A nova extrema-direita mistura de neoliberalismo e racismo
A nova extrema-direita mistura de neoliberalismo e racismo
Anthony Fano Fernandez*
Sem resposta para a crise do sistema do capital, são vários os caminhos a que se recorre para criar uma nova extrema-direita com todos os ingredientes de sempre e uma embalagem nova, aparentemente e por enquanto, com uma cara diferente que pretendem mostrar como lavada.
A maioria dos alemães está convencida que os trabalhadores imigrantes vivem á custa do trabalho dos alemães e dos imigrantes qualificados e instruídos. E, apesar de um estudo do Centro Europeu de Investigação Económica concluir que cada imigrante na Alemanha tem uma contribuição líquida positiva (em 2012 pagou, em média, mais 3.300 euros anuais), persiste o perigo de novas formas de racismo, agora de raiz cultural e religiosa, fruto de uma confluência da doutrina neoliberal atual com um racismo cultural.
O abismo que medeia entre a ideologia e a realidade não poderia ser mais apelativo: de acordo com um estudo do Centro Europeu de Investigação Económica, publicado em Novembro passado, os imigrantes trazem uma contribuição líquida positiva aos sistemas de previsão e segurança social na Alemanha. O autor do relatório, o economista Holger Bonin, demonstra que, em 2012, cada residente na Alemanha que não tinha passaporte alemão pagou em média mais 3.300 euros de impostos e cotizações para a segurança social que o que recebeu sob a forma de transferências do Estado. Apesar disso, as sondagens dizem que dois terços dos alemães estão convencidos que os imigrantes são um encargo para o sistema de bem-estar do seu país. Independentemente do mau gosto que é avaliar a vida humana por critérios económicos, a combinação do cálculo de Bonin com as sondagens mostra uma imagem surpreendente da mentalidade atual dos alemães em matéria de imigração, e a convergência da reconfiguração neoliberal da sociedade alemã com formas racistas de entender estas alterações.
Quando o ministro da Fazenda do Estado de Berlim, Thilo Sarrazin, publicou o seu livro Deutschland schafft sich ab (Alemanha condena-se), em 2010, poucos observadores reconheceram que anunciava o nascimento de uma nova extrema-direita modernizada na Alemanha, que se separava significativamente da extrema-direita nazi e nacional-conservadora populista da velha escola de há décadas. Ficaram esquecidos os modelos sociopolíticos anteriores e o racismo biológico, substituídos pelo casamento da doutrina neoliberal moderna com o racismo culturalista. Esta nova extrema-direita está agora dar forma a uma entidade coerente com contornos bem definidos e a uma divisão do trabalho entre diferentes componentes: um partido eleitoral denominado Alternative für Deutschland (Alternativa para a Alemanha, AfD); uma ala extraparlamentar combativa, encarnada no movimento PEJIDA (Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente) e um centro ideológico representado pela revista mensal Compact, editada por Jürgen Elsässer, um jornalista que era de esquerda radical, hoje convertido em nacional-populista de extrema-direita.
Exige algum esforço desencadear a genealogia deste novo movimento, visto que todos estes componentes têm origens diferentes: a AfD surgiu como um protesto eleitoral de conservadores contrários à União Europeia e aos resgates do euro praticados pelo governo de Ángela Merkel, enquanto as manifestações convocadas pelo PEJIDA representam uma mobilização de base com raízes no racismo antimuçulmana que impregna o discurso público alemão desde há algum tempo. A revista Compact representa a tentativa de criar um bloco «anti-imperialista à volta de um fantasmagórico eixo Paris-Berlim-Moscovo, para contrariar a hegemonia estadounidense. Não obstante, visto que o racismo antimuçulmano serve presentemente de ponto de convergência destas diversas forças, tem sentido esboçar a função do discurso racista contra os muçulmanos na Alemanha durante os últimos anos.
