Pela vida das pessoas trans!

Coordenação Nacional do Coletivo LGBT Comunista

Basta de recuar, é hora de avançar!

Nosso país tem passado por um avanço das forças reacionárias e conservadoras tanto nas demandas econômicas quanto nas ditas “morais”, tendo como sua representação mais evidente o fascismo bolsonarista. Embora a ofensiva burguesa que estamos vivenciando não tenha começado em 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro, ela tem como ponto de inflexão o golpe jurídico-parlamentar de 2016 que culminou no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e a posterior vitória de Bolsonaro. Os ataques ao conjunto da população trabalhadora tomam características particulares quando se trata da população LGBT, em especial a população de mulheres transexuais, travestis e homens trans. Esse estrato da classe trabalhadora é alijado do acesso à saúde, à moradia, ao trabalho e à educação, na mesma medida que é atingido por enésimas violências em suas diversas faces.

COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI?

Ao longo das últimas décadas, uma série de ataques à classe trabalhadora foi vivenciada de modo cada vez mais frequente. Se por um lado o Partido dos Trabalhadores (PT) se elegeu com ampla adesão popular em seu primeiro mandato, por outro ali já se apresentavam os indícios de que seus governos seriam geridos pelo capital, com participação social colateral. Isto se expressou em uma série de momentos com políticas atreladas à agenda do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial (BM) e de setores da burguesia nacional, como as construtoras e a emergente burguesia da educação privada. Fora dos gabinetes a “participação popular” aparentava dar a tônica, através do alargamento de conselhos e espaços para a participação da sociedade civil, com amplos movimentos sociais servindo de sustentação ao governo, mas dentro dos gabinetes foi a burguesia quem definiu os rumos da economia e da agenda política do governo. Com a crise econômica de 2008 e a necessidade de se recuperar as taxas de lucro, a burguesia teve de romper com a política de conciliação de classes petista, intensificando a agenda neoliberal, que culminou no processo de impedimento que tirou Dilma da Presidência da República através de um golpe jurídico-parlamentar, e prendeu Lula nos anos seguintes. Desde então, temos visto em velocidades muito intensificadas o desmonte dos direitos trabalhistas, da educação, da saúde, da previdência social etc., além da venda de parte significativa do patrimônio público.

Essa escalada que se iniciou com Michel Temer, com a Reforma Trabalhista, a Reforma do Ensino Médio, a implementação do preço do petróleo atrelado ao mercado internacional (PPI) e o Teto de Gastos, encontrou no extremismo reacionário de Bolsonaro seu campo mais profícuo. Bolsonaro levou a cabo uma quantidade sem-fim de ataques a todo o conjunto da classe trabalhadora, como a Reforma da Previdência, a autonomia do Banco Central, e a privatização de serviços como a BR Distribuidora (os antigos postos de gasolina da Petrobrás) e de uma série de campos da Petrobrás, além de uma agenda genocida na saúde e no enfrentamento à Covid, que representou a morte de 700 mil pessoas. Também produziu uma política fascista que conseguiu uma grande inserção no seio da classe trabalhadora, e que, embora tenha sido derrotada nas urnas em âmbito executivo federal, ainda é uma força política que ecoa no legislativo e nas ruas, com uma extrema-direita organizada e forte.

ONDE AS LGBTS ENTRAM NESSA HISTÓRIA?

Bolsonaro também elencou um inimigo em particular: parte significativa de sua agenda tem como temática uma política anti-gênero e anti-trans, como o dito “kit gay” e a “mamadeira de piroca”, tudo isso fazendo coro com a guerra à “ideologia de gênero”. Foi em grande medida isso que o promoveu e o alçou à presidência. A política fascista de Bolsonaro trouxe inúmeros retrocessos para as já frágeis conquistas da população LGBT, não se limitando à retórica. Sua gestão destruiu espaços onde as demandas LGBT podiam ser colocadas, da mesma forma que cortou repasses às políticas públicas para a população LGBT; perseguiu e cortou, no campo da cultura, o repasse de projetos da Agência Nacional de Cinema (Ancine) à população LGBT, acentuando-se os ataques quando a temática era trans; entre outros tantos ataques. E o rastro de sangue deixado por sua política ainda persiste: no ano de 2023, temos a proposição de um Projeto de Lei por dia com agenda anti-trans, sendo a maior parte deles proposta por parlamentares da atual legenda de Bolsonaro (o PL).

