DECRETO DO NOME SOCIAL: VITÓRIA DA LUTA, MAS COM A VELHA CONHECIDA DESUMANIZAÇÃO

imagemA presidenta Dilma Rousseff assinou, em 28 de Abril, o Decreto Nº 8.727, que dispõe “sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”¹. A assinatura aconteceu em reunião com lideranças do movimento social de travestis, mulheres transexuais e homens trans durante a Conferência Nacional de Direitos Humanos, logo após as Conferências Conjuntas LGBT, da Criança e do Adolescente, do Idoso e de Pessoas com Deficiência, e vem sendo tanto celebrada como uma teórica demonstração de simpatia e abertura da presidenta com as demandas LGBT, quanto criticada pelo caráter paliativo das políticas de nome social². Como usualmente acontece nos debates políticos do campo institucional, principalmente frente um cenário político tão polarizado quanto o nosso atual, as reações à assinatura do decreto tendem a tomar parte em um maniqueísmo que não só é falso, como também oculta elementos importantes para a compreensão desse movimento.

É preciso reconhecer que a assinatura do Decreto é uma vitória. Reconhecê-lo não significa dizer que todos os problemas relacionados à contradição entre registro civil e nome social estão resolvidos, nem que os movimentos sociais devam se contentar com a batalha pelo mínimo possível, tampouco nos impede de admitir que se a teatralizada sensibilização da presidenta fosse real, havia ações maiores e mais significativas a serem tomadas. Mas significa afirmar e reconhecer a luta organizada que os movimentos articuladores dessa conquista travam e travaram. Ter sido esse o Decreto conquistado, um decreto que versa sobre uma das demandas históricas de um dos segmentos mais marginalizados e socialmente vulneráveis não só da população LGBT como da classe trabalhadora, é sintoma também do fortalecimento do movimento social de travestis, mulheres transexuais e homens trans e precisa, sem prejuízo das críticas, ser celebrado.

Esse fortalecimento não se deu à toa: articulado majoritariamente por três redes nacionais (ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Ibrat – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades e RedTrans – Rede Nacional de Pessoas Trans), o movimento vem lutando para fortalecer a luta organizada e coletiva e respaldando suas atuações em formas organizativas orientadas para a democracia direta e a unidade de ação, construindo suas pautas e lutas a partir das necessidades mais emergentes da população que representa e combatendo, dentro das suas limitações estratégicas, o fragmentacionismo que hoje assola parte significativa dos movimentos sociais. Celebrar essa pequena (e de fato é pequena) vitória é também destacar as potencialidades da atuação coletiva e organizada, tão frequentemente atacada e desvalorizada pelo senso comum do nosso tempo.

Se é possível falar de vitória, no entanto, é imprescindível que se complemente: é uma vitória do movimento, não uma benesse do governo federal; é uma conquista de um movimento organizado, não um indicativo de apoio e parceria do governo do PT, e menos ainda um sinal de “guinada à esquerda” de um governo que não hesitou em rifar as emergentes demandas particulares da população LGBT em prol da governabilidade. Vamos agora esquecer o veto ao chamado “Kit Gay”³, seguido da declaração de que “o governo não irá fazer apologia de opção sexual (sic)”? Devemos esquecer agora o ínfimo avanço que conquistamos nesse mais de década de governo? Temos que ignorar as alianças com a BBB – bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia – que fortaleceram o campo conservador e em muito contribuíram para a explosão fascistizante que hoje a gente enfrenta? Vamos esquecer a lei anti-terrorismo, que abre espaço ainda maior para a criminalização dos movimentos sociais? A lei da terceirização, junto com todos os retrocessos no campo trabalhista, que precarizam ainda mais as condições de trabalho principalmente de quem já as tem mais precarizadas, parte da classe da qual fazem parte fundamentalmente mulheres, pessoas negras e LGBT?

No relato que Jean Wyllys fez da reunião de assinatura do decreto, na qual também esteve presente, ele diz que “Dilma colocou suas dúvidas e se permitiu ser educada pelas pessoas trans que ali abriam os corações. Em determinado momento, o que seria uma reunião de educação e discussão acabou por ser um ato de vida. ‘Me dá o decreto aí, vamos assinar agora!’, disse a presidenta.”4. Como podemos encontrar mérito nessa ação da presidenta quando apenas agora, no meio do seu segundo mandato e quarto do seu partido, às vésperas da possibilidade do impeachment, ela se dispõe a ouvir e aprender sobre a demanda mais simples e mais básica do movimento, que é o direito ao nome? A presidenta ofende nossa inteligência e nossa luta tentando fazer parecer que era apenas uma questão de entender a necessidade e ser convencida disso, que só faltou diálogo! O que estamos fazendo há décadas, senão gritando, pedindo, explicando e demandando? Daremos a ela o mérito e por consequência, vamos fingir que até então estávamos mudas?

Não podemos! Não devemos!

Ainda que nos doa fazê-lo no calor de uma pequena conquista tão duramente buscada, é fundamental que coloquemos o nosso furor de lado para olharmos o que vem sendo feito conosco. Se o decreto representa uma conquista do movimento, e apenas ao movimento cabe o mérito, o momento escolhido pelo governo para assiná-lo nos mostra o papel que as nossas demandas, tão urgentes, tem para ele: no afundar iminente do barco, nos possíveis últimos respiros, a presidenta se volta para nós e sem nenhuma auto-crítica, sem nem ficar vermelha, nos diz: “é, está ruim para o meu lado. Talvez agora vocês me sejam úteis, já que os algozes de vocês, mais poderosos e mais úteis que vocês, não me querem mais”. Em vez de felizes com a Dilma e brigando entre nós, devíamos estar felizes pela conquista, mas profundamente revoltados pela violência que é o oportunismo com o qual as nossas demandas, bem como as demais demandas particulares, são tratadas pelo governo. Somos usadas quando parecemos úteis e rifadas quando quem nos mata é mais útil que nós. Essa é, no fundo, apenas mais uma faceta da desumanização que nossa sociedade nos reserva.

É fundamental, sim, que nos coloquemos contra o impeachment, pelos interesses que ele representa e pelo conservadorismo e reacionarismo atroz que ele destampa e sobre o qual tanto debatemos. Mas não podemos deixar que isso nos cegue para quem está realmente do nosso lado e quem não está. Porque com ou sem impeachment, a luta segue e para a classe dominante e para os gestores dos seus interesses, nosso sangue continuará sendo moeda de troca e a solução real continua onde sempre esteve: na luta, na rua, no movimento e na organização revolucionária junto à nossa classe.


1. Conforme publicado em diário oficial. Íntegra em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp

2. As chamadas “políticas de nome social” são instrumentos que permitem o uso do nome pelo qual travestis e pessoas trans são socialmente conhecidos, mesmo que esse não seja o nome constante em documento. São consideradas medidas paliativas porque não garantem a retificação do nome nos documentos. Tramita hoje a PL 5002/2013, batizada Lei João W Nery, que garantiria a retificação via processo administrativo.

3. O nome correto é “Escola sem Homofobia”, um material que seria distribuído nas escolas cujo foco era informar e educar para o respeito à diversidade sexual. O material foi vetado pela presidenta que sobre ele, à época, disse que “o Governo não fará apologia de opção sexual”. O termo “opção sexual”, a saber, também não é mais utilizado e costuma indicar falta de familiaridade com o tema – há muito tempo, o termo foi substituído por “orientação sexual”, a partir da compreensão de que não se trata de uma escolha.

4. Íntegra em: https://www.facebook.com/jean.wyllys/posts/1080881668626506:0

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