Em 2007, o sociólogo George Klauda observou que havia um racismo especificamente antimuçulmano confinado fundamentalmente à intelectualidade: «A islamofobia tem, pelo menos neste país, alguma relevância não como fenómeno de massas, mas como discurso de elite que, partilhado por um considerável número de intelectuais de esquerda, liberais e conservadores, permite articular ressentimentos contra imigrantes e militantes antirracistas, de forma que cada um possa aparecer como um brilhante campeão dos ilustrados europeus.» Ainda que esta observação fosse correta, quando foi escrita há sete anos, o que, hoje em dia, o PEJIDA representa é a transformação do racismo antimuçulmano num fenómeno de massas, capaz de mobilizar grandes manifestações com mais de 20.000 pessoas.
O agora defunto Gruppe Soziale Kämpfe (Grupo de Lutas Sociais, GSK) teorizou esta transformação do discurso racista como parte de uma «culturalização da questão social» especificamente neoliberal. O GSK acentuou que, no período imediato ao pós-guerra, o racismo na Alemanha concretizou-se na qualificação da população de trabalhadores imigrantes como «não alemã, sobretudo italianos, turcos e jugoslavos. O racismo dirigido contra esta população imigrante estava assente na sua posição de estrato mais baixo de uma classe operária industrial gerada ao abrigo do pacto social fordista na República Federal do «milagre económico».
Um novo racismo neoliberal e cultural
Com a chegada de Helmut Kohl à chancelaria em 1982 – cavalgando a mesma onda conservadora que levou ao poder Ronald Reagan e Margareth Taetcher – a proclamação de uma «reviravolta espiritual-moral» marcou um novo regresso ao conservadorismo «baseado em valores». De um modo idêntico à reação conservadora no mundo anglo-saxónico, à volta de questões como o aborto e os direitos dos gays e lésbicas, foram-se recuperando questões de «cultura» e «identidade» por parte da direita e, paralelamente, deu-se uma alteração do discurso racista. Durante o período que vai da reunificação alemã e a primeira Guerra do Golfo aos atentados de 11 de Setembro e as subsequentes guerras do Afeganistão e Iraque, os trabalhadores imigrantes do sul da Europa foram substituídos por uma população imigrante caracterizada, racial e culturalmente, como muçulmana.
Enquanto as antigas formas populistas e fascistas não desapareceram de todo – basta recordar os pogroms que houve em Rostok-Lichtenhagen, em 1992, o ataque mortal a uma família turca na cidade de ocidental de Solingen em 1993 ou o êxito eleitoral do Nationale Partei Deutschlands (Partido Nacional da Alemanha, NPD), um partido abertamente fascista, na Saxónia em 2004 – desenvolveu-se um lento processo de conversão no novo racismo «cultural». Esta interação mistura uma ideologia neoliberal utilitária, que avalia os estrangeiros em termos de «utilidade» para a «nossa sociedade», com a construção de uma narrativa que atribui a pouca sorte ou à falta de êxito dos que se encontram no escalão mais baixo da escala social à sua «alteridade» cultural e à sua «falta de vontade» de se «integrarem» na sociedade «alemã» ou «ocidental» devido ao inveterado compromisso com os ideais religiosos ou culturais islâmicos.
Escusado será dizer que esta narrativa cultural não costuma compreender a realidade destes alemães ou residentes de origem turca ou curda – que em muitos casos são laicos e situam-se politicamente na esquerda – nem a diversidade e as discrepâncias internas das comunidades muçulmanas da Alemanha. Mais, essa narrativa serve para racionalizar o estribilho do capitalismo neoliberal em termos de vontade ou incapacidade do «eu empreendedor» para tomar nas suas próprias mãos as rédeas do próprio destino. O perverso é que este racismo cultural e neoliberal representa uma espécie de «vitória» sobre o velho racismo populista. Em 2000, quando o relativamente novo governo de coligação do Partido Social-democrata (SPD) com o Partido Verde tentou instituir um programa de «cartão verde», com o objetivo de atrair os trabalhadores estrangeiros altamente qualificados em informática e telecomunicações e outros campos muito especializados, o presidente da União Democrata-Cristã do Estado da Renânia do Norte-Westfalia, Jürgen Rüttgers, apelidou o mobilizador lema racista de «Kinder sttat Inder!» (Crianças em vez de índios!) para resumir a posição do seu partido, favorável à formação de alemães nativos em carreiras de alta tecnologia em vez de se importarem trabalhadores qualificados.
