“As viúvas da Operação Condor estão de volta”
Krischke é um dos treze ameaçados por um tal “Comando Barneix”. “Esta ameaça pretende dizer aos estrangeiros que não se metam com o que acontece no Uruguai”. O especialista diz que há remanescentes da Operação Condor na região.
“O governo Temer está marchando rapidamente para o autoritarismo”, diz Krischke.
A entrevista é de Dario Pignotti, publicada por Página/12, 27-03-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
“As viúvas da Operação Condor estão de volta, porque certamente se sentem protegidas pelos governos de direita” denuncia Jair Krischke, ativista de direitos humanos brasileiro que melhor conhece e segue os passos desta multinacional terrorista há décadas.
Eis a entrevista.
Ainda restaram vestígios da Condor?
Veja, temos de ter muito cuidado quando falamos sobre esta questão, que tem a ver com um sistema onde os seus membros sabem mover-se nas sombras.
Você me pergunta se ainda há elementos da Condor em ação e a resposta que tenho de lhe dar, baseada nos fatos, é sim. Essas pessoas estão se movendo para impedir que a verdade seja conhecida e para aterrorizar a justiça. Eu não estou dizendo que a Operação Condor ainda está acontecendo como nos anos 70, quando contava com o aparato dos estados terroristas da Argentina, Uruguai, Brasil, Chile, Paraguai, etc. Agora eles deixaram de realizar sequestros e assassinatos coordenadamente, mas a grande maioria dos seus membros continuam a desfrutar da liberdade no Chile e no Uruguai, para não mencionar no Brasil, porque aqui todos estão livres graças a anistia que ditadura nos deixou e que não foi tocada por nenhum governo civil, nem revogada pelo Supremo Tribunal Federal.
Este panorama sul-americano tem sua exceção na Argentina, que foi sem dúvida o país que mais avançou, foi um grande exemplo até a chegada do governo Macri, que está demonstrando pouca vontade de colaborar com as investigações que ainda precisam ser feitas. Antes contávamos com muita colaboração sempre que pedíamos informações sobre a repressão ao Ministério das Relações Exteriores ou mesmo ao Ministério da Defesa da Argentina, e agora não somos atendidos.
Com Michel Temer no Brasil, resultado de um golpe visto com simpatia pelos nostálgicos da ditadura, e com Macri na Argentina, as coisas pioraram muito para as organizações de direitos humanos para as quais continuamos trabalhando para lançar luz sobre a Condor. Isto também acontece no Uruguai, onde o presidente Tabaré Vázquez ignora estes problemas.
Quem são essas viúvas da Condor?
Viúvas é uma forma de falar, pode-se usar outra denominação. Os que estão se movendo agora são os antigos opressores que não querem ser investigados, processados ou condenados. São militares aposentados que não estão sozinhos porque têm seguidores nos novos quadros das forças armadas que reivindicam a repressão e colocar fim às atrocidades que ocorreram no passado. Isto é consequência das academias militares onde continua sendo ensinado que o golpe de 1964 (contra João Goulart) foi uma “revolução”.
Essas pessoas operam através de seus cúmplices ou alguns adeptos que não são exatamente cúmplices, que estão em diferentes níveis do Estado.
E vão querendo posições, aparecendo com bandeiras da ditadura cada vez de maneira mais aberta perante a opinião pública, destituem a luta pelos direitos humanos e lançam ameaças veladas ou diretas.
Quais foram as ameaças mais recentes?
Como estamos falando da Condor, como estamos falando de um sistema repressivo regional, temos que analisar isso no mapa regional. Aqui no Brasil este governo nomeou como ministro do Gabinete de Segurança Institucional o general Sergio Etchegoyen.
Quem é Etchegoyen? É um homem muito inteligente, linha dura do exército e um homem que, sendo general da ativa, atacou publicamente a Comissão da Verdade criada pela presidente Dilma Rousseff. E com todas as suas limitações e claudicações, a Comissão da Verdade operou alguns progressos na Condor brasileira, que é um tema em que há muito para se investigar. Quando Temer chegou ao governo, ele logo tratou com os militares e deu garantias de que não precisariam se preocupar com as investigações do passado. Como ele fez isso? Ele nomeou o general Etchegoyen como Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional.
As viúvas da Condor nunca foram ameaçadas durante o governo de Dilma, mas agora estão certamente mais do que seguras e agradecidas a este governo ilegítimo que não perde nenhuma oportunidade de demonstrar seu rechaço aos direitos humanos em geral.
Eles querem verdade zero. Mas vamos continuar a luta dentro e fora do nosso país, porque aprendemos que esta luta contra a Condor não pode acontecer em um só país e não termina nunca.
Tivemos outro exemplo claro destas viúvas Condor há um mês e meio no Uruguai, onde um tal comando Barneix ameaçou 13 pessoas, sendo que três delas não são uruguaias.
De onde saiu esse comando? Escolheram o nome de um general que se suicidou há dois anos, quando estava prestes a prestar depoimento sobre a tortura e assassinato de um estudante em 1974. O comunicado deste comando é que de agora em diante “a cada suicídio mataremos três escolhidos ao acaso” da lista em que constam um francês, que é o jurista de prestígio Louis Joinet, companheiro de causa por muitos anos, a jovem pesquisadora italiana Francesca Lessa, da Universidade de Oxford, e o terceiro sou eu.