A população T sofre uma série de violações que tendem a seguir um padrão, embora com variações. Este padrão consiste num ciclo de violência que vai desde a primeira idade até o momento de sua morte, tendo como fase inicial a tentativa de adequação a determinadas associações do que entende-se por “homem” ou “mulher”, e todo o conjunto de signos que disso derivam; passando pela sujeição e tentativa de adequação ao dito “normal”; no ambiente familiar, a depender do nível de repreensão, pode-se ter desde violências psicológicas a expulsão da pessoa de casa; falta de acesso à educação formal, em decorrência da falta de um espaço adequado para reprodução de sua vida; dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal; etc. Trata-se, portanto, de uma parte da classe trabalhadora que reúne as demandas mais candentes que atingem nossa classe.

A esse ciclo de violência se somam os dados internacionalmente conhecidos produzidos pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) de que o Brasil está entre os países mais violentos para pessoas trans, encabeçando o ranking de mortes motivadas por transfobia entre os países que fazem algum levantamento do tipo. Além disso, há grande dificuldade em conseguirmos definir com precisão as formas da violência que atinge a população T. Não sabemos, hoje, pela falta de inclusão de questões atreladas à população LGBT no Censo, quantas pessoas trans existem no Brasil, quais os postos de trabalho que ocupam de fato, qual seu grau de escolaridade, os espaços geográficos que ocupam, seu nível de renda. Tudo isso representa impeditivos materiais tanto para a organização de pessoas trans em torno de suas demandas, quanto para a produção de políticas mais representativas para romper com os estigmas e os lugares ocupados pela população trans.

POR QUE SOMOS NÓS O ALVO DESSA VIOLÊNCIA?

Isso coloca uma questão central: a política violenta que nos atinge enquanto população trans não é mera questão “moral”, menos ainda pode ser considerada uma “cortina de fumaça” para a pauta econômica. A dimensão desumanizante da violência que nos atinge tem uma base material que dá sustentação a ela, estando intrinsecamente associada à produção e reprodução da vida no modo de produção capitalista, e como determinadas formas de viver nesta sociabilidade “questionam” — ou aparentam questionar — algumas das instituições fundamentais para a existência do capitalismo, como a família — daí deriva, inclusive, a necessidade do capital de assimilar as demandas da população LGBT e de se pensar novas formas de se reproduzir e garantir a centralidade dessas instituições, por exemplo, pensando em “famílias de todas as formas, cores e jeitos de ser”.

Se por um lado o movimento LGBT tem conseguido pautar e garantir algumas políticas direcionadas à população trans via poder judiciário, em contrapartida há mobilizações intensas de setores organizados para refrear esses tímidos avanços. Não se trata de mera casualidade, mas reflete a necessidade histórica da burguesia fortalecer a família durante os seus momentos de crise, implementando uma série de contrarreformas com o intuito de individualizar e centralizar ainda mais na unidade doméstica a produção e reprodução da força de trabalho, incluindo a formação (cada vez menos qualificada) das gerações seguintes da classe trabalhadora. O que isso quer dizer? Que reformas que vão diminuir o valor da força de trabalho, que vão tirar do alcance do consumo do conjunto da classe trabalhadora serviços privados e subutilizar serviços públicos (como o SUS e a escola pública), impõem à unidade familiar a execução dessa série de trabalhos, que são relegados, quase que exclusivamente, às mulheres cis, às mulheres transexuais e às travestis, quando essas figuras existem no ambiente familiar. Apesar disso, algumas satisfações do conjunto de necessidades para a reprodução da força de trabalho, por exemplo as necessidades sexuais de homens, muitas vezes são satisfeitas fora dessa unidade familiar, recorrendo ao trabalho sexual, que não coincidentemente concentra parte significativa das trabalhadoras travestis e mulheres transexuais.

