Dia de combate à LGBTfobia: o que comemorar?

imagemNOTA DA COORDENAÇÃO NACIONAL DO COLETIVO LGBT Comunista

Dia Internacional de Combate à LGBTfobia: O que temos a comemorar?

Ser chamado de doente por ser LGBT ainda é realidade na sociedade capitalista. Mas há 30 anos essa referência seria literal. A homossexualidade constava na lista de distúrbios mentais, com direito a CID próprio (Cadastro Internacional de Doenças). A mobilização de LGBTs em todo o mundo resultou na retirada da homossexualidade do rol de doenças em 17 de maio de 1990. A data ficou marcada como Dia Internacional de Combate à LGBTfobia.

Neste ano a data se dá em um contexto de pandemia, responsável pelo agravamento da crise do capitalismo, que responde com o avanço impiedoso das políticas neoliberais. A aprovação das reformas da previdência, trabalhista e a lei das terceirizações, somada ao aumento do desemprego e trabalhos informais, resultou no empobrecimento e endividamento da classe trabalhadora. Não bastasse a piora nas condições de vida, a aprovação, em 2016, da emenda constitucional do Teto de Gastos (EC 95) congelou os investimentos públicos por 20 anos. Os serviços públicos desde então passam um grave desmonte e estão cada vez mais longe de atender as necessidades da população.

Como parte da classe trabalhadora, LGBTs enfrentam esse momento com enormes dificuldades. A cada dia tendo nossa força de trabalho mais expropriada pelo capital, acesso restrito aos serviços públicos e com piores condições de sobrevivência, engrossamos as fileiras dos trabalhos terceirizados, informais, uberizados e intermitentes.

Com a eleição do governo Bolsonaro, também houve redução dos espaços de discussão de políticas públicas específicas, a partir da extinção do Conselho de Combate à Discriminação LGBT. A ideologia reacionária, que baliza a política do governo Bolsonaro, estimula o discurso de ódio, o fundamentalismo religioso e consequentemente a LGBTfobia. A pandemia piora a passos largos a violência, em suas mais variadas formas, à população LGBT.

A saúde pública nunca proporcionou ambiente propício para os cuidados específicos da população LGBT. Sofrendo sucessivos desmontes, o SUS mostra isso mais desnudamente neste quadro de pandemia. Podemos exemplificar citando o acompanhamento das pessoas que estavam realizando o processo transexualizador, que foi interrompido. Sem nenhuma medida paliativa para que as pessoas não fiquem desassistidas, as usuárias e usuários seguem sem orientação médica, psicológica e sem as medicações necessárias.

Enquanto o Estado socorre os banqueiros, que nunca estiveram em risco, com liberação de mais de R$ 1 trilhão, a classe trabalhadora é humilhada diariamente para ter acesso às migalhas. O auxílio emergencial, de R$ 600, tem valor irrisório e com acesso altamente burocrático. As filas em todo país para recebimento são humilhantes e colocam vidas em risco de contaminação com as aglomerações. A parcela mais vulnerável da população LGBT tem dificuldade até mesmo para fazer o cadastro do auxílio, pois é preciso algum conhecimento para lidar com a tecnologia, um celular com acesso a internet e ter os documentos necessários.

O isolamento social tampouco é uma realidade para grande parte das LGBTs, pertencentes à parcela da classe trabalhadora mais precarizada. O isolamento social é irreal para as periferias. Sem políticas que assegurem condições materiais de isolamento, LGBTs continuam a trabalhar, muitas vezes sem proteção. A população T é a mais atingida, pois como 90% desse grupo está ou esteve em trabalho sexual, muitas não têm opção, senão permanecerem nas suas atividades de sobrevivência, expostas à contaminação pelo covid-19 e à violência transfóbica nas ruas vazias. Nos quatro primeiros meses desse ano, já houve um aumento de cerca de 49% no número de assassinatos de travestis e transexuais, quando comparado ao mesmo período do ano passado.

O fundamentalismo religioso não dá trégua e tem disseminado a ideia de que o covid-19 é um castigo divino para um mundo repleto de “comportamentos imorais”, incluindo as LGBTs entre os propagadores de tais comportamentos. Isso acontece em diversos países, com os avanços do discurso conservador, e consiste em atravessar uma pandemia descartando informações científicas, utilizando-se do medo provocado por este momento de incerteza, para intensificar o controle social sobre a classe trabalhadora, desumanizando a população LGBT, considerada “causadora de todo o mal”.

