O objetivo se concretizou só em 1999, depois da privatização da Vale, com a criação da Associação Indígena Parkatêjê Amjip TarKaxuwa. “As coisas melhorou porque fomos pra Brasília e fomos brigar pelo que queremos. O dinheiro da Vale e a terra é nossa. Se não fizer pra nós, não passa.”
Desde então, o dinheiro repassado pela companhia é depositado na conta bancária da associação e administrado pelos indígenas, que o distribuem entre investimentos em cultura, educação, saúde, vigilância, atividade produtiva e administração. O destino dos recursos é decidido em conjunto, mediante aprovação do cacique. Além dos investimentos coletivos, as famílias recebem uma ajuda de custo proporcional ao número de membros. É possível verificar desigualdade social dentro da aldeia, impensável anos atrás, que vem resultando em seguidas cisões.
Iara Ferraz, em artigo publicado neste ano, afirma que “todas estas cisões espelham o descontentamento de seus integrantes com a gestão dos recursos financeiros disponibilizados anualmente pela Vale; por outro lado, os termos de compromisso impostos pela empresa desde 2005 apenas em torno de valores monetários (e daí a mercantilização dessas relações, aqui referida) consistem em um instrumento considerado insatisfatório pelos indígenas, uma vez que provisório e impositivo de condições inaceitáveis, dependendo de negociações entre partes substancialmente desiguais”.
Respeitado dentro e fora da aldeia, o cacique Krohokrenhum é o presidente da Associação Indígena Parkatêjê AmjipTar Kaxuwa desde sua fundação. Os outros representantes são votados de três em três anos, em eleição aberta a toda a comunidade. Eles se organizam em uma diretoria e um conselho formado por seis pessoas. Cada conselheiro eleito é responsável por acompanhar um dos setores administrativos.
Entre as realizações da associação está o fato de a maioria de seus representantes ter diploma de ensino superior e de incentivar os indígenas a obter a formação superior, utilizando-se das cotas para indígenas nas universidades públicas criadas em 2010. No setor de saúde, por exemplo, há três técnicas de enfermagem, dois agentes de saneamento e duas estudantes de medicina, todos indígenas. Fabiano, índio Tembé criado desde moço com os Parkatêjê, está na última fase da graduação, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Será o primeiro indígena do país formado em Engenharia de Minas e Meio Ambiente. Kuia, o filho do cacique, também integra a geração de índios universitários; é estudante de direito.
Munidos de suas tradições culturais, em contínua transformação, da resistência política gerada pela luta por autonomia, e do conhecimento adquirido no mundo dos não indígenas, os Parkatêjê se negam a aceitar passivamente a duplicação da ferrovia, que, na prática, representa uma nova interferência em seu território e estilo de vida. A reportagem acompanhou uma assembleia realizada em 11 de agosto de 2014 na aldeia do “Trinta” para dar início ao ciclo de discussões sobre o empreendimento.
Depois de ter ouvido atentamente a exposição do Estudo de Componente Indígena feita pelo advogado Anderson Costa Martinez, Iracema, a filha primogênita do cacique, levantou-se da cadeira em um pulo, encheu o pulmão e bradou com dedo em riste: “Tá na hora de nóis acordá. Tenho certeza que não tá escrito que tipo de doença vai surgi, se tem escola pra nós. A Vale nenhum momento pensa na nossa comunidade. Nós temos que nos uni. A Funai não ajuda a gente: ‘Vocês são formado, se virem’. Temos só nossos advogado. Nóis paguemo para eles virem aqui, nos explicá, conversá com nóis. E se nóis não tivesse com ele? Nóis tava que nem aquele pessoal do Belo Monte. Nóis qué isso pra nóis? Nóis que lutá! Hoje nóis tá bem. Vamos brigá pelo nosso povo. Vamos fazê eles plantá coisa boa pra nóis. Vamos procurá lê. Se eles fizé coisa errada e enganá nóis, como enganaram nossos pais, quando fizeram trilho? Hoje nós temo mais estudo, nós vamo lutá!”