Durante os anos de governo social-democratas e verdes, os Estados federados presididos por políticos da CDU conseguiram, apesar de disso, bloquear efetivamente os planos de implementação de uma cidadania dual para os que o desejassem adquirir a cidadania alemã sem ao mesmo tempo perder a do seu país de origem. Depois, em 2014, a CDU comprometeu-se a promulgar uma lei de dupla nacionalidade com o seu aprceiro de coligação, o SPD, com o que colocou o velho racismo de tipo Rüttgers completamente fora de jogo de uma CDU modernizada e neoliberal da chanceler Ángela Merkel. O que os conservadores tradicionais chamam amiúde de «social-democratização da CDU»representa de facto uma convergência entre o SPD e a CDU na base de uma adoção comum da ideologia neoliberal e a «culturalização da questão social».
Sarrazin, o pioneiro
Presentemente podemos ver na nova extrema-direita da AfD, PEGIDA e outras organizações uma radicalização na base do que essencialmente é um discurso próprio do sistema. Sarrazin desempenhou sobre isso o papel de pioneiro. Como membro do senado berlinense presidido pelo social-democrata Klaus Wowereit de 2002 a 2009, durante o do governo de coligação do SPD e PDS (um dos partidos predecessores do Die Linke), Sarrazin ganhou nome tanto pela defesa da uma radical aplicação da austeridade fiscal no Estado de Berlim que se encontrava em falência, como pelas suas inflamadas declarações sobre os pobres e outras pessoas marginalizadas. Numa entrevista publicada no seminário Stern, Sarrazin declarou que os beneficiários do seguro de desemprego crónico destruidores de energia porque «costumam estar mais em casa, querem estar quentes e regulam a temperatura com a janela», defendendo uma alteração no sistema de bem-estar em que «cada um pode melhorar o seu nível de vida tendo mais filhos, como sucede hoje em dia».
Depois de abandonar Berlim para assentar em águas mais calmas de um breve mandato no conselho do Bundesbank em Frankfurt, durante uma entrevista com a revista Lettre International sobre a sua experiência como senador responsável pelas Finanças, Sarrazin declarou o seguinte, a propósito da população muçulmana de Berlim: «Não tenho qualquer razão para respeitar quem viva do Estado, ao mesmo tempo rejeita esse Estado, não se ocupa de forma razoável com a educação dos seus filhos e faz continuamente pequenas meninas com véu». Tudo isto foi um prelúdio da publicação, em 2010, do seu citado livro, onde desenha um hiperbólico afundamento da Alemanha enfraquecida por uma taxa de natalidade da sua população autóctone e de um suposto declive do coeficiente de inteligência coletivo nacional devido à imigração «muçulmana» contribuir para o crescimento de uma subclasse permanente.
O livro de Sarrazin, que foi um estrondoso êxito de vendas, tocou a corda sensível do zeitgest, ao mesmo tempo que constituiu uma espécie de manifesto de uma versão radicalizada da nova síntese racista neoliberal-cultural. Este racismo de novo tipo conserva traços do velho racismo, como o lamento de Sarrazin de que «os turcos estão a conquistar a Europa exatamente forma como os kosovares conquistaram o Kosovo: através de taxas de natalidade mais altas. Eu preferiria que fossem os judeus da Europa Oriental que têm um coeficiente de inteligência 15% mais elevado que a população alemã».