Esta ameaça tem as impressões digitais da Condor e eu acho que tem duas motivações. Uma delas pretende dizer aos estrangeiros que não se metam com o que acontece no Uruguai e, por outro lado, eles querem que esta ameaça tenha repercussões internacionais.
Você acredita que são capazes de passar da ameaça à ação direta?
Honestamente, eu não ficaria surpreso se eles cometessem algum crime de sangue, porque esses grupos são formados na escola de terrorismo de Estado. Na década de 90, pessoas pertencentes a estes grupos, e não estou dizendo que sejam os mesmos do comando Barneix, colocaram uma bomba no carro do deputado Hugo Cores. Depois, atacaram o escritório do ex-presidente Julio Maria Sanguinetti, que não tem nada de esquerda e, mais recentemente, há um ano atrás, invadiram a Faculdade de Ciências Humanas no Uruguai e roubaram arquivos do Grupo de Pesquisa em Arqueologia Forense. Agora, ameaçaram o ministro da Defesa, Jorge Menendez, e o presidente Tabaré Vázquez não fez nada. Eles não têm limites, podem jogar um molotov ou dar um tiro em um de seus alvos.
Você levou o caso ao governo brasileiro?
Entrei em contato com a embaixada em Montevidéu, onde me disseram que responderam que foram informados sobre esta ameaça pela polícia uruguaia. Portanto, as autoridades do Brasil e do Uruguai estão cientes do fato. O próximo passo será apresentar o caso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que enviará uma missão para Buenos Aires em maio.
Aqui o caso já começou a ser movimentado na Comissão de Direitos Humanos dos Deputados, em Brasília, que enviou ofícios à Procuradoria Geral da República, ao Parlasul e à Comissão Interamericana.
“Não descarto uma ditadura”
Proponho discutir o governo Temer e as tentações autoritárias denunciadas pelos líderes da oposição.
Eu acredito que este governo está marchando para o autoritarismo rapidamente. Se considerarmos que não faz mais de 10 meses que Temer está no poder, a caminhada em direção a um sistema repressivo tem sido vertiginosa, estou realmente muito desiludido com a realidade que vivo em meus 78 anos. Depois de toda uma vida lutando pela democracia, às vezes penso que fui derrotado. Eu não sei onde isso vai acabar. Quando vejo como se está reprimindo, quando vejo tantos jovens dizendo que querem o retorno dos militares, quando se vê o descrédito da classe política, fico muito preocupado, porque foi criado um vazio político que está sendo preenchido pelos militares.
Existe risco de uma ditablanda, uma ditadura branda?
Aqui ditablanda foi uma palavra usada de forma maliciosa durante a ditadura, como se tivesse sido meio ditadura, o que não era, porque aqui se matou, sequestrou e torturou muito antes do que em outros países. Aqui arranjaram operações com a lógica da Operação Condor em 1970, cinco anos antes do batismo da Condor que aconteceu no Chile em novembro de 1975.
Em dezembro de 1970 o coronel Jefferson Jardim Osório foi sequestrado na Argentina, com a participação de militares brasileiros, o que está perfeitamente registrado em um documento originado na Embaixada do Brasil em Buenos Aires, em 1970. Um documento que foi encontrado pelo Página/12 há vários anos e que foi entregue por você.
Este caso, que não foi o único caso de sequestro fora das fronteiras antes da Condor ser sacramentada no Chile, nos demonstra que a repressão no Brasil foi realizada de uma forma mais disfarçada, mas não por isso mais branda. Ou seja, não houve uma “ditadura branda” aqui.
Agora, voltemos ao presente. Durante todos estes anos, os militares foram muito persistentes ao impedir que se soubesse o que eles fizeram, e agora as Forças Armadas têm uma boa imagem na opinião pública, ou em uma parcela significativa dela, e estão cada vez mais presentes em um governo cada vez mais inexistente como é o de Temer. Estamos diante de um governo que ninguém sabe se vai acabar e que chama os militares para resolver a rebelião nas prisões, para o patrulhamento durante os Jogos Olímpicos, para reuniões de segurança interna, para atuar na inteligência interna. Para quase tudo.
É plausível pensar no retorno dos militares?
Eu não sei o que vai acontecer, não acho que chegaremos ao extremo de os militares ocuparem o governo, isso realmente não me parece possível. Mas repito: os militares estão ocupando posições cada vez mais fundamentais e, assim, poderia se chegar a um sistema ditatorial, embora não o chamem de ditadura.
E a verdade é que esse processo vem ocorrendo desde o governo da presidenta Dilma, quando o Ministério da Defesa baixou uma resolução autorizando os militares a agir nas ruas durante as manifestações de 2013. Depois, na Copa do Mundo de 2014, a presidenta permitiu que os militares usem as redes sociais para espionagem e até mesmo um general disse que usava a mesma tecnologia que a NSA dos EUA.
Em seguida, chega Temer e esta carta branca à participação militar na repressão política fica mais descarada.
Eu diria o seguinte: temos um governo autoritário com uma democracia enfraquecida, tudo isso nos coloca no limiar de uma ditadura, que pode vir dentro de qualquer pacote institucional.
http://www.ihu.unisinos.br/566288-as-viuvas-da-operacao-condor-estao-de-volta