HORA DE IR À LUTA!

Embora consigamos enxergar avanços no atual governo Lula frente à nefasta política que se apresentou no último período, o governo atua em dois flancos: de um lado, com um novo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania que se desvencilha das políticas ultraconservadoras da ex-ministra Damares Alves, contando inclusive com uma Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, o governo atende a parte da agenda dos movimentos LGBT e feminista; de outro, o cerne da agenda econômica de Lula, que é chefiada por pessoas como Fernando Haddad (ministro da Fazenda) e Simone Tebet (ministra do Planejamento e Orçamento), faz coro à agenda neoliberal das contrarreformas aprovadas no último período, com tímidas alterações: a nova Reforma Tributária a ser apresentada não se propõe a mexer no imposto sobre consumo, por exemplo, o que onera mais a população trabalhadora e menos a burguesia, bem como a política fiscal do Teto de Gastos terá tímidas mudanças no chamado “Arcabouço Fiscal”, ampliando orçamentos de algumas áreas, mas sem findá-la. Nos colocamos frontalmente contra esses recuos, também por ser sobre os nossos ombros que eles mais pesam, mas principalmente porque não aceitamos de modo algum qualquer política contrária ao conjunto da nossa classe.

Com tudo o que se apresenta, a postura do movimento LGBT tem sido reativa ao longo da última década. Temos tentado minimizar os ataques em todas essas esferas à população T, defendendo nossa liberdade e nosso direito de ser quem somos. É hora de mudar essa balança! Não queremos apenas o direito ao nome social, mas queremos o nome social e o fim do nome morto. Não queremos que estejamos simplesmente vivas, queremos estar vivas e em boas condições de se viver. Não queremos apenas acessar a educação, queremos produzir conhecimento que não objetive a reprodução do capital. Não queremos que as empresas simplesmente nos contratem, queremos que não existam mais empresas. Não queremos apenas trabalhar, queremos uma outra forma de trabalhar, cuja riqueza produzida não seja privadamente apropriada. Enfim, se nesta sociedade somos jogadas às traças, queremos o fim dela!

Por isso, chamamos à construção de uma jornada de lutas a população trabalhadora, os movimentos sociais, os partidos políticos de esquerda, as associações, os coletivos, os sindicatos etc., para avançarmos nas demandas da população trans, cuja urgência se impõe. Não há mais a possibilidade de esperar a benevolência deste ou daquele governo, a generosidade desta ou daquela empresa. Só a organização política e o movimento social organizado são capazes de sucumbir com a política de extermínio à nossa população e pavimentar a estrada para um novo tipo de sociedade, que atenda aos interesses da maioria da população, ao invés de esmagar nossas vidas, nossos ânimos e nossas aspirações. Uma sociedade socialista!

Por Dandara dos Santos, Amanda Marfree, Thina Rodrigues e Demétrio Campos, toda uma vida de luta! Parem de nos matar!
As trans querem pão, terra, trabalho e saúde!
Matar a besta do fascismo! Sem anistia!
Stonewall foi uma revolta, façamos uma revolução!
Contra o capital e a transfobia, organizar o movimento LGBT pelas bases!
LGBT tem classe!
Pelo fim do enriquecimento privado de empresas em cima da pauta trans!
Pelo mapeamento da população LGBT!
Pela revogação imediata de todas as reformas neoliberais!
Pelo poder popular, rumo ao socialismo!

Fonte: https://lgbtcomunista.org/2023/06/08/pela-vida-das-pessoas-trans-basta-de-recuar-e-hora-de-avancar/