Enquanto o livro de Sarrazin tivesse arrasado entre a população alemã, ainda teria que passar algum tempo entre o seu êxito de vendas em 2010 e o sucesso eleitoral da AfD e o surgimento do PEJIDA em 2014. Uma espécie de «ponte» ideológica foi estendida com a criação em 2010 da revista Compact, editada por Elsässer. Na capa do primeiro número aparecia uma foto de Sarrazin sob o seguinte título: «O próximo chanceler federal?» A biografia política de Elsässer é uma ilustração fascinante de como a nova extrema-direita consegue ganhar nomes da «esquerda» dentro da tentativa de configurar uma nova «rebelião conformista». Antigo professor de formação profissional em Estugarda, Elsässer foi primeiramente conhecido como membro da Kommunistischer Bund (Liga Comunista, KB), um partido maoista, em 1990, no decorrer de manifestações que provocaram a dissolução da República Democrática Alemã.
Elsässer: da extrema-esquerda à extrema-direita
Num artigo publicado na revista KB, Arbeiterkampf, intitulado «Por que é que a esquerda tem de ser antialemã?, Elsässer expressou o medo da esquerda radical alemã ocidental sobre o possível ressurgimento de uma Alemanha unificada como grande potência, e ao mesmo tempo estreou o que no decurso do decénio seguinte apareceria como tendência diferenciada no seio da própria esquerda radical alemã. Como repórter do diário da esquerda Junge Welt, cofundador do semanário Jungle World e, finalmente, como editor da revista mensal da extrema-esquerda, Konkret, Elsässer passou o resto do decénio a escrever artigos de cariz marcadamente antinacionalista e contrários à emergência de um suposto «IV Reich» alemão, um temor que parecia confirmar-se com o papel desempenhado pela Alemanha na fragmentação da antiga Jugoslávia, com o reconhecimento das repúblicas da Eslovénia e da Croácia em 1991 por parte do então ministro das Relações Exteriores, Hans, Dietrich Genscher e da participação da Alemanha na guerra do Kosovo em 2000.
Quando rebentou a segunda Intifada em Setembro de 2000, Elsässer começou a ver o candidato israelense a primeiro-ministro, Ariel Sharon, como uma espécie de Slobodan Milosevic do Levante, um chefe de Estado «antifascista» atribulado, vítima do imperialismo hegemónico liderado pela Alemanha. No entanto, depois da reafirmação da hegemonia global dos EUA durante a Guerra do Afeganistão em 2001, seguida da Guerra do Iraque, que teve a oposição da França e da Alemanha sob a direção de Jacques Chirac e Gerhard Schröder, respetivamente, Elsässer viu-se obrigado a rever totalmente as suas teorias. Depois de tudo, a Alemanha, apesar da sua importância dentro da União Europeia, não era mais que uma potência regional de segunda classe que oscilava entre o atlantismo e as renovadas apostas de se contituir numa «grande potência» rival.
Elsässer começou a publicar livros e artigos onde defendia a constituição de um «eixo Berlim-Paris-Moscovo» oposto a Washington. Depois de uma série de intervenções explicitamente nacionalistas e de se lhe terem fechado praticamente as portas em todas as principais publicações de esquerda, Elsässer lançou a Compact, criando deste modo um centro ideológico coerente para uma política de extrema-direita de novo tipo: abertamente de extrema-direita passa a bramir temas tradicionais de extrema-direita contra o «capital financeiro», defende a formação de uma potência «euroasiática» como polo de oposição aos EUA e mostra-se decididamente contrário à imigração, ao mesmo tempo que apoia países como o Irão ou a Síria, em política externa. Esta despropositada mistura encontrou uma audiência entusiasta na nova extrema-direita e alguns elementos da ideologia estão profundamente arreigadas no coração da própria sociedade alemã, como o atesta a presença destacada de Compact nos quiosques das estações de caminho-de-ferro.
As duas alas da AfD
Era inevitável que a Elsässer saudasse com entusiasmo o aparecimento da candidatura eleitoral da AfD. Fundada em 2013 como partido monotemático contrário ao euro, a AfD expressou os interesses de uma direita conservadora que já não se sentia representada pela CDU, supostamente «social-democratizada» de Merkel. Com uma direção composta pelo economista de Hamburgo Bernd Lucke e o ex-editor do Frankfurter Allgemeine Zeitung Konrad Adam, a AfD começou por manter um perfil decididamente «burguês», distanciando-se dos partidos neonazis tradicionais como o NPD e a Deutsche Volkunion (União Popular Alemã, DVU). Esta insólita aliançadepois do colapso do Freidemoktarische Partei (Partido Liberal Democrático, FDP) converteu-se num irresistível polo de atração para toda a espécie de direita que viu na AfD a oportunidade de criar uma poderosa formação eleitoral à direita da CDU e dos seus aliados Bávaros da CSU.