Da expulsão à escravidão por dívida
Em Mãe Maria, a safra de castanha-do-pará começava depois das primeiras chuvas, em janeiro. Para o cacique Krohokrenhum e seus quatro companheiros Timbira, era o início de um pesadelo. Ali, entre os rios Flecheiras e Jacundá, afluentes da margem direita do Tocantins, o grupo acordava antes da alvorada para trabalhar na mata, açoitado pelos xingamentos proferidos pelos agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois Funai. “Índios preguiçosos”, “Vagabundos”, ouviam, enquanto se entregavam à coleta da castanha-do-pará até o anoitecer. Ficavam tão cansados que não conseguiam praticar os rituais tradicionais. Os dias eram passados à cata dos ouriços caídos aos pés das castanheiras, que abriam com facões para tirar as castanhas, colocadas em cestos que carregavam às costas até o celeiro, no meio da mata. Dali, as castanhas eram transportadas por tropas de muares até o Posto Indígena, onde eram lavadas, pesadas e, por fim, vendidas na cidade.
Arãkuiyt conhece a história de cor, embora nunca a tenha vivido. Ouviu do seu esposo, já falecido, que durante dez anos foi forçado a trabalhar no castanhal. Em meados da década de 1970, quando ela chegou a Mãe Maria, transferida do Maranhão, depois que sua aldeia foi inundada pela barragem de Tucuruí, seu povo já havia travado batalhas com os indígenas liderados por Krohokrenhum e deles se separado. Os Gavião do Maranhão se instalaram em Maguari, local sujeito a inundações, a quatro quilômetros da aldeia de Krohokrenhum.
Foi depois do casamento, nos anos 1980, que ela foi viver na aldeia do marido, com quem teve oito filhos. Longe da família, ela conta que não sabia como agir durante a primeira gravidez nem como criar suas crianças. O serviço da casa ficava inteiramente por sua conta, já que o finado esposo não tinha condições de ajudar. Todas as noites, recorda a viúva, ele lamentava a herança deixada pelo serviço no castanhal. Um grave problema nas costas o obrigava a se entupir constantemente de analgésicos.
Krohokrenhum também não morava em Mãe Maria quando caiu na cilada e aceitou a proposta que o faria “enricar”. Guerras intertribais e doenças pós-contato em meados dos anos 1950 haviam levado o cacique ao município de Itupiranga, onde vivia como os “brancos”. “Aí nós trabaiava em Praia Alta. Aí nós levava gado, atirava onça, vendia couro. Nós até vivia bem lá, depois me tiraram pra cá.” Em 1964, Jaime e Cornélio, funcionários do extinto SPI, empenharam-se em persuadir o cacique a se mudar para Mãe Maria, com seus grandes castanhais. Os 62 mil hectares de terras foram concedidos aos indígenas em 1943, mas haviam sido tomados por arrendatários e invasores desde 1947.
Convencido pelos servidores, o líder fez o reconhecimento do terreno. Ao chegar, deu com o sertanista Antônio Cotrim, que o tratou bem, ofereceu comida e mostrou o roçado, com arroz, mandioca, milho, banana e cana. Krohokrenhum se sentiu agradado. Acolheu o pedido do homem e juntou seus companheiros para retirar os invasores e tomar sua castanha. O povo de caçadores destemidos era receado pelos não indígenas desde os tempos em que morava no meio da mata, recebendo por isso a alcunha Gavião.
“Aí a catação que os cara tavam roubando, né. Rapaz, nós era pouco, pequenininho. Mas tomamos mesmo. Ele pegou, vendeu e botô o dinheiro assim, ó: ‘Tá aqui. Isso aqui é teu’. Eu peguei: ‘Ih, rapaz. Eu não vou mais embora não’. Mas agora quando o Cotrim saiu, o SPI entrou e aí era do SPI. Não dava mais nada”, recorda o cacique, ainda vigoroso, apesar dos seus estimados 100 anos de idade.
O velho líder fala com voz firme, mas tropeça no português, auxiliado pelos filhos e sobrinhos. Normalmente se comunica com os anciões em Timbira, no dialeto Parkatêjê. Rodeado pela comunidade, bateu repetidas vezes com os punhos sobre a mesa enquanto contava sua história.
Cacique ou capitão?
