Criminalização da LGBTFOBIA
Coordenação Nacional do Coletivo LGBT Comunista
No dia 13 de Fevereiro o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar a criminalização da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.
Os autores das ações entendem que os parlamentares federais, ao não legislarem sobre essas formas de discriminação, estariam descumprindo o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que determina que qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais seja punida criminalmente. Demandam, portanto, que o STF determine um prazo para a criação da lei e que, caso ele não seja cumprido ou seja considerado desnecessário, que a própria Corte regulamente temporariamente o tema, criminalizando a LGBTfobia ao entendê-la como um tipo de racismo – ficando embutida, portanto, na já existente legislação sobre o racismo.
Até a interrupção em 21 de fevereiro, os quatro ministros da Corte que votaram mostraram-se favoráveis à questão. É necessário mais dois votos, dos sete restantes, para que a medida seja aprovada.
Compreendendo a complexidade e seriedade da discussão, o Coletivo LGBT Comunista vem conduzindo uma profunda discussão política sobre esta pauta, de forma a consensuar um posicionamento que reflita, ao mesmo tempo, nossa linha política, a análise crítica do Partido Comunista Brasileiro e os ricos questionamentos de nossas bases, inseridas organicamente nos movimentos populares.
E ENTÃO, COMO FICA NOSSA POSIÇÃO?
Os setores dos movimentos populares que defendem esta medida frequentemente fazem parecer que essa defesa é ou deveria ser consenso na esquerda e sinônimo de posicionamento progressista. Sabemos, no entanto, que não é assim. Sem se confundir com o conservadorismo da direita, que se posiciona contrariamente por reacionarismo e em defesa dos padrões tradicionais de família e sexualidade, setores da esquerda questionam a criminalização a partir de um posicionamento crítico sobre o direito penal e/ou o punitivismo.
Entendemos, portanto, que devemos começar afirmando que a questão não é simples, tampouco consensual, e que suas problemáticas, frequentemente escondidas por discursos rasos, precisam se fazer evidenciadas e negritadas nessa discussão.
Não é politicamente responsável ignorar, por exemplo, o seletivismo burguês e racista do sistema penal – que não é circunstancial, mas produto da função que o direito penal tem como mantenedor da ordem capitalista e de seus sistemas de dominação; o quão atrasada essa medida é em relação à Lei Maria da Penha, por exemplo, que não se restringe à dimensão criminal e que mesmo assim já apresenta limitações; o problema ético e político da equiparação da LGBTfobia ao racismo; a ineficiência desse tipo de medida em combater de verdade o problema da violência contra a nossa população – que extrapola, inclusive, a dimensão da violência física; os sérios problemas políticos da hipertrofia do Poder Judiciário no cenário político atual, que é alimentada quando os movimentos populares pedem ingerência do STF sobre o Poder Legislativo.
Tampouco podemos ignorar, no entanto, o embate direto com o conservadorismo e com o reacionarismo que essa pauta contém, em um momento político em que as discussões envolvendo sexualidade e gênero servem de pretexto para a defesa de projetos de sociedade de caráter burguês e eugenista; o fato de que nosso posicionamento é, obviamente, de defesa de instrumentos também formais de combate à discriminação, ainda que discordemos das formas burguesas de fazê-lo; o momento político de retrocessos, que impõe limites bastante restritos às possibilidades de conquistas também para os setores mais vulneráveis da classe trabalhadora, como o LGBT; o precedente que o reconhecimento institucional da LGBTfobia como crime abre também para formas não criminais de tratar a questão no âmbito da institucionalidade; a implicação ideológica do reconhecimento, por parte do Estado, de que a LGBTfobia precisa ser combatida.
Nossa orientação de posição, portanto, é a de APOIO CRÍTICO, reiterando a importância de aprofundarmos os debates sobre a questão.
DETALHANDO: O APOIO É CRÍTICO
Muitas LGBTs morrem ou são atacadas dia após dia, vítimas da violência movida pelo ódio e pela intolerância de parte da sociedade brasileira. Por causa disso, diversos setores do movimento LGBT e progressistas têm como demanda histórica a criminalização da LGBTfobia, visando que os ataques de cunho LGBTfóbico diminuam. O que este pedido traz consigo, ainda que de modo não intencional, é uma individualização de um problema que não é pontual. Nós, LGBTs da classe trabalhadora, em medidas variáveis, somos vítimas de um lugar social muito específico. Estamos submetidas a determinadas funções na divisão do trabalho (como é o caso do trabalho sexual às travestis, dos call centers e varejos de shoppings às LGBTs como um todo, etc.), além de sempre termos o desemprego e a informalidade às portas.
Na mesma direção, também somos vitimadas por um preconceito que parte do Estado. Esse preconceito se objetiva de algumas formas: temos a recusa da utilização de nomes sociais, a burocratização do acesso ao processo transexualizador, a falta de profissionais da saúde específicos para o atendimento íntimo de mulheres lésbicas e bissexuais (além das pessoas trans), as agressões por parte da polícia militar, etc. E no setor privado o caráter da discriminação pode se dar em dois aspectos: na grande mídia, em programas de auditório e noticiários; e sendo hostilizadas por sermos LGBTs dentro de empresas, tanto na posição de funcionárias como de clientes.