Com as insuspeitas credenciais burguesas de Lucke e Adam, a AfD parecia estar bem apetrechada para acabar com o tabu do pós-guerra, expresso pelo que foi durante muito tempo presidente da União Social Cristã (CSU) bávara, Franz Josef Dtrauss, com a famosa frase de que «não pode haver nenhum partido mais à direita que a CSU». Ainda que a AfD não conseguido superar a barreira dos 5% para entrar no Bundestag (parlamento federal) nas eleições de 2013, em 2014 teve 7,1% nas eleições para o Parlamento Europeu e elegeu 7 deputados. Nas eleições regionais dos Estados federados orientais de Saxónia, Brandeburgo e Turíngia, a AfD já alcançou percentagens melhores percentagens: 9,7%, 12,2% e 10,6%, respetivamente.
A posição política da AfD balança entre o liberalismo «respeitável» de um Lucke, que se considera ligado à tradição do ministro da Economia do pós-guerra, Ludwig Erhard, e da CDU anterior a Merkel, e uma direita mais radical, representada pela presidente da Saxónia , Frauke Petry. Entretanto ambas as alas se procuram distanciar do tradicional racismo biológico populista a favor de um populismo neoliberal que preconiza uma política de imigração «no interesse da Alemanha», isto é, de braços abertos para com os imigrantes «economicamente úteis», e mão pesada contra os que procuram asilo e os «delinquentes estrangeiros», pelo que os conflitos entre elas aparecem claramente na controvérsia que se verificou quando quatro eurodeputados da AfD, entre os quais Lucke e Henkel, que votaram a favor das sanções à Rússia, por causa da anexação da Crimeia. Este facto provocou a oposição de Petry e Alexander Gauland, ex-membro da CDU e diretor da chancelaria do Estado de Hesse. Tinha razão Elsässer quando descreveu o conflito político surgido no interior do partido como uma confrontação entre uma «ala PEJIDA» e uma ala EUA» (seria a que mantém a posição atlantista tradicional da CDU pós-guerra). As tensões atingiram o ponto crítico em começos de 2015, quando Lucke declarou que havia que mudar a estrutura do partido de modo houvesse um presidente (ainda que ambos os lados se tivessem posto de acordo nesta questão).
O racismo do PEJIDA
Em todo o caso, o movimento PEJIDA continua a ser a prova palpável da amplitude da base social desta nova extrema-direita. As manifestações, que no ponto mais alto, reuniam mais de 20.000 pessoas todas as segunda-feira nas marchas pelo centro de Dresden, foram um tema de debate importante durante grande parte do inverno de 2015. O nome do movimento – Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente – parece indicar que se trata de uma iniciativa monotemática, nascida de uma visão paranoica e ridícula de uma iminente conquista da Alemanha pelo islão. Mas ficar por esta imagem seria subestimar o astuto oportunismo tático de uma iniciativa que pretende criar um movimento xenófobo moderno, para o que a palavra «islão» mais não é do que uma referência útil. Isto torna-se evidente na forma como foi criada a organização: o fundador, Lutz Bachmann, uma estranha personagem com um passado delitos menores, criou no Facebook um grupo chamado PEJIDA com o objetivo de mobilizar o protesto contra uma marcha de simpatizantes do Partido dos Trabalhadores Turcos (PKK) pelo centro de Dresden. Por outras palavras, apesar da pretensão de ser um movimento contra a «islamização», na realidade, o PEJIDA formou-se para protestar contra os que apoiam uma organização curda laica que atualmente está a combater o Estado Islâmico (EI).
