EUA admitem que testes em humanos com arma química na 2ª Guerra tiveram critério racial
Redação | São Paulo – 24/06/2015 – 17h16
As Forças Armadas dos Estados Unidos admitiram que, para além de terem usado soldados como cobaias em experimentos realizados com gás mostarda durante a Segunda Guerra Mundial, havia um recorte racial nos testes realizados com a arma química. A informação foi publicada pela NPR, emissora de rádio pública norte-americana, que, pela primeira vez, localizou alguns dos ex-combatentes que foram usados nos experimentos, comprovando que tinham como motivações critérios de raça.
Questionado diante das evidências, o Pentágono, sede do Departamentod e Defesa dos EUA, afirmou à repórter Caitlin Dickerson que “já não realiza testes com armas químicas” e que para o Exército, “ouvir e ver algo como isso é cruel. Isso ainda é um pouco chocante”.
Arquivo Nacional
Tropas com negros segregados em Maryland, nos anos 1940
“Eu senti como se eu estivesse queimando. Os garotos começaram a gritar e tentaram fugir. Alguns deles desmaiaram. Então, finalmente eles abriram a porta e nos deixaram sair. Os rapazes estavam em um mau estado”. Lembra Rollins Edwards, hoje com 93 anos, ao contar como foi sua experiência ao ser colocado em uma câmera com gás mostarda, juntamente com outros soldados.
Edwards é um dos 60 mil homens envolvidos em um programa secreto do governo — formalmente desclassificado em 1993 — para testar o uso de gás mostarda e outros agentes químicos em tropas norte-americanas.
Ele conta, no entanto, que houve um fator principal para sua escolha no teste: ser negro. “Eles disseram que nós estávamos sendo testados para ver o efeito que esses gases poderiam ter na pele negra”, lembra.
A investigação conduzida pela emissora revelou, no entanto, que os testes não foram aplicados apenas em afro-americanos, mas também em nipo-americanos e porto-riquenhos, servindo como forma para verificar como o gás mostarda e outras armas químicas poderiam afetar as tropas japonesas.
Apesar dos danos à saúde, muitos permanentes, eles não receberam qualquer acompanhamento de saúde ou cuidado por parte do governo.
Outra evidência de discrimnação racial na condução dos eventos militares da época consiste no fato de que, de acordo com a NPR, tropas nipo-americanas, afro-americanas e porto-riquenhas eram confinadas em unidades segregadas durante a guerra por serem consideradas menos capazes que norte-americanos brancos. Muitos deles eram destinados a serviços de cozinha ou como motoristas das tropas.
Susan Matsumoto contou à reportagem que seu marido Tom, que morreu em 2004 de pneumonia, disse a ela que aceitou fazer o teste porque sentia que isso poderia ajudá-lo a “provar que ele era um bom cidadão norte-americano”. Ela lembra que agentes do FBI entraram na sua casa durante a guerra e queimaram livros e músicas japonesas para provar a lealdade da família aos EUA.
Laboratório de Pesquisa Naval
Fotografias retratam teste em cobaias humanas em Washington DC durante 2ª Guerra
Experimento clandestino
Homens brancos eram usados em grupos de controle científicos. As reações ocorridas neles eram usadas para estabelecer o que era “normal” e então comparado com as tropas minoritárias. O gás mostarda danifica o DNA em segundos após o contato, causando queimaduras e bolhas na pele, e pode levar a sérios danos à saúde, e às vezes doenças fatais como leucemia, câncer de pele, enfisema e asma.
Todas as experiências com gás mostarda durante a Segunda Guerra Mundial foram feitas em segredo e não foram registradas nos relatórios oficiais militares. De acordo com documentos desclassificados, foram realizados três tipos de experimentos: testes de contato, onde gás mostarda em estado líquido era aplicado diretamente na pele da cobaia; testes de campo, onde as pessoas eram expostas ao gás em ambiente aberto em simulação a uma situação de combate; e testes de câmera, quando homens eram colocados em locais fechados.
Além disso, os soldados fizeram juramento para manter em segredo as informações sobre os testes sob a ameaça de prisão ou dispensa desonrosa. Muitos ficaram sem possibilidade de receber o tratamento adequado para seus ferimentos porque eles não podiam contar aos médicos o que lhes ocorrera.
O recorte de raça desse experimento ficou omitido até que uma pesquisadora no Canadá revelou alguns dos detalhes e 2008. Susan Smith, uma médica e historiadora da University of Alberta no Canada, publicou um artigo no The Journal of Law, Medicine & Ethics.
No texto, que não obteve repercussão midiática, ela sugere que negros e porto-riquenhos foram testados para encontrar um “soldado químico ideal”. Assim, se fossem mais resistentes, eles poderia ser usados na linha de frente, enquanto soldados brancos permaneceriam atrás, protegidos do gás. À época, o Departamento de Defesa não se pronunciou.
Pentágono
O Coronel do Exército Steve Warren, diretor de operações de imprensa do Pentágono, tomou conhecimento da investigação da NPR e ressaltou a distância existente entre os militares de hoje e os experimentos da Segunda Guerra Mundial.
“A primeira coisa que precisa ficar clara é que o Departamento de Defesa já não realiza testes com armas químicas” e acrescentou: “eu penso particularmente que para nós do Exército, ouvir e ver algo como isso é cruel. Isso ainda é um pouco chocante”.
Após meses de solicitações, a NPR não conseguiu acesso às centenas de páginas de documentos relatando os experimentos, que poderiam prover informações sobre as motivações. O que foi descoberto pela reportagem foi baseado nos depoimentos das cobaias que ainda permanecem vivas.
Em um dos estudos aos quais a NPR teve acesso pela Lei de Acesso à Informação, consta que, na primavera de 1944, 39 soldados japoneses e 40 brancos foram submetidos ao contato com o gás mostarda por 20 dias. Leia aqui o estudo.
Lopez Negron, hoje com 95 anos, conta que ele e outras cobaias foram enviados para a selva e bombardeados com gás mostarda lançado por aviões militares. “Nós tínhamos uniforme para nos proteger, mas os animais não. Havia coelhos ali. Todos morreram”. Ele conta que assim como os colegas, passou mal imediatamente após o experimento. “Eu passei três semanadas no hospital com um febre terrível. Muitos de nós ficamos doentes”, conta.
Os documentos divulgados pelo Departamento de Defesa nos anos 1990 revelam que o plano secreto dos Estados Unidos era usar gás mostarda contra os japoneses, o que poderia ter provocado a morte de cinco milhões de pessoas.