Outro resultado imediato desse irracionalismo, que soma-se ao estado de miséria econômica que atravessamos, é a intensificação da violência em sua forma física e psicológica sofrida pelas LGBTs em âmbito doméstico. Grande parcela de nós ainda é excluída de suas organizações familiares biológicas, por conta de nossa sexualidade e identidade de gênero, sendo frequentemente expulsas/os de casa ou convivendo com violências diárias, sendo significativos os índices de abuso sofridos, impingidos por familiares, à população LGBT. Segundo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9% no estado de São Paulo. Mesmo sem dados oficiais neste ponto, sobre nossa população, não é precipitado inferirmos que aumento similar ocorre dentre as LGBTs.

A invisibilização da população LGBT torna-se clara quando buscamos dados oficiais acerca de violências, acesso ao mundo do trabalho ou recortes sociais. Tais dados inexistem, pois não interessa ao sistema capitalista saber quem somos, ou nossas reais demandas. Apagar a nossa existência seria o objetivo nesse momento de avanços do neoconservadorismo e crise do capitalismo, que conta com um imenso exército industrial de reserva. A política eugenista é um projeto sistêmico e as LGBTs não se enquadram no perfil idealizado para a massa trabalhadora, pela burguesia. Essa eugenia se reforça com projetos como o do “combate à ideologia de gênero”, insistentemente levado à pauta pelo governo federal.

A decisão do Tribunal Federal que derruba a restrição de doação de sangue por homossexuais não nos alimenta, nem nos fornece meios de lutar contra a violência que sofremos. Ainda que seja um avanço jurídico no reconhecimento de que ser LGBT não é sinônimo de ser vetor óbvio de doenças, o é apenas em termos jurídicos. Na vida material, esta decisão sozinha não é capaz de alterar a ideologia que nos desumaniza.

O Estado, que nos ataca frequentemente, nos oferta essas pequenas e cartoriais concessões, como a criminalização da LGBTfobia, que, apesar de sancionada, em nada altera a realidade da população LGBT vítima de violências. Além de não oferecer canais específicos para denúncias, as violências são subnotificadas e tipificadas de outras formas, de maneira a não gerar estatísticas reais acerca da LGBTfobia. Ainda assim seguimos sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo e o que mais mata LGBTs na América Latina.

O Coletivo LGBT Comunista reforça que, além de criticar severamente a forma com que vem sido aplicada a legislação que criminaliza a LGBTfobia, reprovamos o formato puramente punitivista da lei, e o modelo de encarceramento da sociedade brasileira, que é classista, racista e LGBTfóbico.

Os tempos são sombrios. Não há orgulho LGBT que conforte a dor da perda das milhares de companheiras e companheiros trabalhadores, LGBTs ou não, que pagarão com suas vidas para garantir que a barbárie da exploração capitalista seja mantida. É preciso abandonar a resistência e contra-atacar. Precisamos nos organizar e encontrar formas coletivas de construir uma luta necessariamente antissistêmica, que ponha termo às condições objetivas de superexploração do trabalho e divisão de nossa classe que alimentam o discurso de ódio que nos marca na pele.

Por todos os pontos colocados, fica claro que as demandas da população LGBT vão muito além da pauta do casamento e do respeito à diversidade. Embora esses pontos garantam algumas proteções, não basta a aceitação formal via Estado e nem a aceitação moral. Se a reprodução do capital se beneficia da nossa exploração e da nossa marginalidade, não nos convém exigir um posto em que somos explorados mais brandamente, de forma mais amaciada. Mais central é apontarmos que as demandas da classe trabalhadora – moradia, emprego, saúde – são nossas também, sobretudo nesse momento de grande vulnerabilidade. Radicalizar a pauta LGBT significa levá-la às raízes de nossa opressão e essas raízes não são outras senão a exploração do homem pelo homem.

Assim, se o capital nos ataca mais brutalmente e se, na crise, mostra suas garras, é nosso dever responder à altura e reunir forças para atacá-lo em seu ponto nevrálgico. Não existe mais espaço para o “liberalismo democrático” e para a conciliação, que só nos enfraqueceu e nos trouxe até aqui.

Neste Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, o Coletivo LGBT Comunista reforça que a vida deve estar acima dos lucros.

17 de maio de 2020.

Categoria
Tag