É um movimento contra a imigração, como demonstra a declaração de 19 pontos, que reclama uma «política de tolerância zero» contra os candidatos a asilo e imigrantes «criminosos»; defende uma política de imigração baseada nos modelos «utilitaristas» da Suíça, Canadá e Austrália; propõe-se defender a «cultura judaico-cristã do Ocidente» e formula denuncias tão atoleimadas como a que se opõe à inclusão da perspetiva de género em todas as políticas públicas, juntamente com apelos paranoicos a favor da proibição da sharia e das «sociedades paralelas».
O apoio a uma melhor atenção aos candidatos a asilo e a procura condições mais humanas nas habitações que se põem à sua disposição são incluídos para criar a imagem de PEJIDA como uma formação moderna, «tolerante», contrária à imigração, mas a base abertamente racista do movimento fica perfeitamente refletida numa série de vídeos não editados com entrevistas feitas por Panorama, um programa de notícias da televisão pública. Aí, articulam os participantes nas manifestações do PEJIDAos pontos de vista típucos da extrema-direita, como o de que «Alemanha não é um país soberano» e que os imigrantes não são «refugiados de guerra», mas sim «parasitas».
O caráter racista do PEJIDA levou Merkel a criticar publicamente o movimento no seu discurso de Ano Novo e a defender a urgência dos cidadãos não participarem nas suas manifestações. Apesar disso, o PEJIDA granjeou as simpatias políticas de procedência previsível: em janeior de 2015, Petry convidou a direção do PEJIDA para uma reunião com o grupo parlamentar da AfD no parlamento regional da Saxónia para falarem das coincidências entre o movimento e aquele partido. Petry defendeu nos media o PEJIDA das acusações. Apesar disso, as mesmas tensões inerentes ao projeto AfD também provocou uma crise aguda no PEJIDA devido à contradição entre a postura de respeitabilidade burguesa e a necessidade de manter uma base fiel e o apelo ao eleitorado tradicionalmente de extrema-direita. O discurso racista antimuçulmano herdado da intelectualidade liberal ajudou a nova extrema-direita a pôr um pé na porta da respeitabilidade discursiva, mas à medida que esta posição dava lugar a convites para debates televisivos e manifestações de «preocupação» dos políticos pelos «legítimos» temores dos cidadãos, acaba por entrar em conflito com o núcleo claramente racista do movimento.
Um exemplo claro foi a controvérsia que surgiu à volta do fundador, Lutz Bachmann, devido à publicação na sua página do Facebook de uma fotografia em que aparecia disfarçado de Hitler. Além de algumas declarações em que qualifica os estrangeiros de «alimanhas» e «escória suja». Ainda que Bachmann, inicialmente, se tenha demitido com espetacularidade da presidência do PEJIDA, para não prejudicar o movimento (que desde 2014 tinha adquirido a condição legal de «associação registada»), insistiu em manter um papel na organização, o que provocou a demissão de apoiantes de Kathrin Oertel, a autonomeada «assessora económica» e «perita imobiliária» que desempenhava a função de tesoureira do movimento, e pretendia mostrar um PEJIDA de uma respeitável cara burguesa no epónimo debate televisivo de Günther Jauch.
Um Bachmann irremediavelmente manculado e contrário a qualquer associação com o movimento LEJIDA da cidade de Leipzig, cuja direção está ainda mais explicitamente ancorada na extrema-direita organizada, o grupo de apoiantes de Oertel fundou a organização Direkte Demokratie für Europa (Democracia Direta para Europa, DDfE). A declaração fundacional da DDfE constitui a tentativa de alargar a fixação inicial do PEJIDA no islão e na imigração à inclusão do apoio ao pedido de plesbicitos, iniciativas legislativas populares, à «liberdade de expressão», à «segurança cidadã», à oposição ao tratado TTIP de livre comércio, à retirada das sanções da UE à Rússia decretadas devido à crise da Ucrânia, mas mantendo a respeitabilidade pequeno-burguesa, que tinha ficado prejudicada com a revelação de que Bachmann não passava de um arruaceiro racista.