Quando Krohokrenhum se mudou para Mãe Maria, em 1966, transformou-se em “capitão”, como desde 1913 o SPI denominava os chefes indígenas – nem sempre reconhecidos como tal pelos povos. No início, ele ficou satisfeito com o acordo, que proporcionava ao grupo condições de adquirir produtos industrializados. Os Parkatêjê fabricavam aguardente, melado e rapadura para consumo próprio e comercialização. E extraíam castanha para ser vendida por eles, junto a servidores do órgão tutelar, em Marabá, distante 30 quilômetros da aldeia.
A partir de 1967, porém, a situação mudou, principalmente no ano seguinte, com a substituição do então SPI pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A extinção do SPI se deu após um relatório com mais de 7 mil páginas feito pelo procurador Jader Figueiredo, com denúncias de corrupção e abusos do órgão. Na realidade, porém, a maioria dos funcionários se manteve no cargo e a nova instituição conservou o princípio da “tutela” em relação aos índios, o que só seria alterado pela Constituição de 1988. Por sua vez, o relatório Figueiredo sumiu misteriosamente, como ocorreu com diversos documentos da ditadura, para ser encontrado apenas em 2013.
A coleta de castanha-do-pará passou a ser feita em sistema de escravidão por dívida, o chamado “barracão”, peculiar às áreas extrativistas na região amazônica, no Norte do país. O patrão – no caso, a delegacia regional da Funai em Belém, que se comportava como “dona” do castanhal – vendia fiado o “rancho” (munição, querosene, sal, açúcar, café, fumo e farinha) nos barracões, que depois era descontado do pagamento da produção individual da castanha, lavada e medida em hectolitros. Como os preços praticados eram mais altos do que os do mercado regional, o saldo quase sempre era desfavorável ao castanheiro, que ficava devendo ao “barracão”. E obrigado a trabalhar mais e novamente se endividar. Nas palavras de Krohokrenhum: “Ele troca trabalho da castanha. Ele dá açúcar, medicamento, mas coitado, nós não entendia”.
Foi o período em que o governo militar iniciou sua política de “integração nacional”, com a ocupação dos espaços considerados vazios na Amazônia por estatais e empreendedores privados que recebiam incentivos fiscais. Em paralelo, grandes projetos de infraestrutura, como a rodovia Transamazônica e a hidrelétrica de Tucuruí, começaram a ser desenvolvidos. Segundo dados da Comissão Nacional da Verdade, a construção de estradas na Amazônia provocou a morte de 8 mil indígenas somente no governo do general Garrastazu Médici, entre 1969 e 1973. Já no ano anterior, em 1968, a rodovia PA-70, atual BR-222, havia cortado o território dos Parkatêjê.
Um relatório produzido pela Cruz Vermelha em 1970, depois de visita ao Posto Indígena Mãe Maria, chamou atenção para a situação dos Parkatêjê, destacando ter encontrado 28 “gaviões” à beira da estrada: “Nós ficamos muito surpresos ao vê-los aqui e achamos incompreensível a Funai ter o Posto à beira da rodovia. O risco desses índios vivendo tão próximos a possíveis fontes de infecção é óbvio.”
O sistema de exploração econômica da castanha através da mão de obra Parkatêjê foi formalizado pelo “Projeto de Extrativismo Vegetal: Castanha-do-Pará”, empreendido pelo Departamento Geral do Patrimônio Indígena (DGPI) da Funai. Um Boletim Informativo de 1971 destaca que a Funai aplicou “a importância de Cr$ 30.610,00” em Mãe Maria, “o maior produtor de castanhas em áreas indígenas”. Segundo o mesmo boletim, “a receita alcançada pela safra de castanhas de 1970-1971 do P.I. Mãe Maria cuja renda bruta foi de Cr$ 88.403,88 e a líquida de Cr$ 45.801,95 foi assim tôda revertida em benefício do Pôsto e dos silvícolas (sic)”. Para ter dimensão dos valores, pode-se levar em conta que o salário mínimo em janeiro de 1971 era de Cr$ 187,20. No mesmo documento, a Funai informa que “nos vinte e oito Projetos Econômicos aprovados pelo Departamento Geral do Patrimônio Indígena em execução nas áreas indígenas estão sendo empregadas 639 pessoas, das quais 596 são indígenas. Os civilizados (sic) desempenham funções técnicas e administrativas especializadas.”