Não dá para dizer que uma política que se proponha a criminalizar algo, e tão somente isto, conseguirá pôr fim às violências que são fruto da estrutura da sociedade brasileira. O direito e sua forma jurídica têm como objetivo a manutenção da engrenagem capitalista e seus institutos – propriedade, trabalho assalariado, liberdade (em sua acepção burguesa), mercadoria, etc. Com isto, traz segurança e previsibilidade à classe dominante em suas relações de troca. E o direito penal, por sua vez, é a expressão máxima do próprio direito: ele escancara as contradições da nossa sociedade. Sua função, primeiramente, é a de trocar equivalentes: do delito decorre uma pena para compensá-lo, e nada além disso.
“Nada além disso” do ponto de vista da troca de equivalentes. É sabido que a população encarcerada no Brasil – e no Ocidente como um todo – tem cor e classe social. A justificativa da “ressocialização” é uma mentira, evidenciada tanto pela ineficiência do encarceramento em combater a violência quanto pelo fato de que uma parte significativa da população privada de liberdade, hoje, ainda aguarda julgamento – muitas vezes por anos. Entre as vítimas do emblemático Massacre do Carandiru, em 1992, cerca de 80% das pessoas encarceradas assassinadas estava em privação de liberdade sem nem ter passado por julgamento.
A população carcerária cresceu assustadoramente nos últimos anos, sendo que em 1990 estimavam-se 90 mil presos, e em 2016, 26 anos depois, este número chegou a 726 mil (com apenas 368.049 vagas disponíveis, à época), segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Este número nos coloca na posição de terceiro país com mais presos no mundo. Desse número, 64% dos detentos são negros; no Brasil, o número de habitantes negros é de 53%. Das pessoas privadas de liberdade que trabalhavam em 2015, 33% não recebia remuneração alguma e 41% recebia menos que ¾ de um salário mínimo, sendo este valor o mínimo exigido pela Lei de Execuções Penais (LEP).
A questão que nos fica é: como um projeto que tem dado tão certo em sua função de criminalizar a pobreza poderia resolver justamente os problemas de uma das parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora, a população LGBT?? Com um governo declaradamente LGBTfóbico e que está fazendo de tudo para boicotar o avanço da discussão de gênero e sexualidade na sociedade, principalmente através das escolas com o “Escola Sem Partido” (PL 7.810/14) e atacando sistematicamente a inclusão da palavra “gênero” nos Planos Municipais de Educação (PMEs) e no Plano Nacional de Educação (PNE), a eficácia da criminalização da LGBTfobia como medida para combater a discriminação não nos parece viável, mas um tiro no pé.
No próprio caso do que tange às violências ligadas a orientação sexual e identidade de gênero no Brasil, existem leis estaduais e municipais em vários lugares desde o começo dos anos 2000 que penalizam condutas LGBTfóbicas e, mesmo assim, continuamos com dados alarmantes sobre violência contra LGBTs. De nada vale criminalizar, se ao mesmo tempo, desarticula-se o já frágil e sem poder deliberativo Conselho de Defesa de Direitos da População LGBT, que não se reuniu em 2019; se é vetado qualquer debate sobre diversidade sexual nas escolas; se não se criam políticas públicas para as nossas demandas no sistema de saúde e se somos expulsas do mercado formal de trabalho.
A LGBTfobia, no marco da sociedade capitalista, não acabará, posto que ela tem determinada função – criar um agrupamento de força de trabalho mais barata e nos colocar em postos de trabalho precarizados. Continuamos a morrer e a ser violentadas cotidianamente. Por isso, urge a necessidade de uma discussão com seriedade e que tomemos uma série de medidas, fora do âmbito penal, para que a população avance nos debates acerca de discriminação de gênero e sexualidade.
AINDA ASSIM, O APOIO CRÍTICO É UM APOIO
Colocadas as críticas acima, cabe também reconhecer que há um embate mais profundo que acompanha este projeto. Os movimentos das classes dominantes no último período, pós crise de 2008, vêm sendo de reiteração e reforço da ordem capitalista na sua forma mais eficaz, e isso inclui o seu caráter racista, machista e LGBTfóbico. Os ataques e perseguições direcionados, por exemplo, ao feminismo e aos movimentos LGBTI têm como pano de fundo a acentuação de um projeto de dominação. Se setores da classe dominante se opõem à criminalização, não é porque são críticos ao direito penal, mas porque nos querem mais exploradas e mortas!
Nesse contexto, a defesa de direitos e avanços para a população LGBTI, por menores que sejam e mesmo que nos limites da institucionalidade burguesa, têm o peso da defesa da humanidade dos setores mais vulneráveis da nossa classe; é a afirmação de uma posição política emancipatória, em embate direto com o que há de mais conservador e reacionário da política capitalista. No momento político em que vivemos, cobrar que o Estado reconheça, oficialmente, que a violência por conta de orientação sexual e identidade de gênero deve ser repudiada e combatida tem grande peso e significado, e demonstra também resistência e força dos movimentos de luta popular frente aos ataques que se agravam.
Além disso, se o direito burguês não é a lei que queremos, a lei que queremos também combateria as violências e discriminações LGBTfóbicas – ou não seria uma lei para nós e por nós. Se nossa crítica ao direito burguês é contundente, também o é nossa postura de intransigência quanto à defesa da nossa classe, de toda ela.
Há muito ainda a se discutir e aprofundar sobre o tema, mas a luta não para e seguiremos fazendo isso no seu decorrer. Entendemos, assim e sobretudo, caber ao movimento comunista que siga se somando à defesa dela sempre que necessário. Como comunistas: sem deixar de colocar as críticas que precisam ser colocadas; mas como comunistas: agindo na luta diária, ombro a ombro com a nossa classe, contra toda forma de dominação e exploração.