A DDfE não conseguiu reunir em 8 de fevereiro de 2015 mais de 500 pessoas na sua primeira manifestação em Dresden, ao passo que o PEJIDA juntou cerca de 2.000, um número muito inferior ao que costumava verificar-se uns meses antes. O que é interessante na cisão da DDfE é que a sua tentativa de se distanciar do PEJIDA não implica, de forma alguma, um afastamento real das posições políticas da extrema-direita; na verdade, a sua «expansão» num movimento mais amplo e favorável à democracia popular e a uma política mais conciliadora com a Rússia e contrária ao livre comércio, etc., encaixa perfeitamente na orientação preconizada por Elsässer e nas «manifestações das segundas-feiras» do novo «Movimento pela Paz 2014». Em vez disso, a aposta da DDfE pela respeitabilidade não se baseia em nenhuma rejeição da política de extrema-direita, mas antes no desejo de se apresentar como uma organização formada por gente «normal» do «centro da sociedade».
Um estudo publicado em janeiro de 2015, feito por uma equipa de investigação da Universidade Técnica de Dresden, deu credibilidade a esta imagem, dizendo que 70% dos participantes tinham emprego e trabalhavam, tinham rendimentos ligeiramente superiores à média e um nível educativo universitário ou de formação profissional especializada. Apesar de outros académicos do Centro Científico de Berlim e do instituto de opinião pública FORSA, o classificarem de não representativo (65% dos pedido de resposta à sondagem recusaram fazê-lo), o estudo lança uma luz interessante sobre o movimento PEJIDA, do ponto de vista da sua continuidade com os movimentos tradicionais da extrema-direita.
Naturalmente, qualquer análise que trate de uma manifestação contemporânea da extrema-direita tem de responder à questão «que fazer?» Em várias cidades da Alemanha Ocidental tem havido admiráveis manifestações contra as tentativas dos nazis locais de formar PEJIDAs e outros grupos com nomes diferentes terminados em «gida». A potencial base de massas da extrema-direita na Alemanha Ocidental é bastante limitada e continuará a sê-lo num futuro previsível. Muito mais impressionantes foram as manifestações massivas contra a marcha LEJIDA em Leipzig, ainda que as circunstâncias também fossem mais favoráveis, devido ao caráter abertamente fascista deste movimento e à continuidade de um forte sentimento antifascista no seio da esquerda nesta cidade.
Um elemento problemático que não foi suficientemente analisado nos debates da esquerda radical sobre a nova extrema-direita é a resistência de muitos ativistas de esquerda em abordar a especificidade do racismo antimuçulmano. Se é certo que a hostilidade abertamente expressa contra os muçulmanos oculta uma posição mais alargada de caráter racista para com os estrangeiros que, demasiadas vezes, os ativistas de esquerda alemães recusaram tratar o tema de como racismo antimuçulmano, dominante na intelectualidade liberal e até em partes da esquerda radical, abriu caminho à extrema-direita.
Uma admirável oposição ao antissemitismo que ainda grassa na sociedade europeia conduziu, depois da segunda Intifada e das guerras do Afeganistão e Iraque, a um alarmante racismo antimuçulmano numa parte da esquerda radical alemã. Até os setores que não caíram nessa armadilha não tiveram o cuidado de não confundir uma crítica materialista geral da religião, enquanto tal, com um discurso racista que pretende apresentar os muçulmanos como pessoas particularmente patológicas ou ameaças à «ilustração» ou à «civilização». A transição de uma figura como Elsässer, de propagandista «antialemão» a figura de proa da nova extrema-direita nacionalista, deveria dar que pensar àqueles militantes da esquerda radical alemã que procuram evitar o confronto com discursos especificamente antimuçulmanos e os difusos entre a defesa da «racionalidade da ilustração» e os movimentos que clamam pela proteção do Ocidente.
*Ativista antirracista e escritor residente na Alemanha.
Este texto foi publicado em https://www.rebelion.org/
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