A real dinâmica econômica é revelada na dissertação de mestrado apresentada à Universidade de São Paulo (USP) em 1984 pela antropóloga Iara Ferraz. “As ‘promessas’ efetuadas pela ‘FUNAI’, através dos servidores locais e regionais, não se cumpriam, pois só o Posto se beneficiava com a instalação de benfeitorias, em geral, construções em alvenaria com vistas à maior racionalização da administração e da produção das safras seguintes (sede, escola e o ‘hospital’ que acabou por se transformar em depósito de castanha)”, escreve a antropóloga.
O Boletim Informativo da FUNAI de 1972 também faz comentários elogiosos ao posto de Mãe Maria, um dos primeiros instalados pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI): “[o posto] sobressai-se por apresentar a maior produção de Castanha do Pará dentre todos Postos da FUNAI na Amazônia.” Nas páginas seguintes, o mesmo documento exaltava o projeto Krenac, em Minas Gerais, em artigo intitulado “Índios aculturados aprenderão ofícios na fazenda Guarani”. Uma reportagem do jornalista Andre Campos, publicada pela agência Pública no ano passado, revelou a existênciade trabalhos forçados no Reformatório Krenac, na verdade um centro para a detenção “de índios considerados ‘infratores’.”
Na época em que foram escritos esses boletins, o posto Mãe Maria era chefiado pelo já falecido sertanista Osmundo Fontes. O índio Pyrkrejimokre, conhecido como Cotia, transferido em 1967 de sua aldeia em Tucuruí à Mãe Maria, contou à reportagem como agia o sertanista – qualificado como “mau” por Krohokrenhum: “O Osmundo, ele e o pai dele, ele queria todo o trabalho do capitão. Ele (Krohokrenhum) colhia castanha, o Osmundo mais o pai dele pegava e entregava para a Funai. A Funai é que vendia a castanha. E, depois, ele só dava assim, alguma coisa, o facão, coisa que ele dava, mas a castanha ele pegava e entregava”.
A virada dos Parkatêjê
Revoltado, Krohokrenhum orientou os Parkatêjê a não cumprir a meta da produção na safra de 1974/1975. Na mesma época, então recém-formada em Ciências Sociais, Iara Ferraz foi chamada a trabalhar em Mãe Maria, que “estava em crise”, através de um convênio firmado entre a USP, a Funai e a Fundação Projeto Rondon que previa a futura contratação da antropóloga pela Funai. Na sua dissertação de mestrado, relatou fatos que presenciava no território, como “o chefe do posto acionar de madrugada o gerador de força e dar tiros de revólver para o alto, a fim de ‘acordar os índios’ para que fossem carregar o caminhão da Funai.”
Ferraz acabou sendo contratada pela Funai – fora do convênio – em novembro de 1975 e se tornou uma figura essencial para os Parkatêjê, auxiliando-os na conquista de autonomia econômica e nas negociações com a Eletronorte – responsável pela Linha de Transmissão de Energia de Tucuruí – e com a b– construtora da Ferrovia Carajás – dentro do território indígena. Ela também cooperou com as pesquisas do Grupo de Trabalho “Graves violações de direitos humanos no campo ou contra indígenas” da Comissão Nacional da Verdade (CNV), coordenado pela psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl. E não gostou do resultado. Segundo Iara Ferraz, entrevistada para esta reportagem, “a CNV chega ao fim deixando muita gente decepcionada.” Ela afirma que a fundação ficou fora das pesquisas “apesar de o Relatório Figueiredo ter sido encontrado no Museu do Índio…”
A partir de 1976, em função de mudanças na política da Funai, os antropólogos foram afastados da coordenação de projetos e substituídos por funcionários dos quadros administrativos da fundação. Os Parkatêjê solicitaram a continuidade dos trabalhos da antropóloga. Em julho de 1977, a FUNAI impediu formalmente a permanência de Iara Ferraz em Mãe Maria. Em sua dissertação de mestrado, ela conta que chegou a ser pressionada por policiais para sair da aldeia.
Krohokrenhum resolveu então ir ao escritório da Funai em Brasília, onde conheceu o funcionário Humberto Nascimento, o Tiuré, filho de pai potiguara e mãe branca. Ele decidiu se mudar para a aldeia na hora em que viu o capitão. Largou mulher e filho no Distrito Federal. Trabalhou com os Parkatêjê e, mais tarde, em contato com o povo Suruí, acabou descobrindo um cemitério clandestino onde foram enterrados guerrilheiros do Araguaia – em região próxima à Mãe Maria, no sudeste paraense. Tiuré, que foi perseguido e torturado durante a ditadura, se tornou, no ano passado, o primeiro índio a receber indenização da Anistia.
A safra da autonomia
Para a safra de 1976 Tiuré e Iara Ferraz, junto com o novo chefe do Posto Indígena, Saulo Petean, conseguiram um empréstimo de 32 mil cruzeiros com o banqueiro Alain Moreau, intermediado pelo advogado Carlos Marés, do escritório do jurista Dalmo Dallari. O escritório da Funai em Belém havia autorizado o repasse do dinheiro, que havia ficado retido na Delegacia Regional. Cotia, o índio Pyrkrejimokre que viera de Tucuruí, também estava envolvido nas negociações e lembra até hoje dos detalhes. “Aí ele arrumou 30 mil cruzeiro, em 75. Já começa do 75 já, do 75 para 76. Iara veio já chegou o dinheiro, já tá aí. Aí nós vamos arruma tropeira para castanheira, ainda não tinha nada nada”, conta.
A safra de 1976 foi um sucesso. Os índios produziram quatro lotes de castanha, obtendo cerca de trezentos mil cruzeiros com a venda feita ao exportador Evandro Mutran, em Belém. Uma parte do dinheiro foi destinada para um fundo comum de recursos para empreendimentos da comunidade e outra parcela foi depositada em uma conta do banco Bradesco em nome da “Comunidade Indígena Parkatêjê” para dar início à safra seguinte. Em um ano, eles conseguiram comprar uma camionete Toyota.
O controle dos Parkatêjêsobre sua própria produção também alterou a dinâmica das atividades, que se tornaram mais coletivas. Trabalhava-se junto e dividia-se tudo. Se alguém não quisesse trabalhar na nova sistemática poderia se juntar aos não-indígenas e trabalhar no sistema de barracão, bem aprimorado em comparação ao anterior.
Ao menos é o que transparece na carta de 5 maio de maio de 1976 escrita pelo Kruwa, a pedido de Krohokrenhum: “Os próprio índios botaram os civilizados para cortá castanha para os índios e os índios pagava imposto de renda – era livre os índios pagava os kupem (não indígena), aí, kupem ficou muito satisfeito com os índios, porque não tinha desconto em nada então por isso que kupem ficou gostando do serviço dos índios. Gostaram mais o serviço dos índios de que o tempo que era Funai disse o povo que não gostaram do serviço que era da Funai… Agora os índios tão contentes porque os próprios índios fez a safra da castanha sem ter gente para ensinar como era para fazia. Mais assim mesmo, agora a gente sem a Funai eu acho que nós vamos pra frente, com fé em deus nós ter o que precisamos ter e vai ter”.
O controle financeiro passou a ser feito por Saulo Petean e Cotia. Os dois elaboraram livros-caixa, apresentados em sessões públicas no pátio da aldeia do Trinta. Eles discriminavam de forma simplificada os débitos e créditos dos Parkatêjê. Quem não entendia podia pedir ajuda à auxiliar de ensino, na escola do posto. Cotia se recorda: “Todo mundo gostaram do meu trabalho. Eu olhava castanha, olhava castanheira. Tudo que precisava eu dava, mas descontava sim, ajustava conta né. Recebia castanha no dia que deu e ajustava. Que tinha ele recebia. Pagava e tudo bem.”
Com a conquista da autonomia, o grupo passou a exigir ser chamado por Parkatêjê, que significa “grupo que controla a jusante do rio”, de acordo com a antropóloga e Iara Ferraz. É com essa identidade que eles agora enfrentam a Vale S.A pela defesa de seus direitos.
http://www.mst.org.br/2015/06/15/no-para-indigenas-lutam-contra-vale.html