Ideologia, Educação, Saúde e Capitalismo
por Phelipe Uchoa*
Quando se pensa em ideologia, o senso comum nos levar a assumir algumas meias verdades sobre seu funcionamento no cotidiano. Normalmente, somos levados a pensar, de forma bem mecânica, que a ideologia é um conjunto de ideias que através de diferentes meios (religião, educação, mídia etc) são enfiadas na cabeça dos indivíduos. Porém, quando pensamos dessa maneira, abandonamos uma lei inerente a qualquer processo social: é o ser social que determina a consciência, não é a consciência que determina o ser.
Um exemplo simples é capaz de demonstrar essa máxima: durante uma aula de pediatria em uma faculdade de medicina qualquer o docente ensina aos seus alunos como estimar pela idade a estatura e a massa de uma criança levando em consideração as curvas de Crescimento médio infantil e demonstra algumas referência do corpo do adulto que podem ser usadas para estimar a estatura das crianças de acordo com suas idades. Por fim, justifica a importância fundamental de termos essa técnica bem incorporada: há situações em que não temos como pesar a criança o que tornaria inviável medicá-la, pois o cálculo da dose se faz baseado na massa da criança, principalmente com a quantidade enormes de Pronto Socorros e Unidades de Pronto Atendimento onde não há equipamentos para colher esses dados (balança e régua). Todos concordam com o professor, inclusive acham importante que ele ensine isso, afinal ninguém quer passar o perrengue de dar uma dose errada para uma criança por não saber estimar seu peso.
A ideia do professor está totalmente dentro da materialidade, não há nenhum elemento desconexo entre a proposta dele e o que realmente acontece nas Unidades de Pronto Atendimento e Pronto Socorros espalhados pelo país. Há uma precarização enorme mesmo, há lugares onde medicamentos simples para dor estão simplesmente em falta, assim como itens como balança e régua. Então, de acordo com as próprias condições concretas do nosso sistema de saúde, os trabalhadores da saúde devem ser treinados a agir em condições precárias de serviço mesmo. Estimar a massa de um infante não serve apenas para momentos de urgência ou emergência em que não é possível pesar a criança ou perguntar para os pais, mas para a boa parte dos locais de trabalho onde há um serviço de pediatria, afinal a precarização é tanta que falta balança.
É importante avaliar isso! A materialidade! A concepção e a intervenção proposta pelo professor não é incoerente e inefetiva, pelo contrário: é coerente e, dentro da lógica que determina os sistemas de saúde pública no capitalismo, eficaz! O grande problema dessa proposta de intervenção é que somente faz uma remediação do problema ao invés de questionar suas raízes e propor soluções perenes. Como que isso ocorre? Imputa total responsabilidade individual a cada médico(a) e ou enfermeiro(a) em garantir que uma dose seja administrada corretamente, mesmo sem ajuda dos equipamentos essenciais para que isso ocorra. Toma como natural o cenário de hiper precarização do serviço de saúde público no país forçando as categorias dos trabalhadores da saúde a se adaptar a essa precarização e se responsabilizar legalmente caso algo dê errado no meio desse caos.
Essa concepção passada pelo professor é comum dentro da educação em saúde, não apenas a comum: é a hegemônica e é defendida de várias formas, do “médico-herói-faz-tudo” à ideia do “ah, é menos pior assim” e é parte integrante de um mecanismo que engessa todas as categorias de trabalhadores da saúde a mecanismos de resistência individual dentro de um sistema fadado a funcionar de acordo com os ditames da relações de produção hegemônicas em nossa sociedade.
Sim, o SUS funciona segundo a lógica capitalista não, não é uma “ilha socialista” dentro do Brasil. Por mais que esse sistema de saúde tenha garantido algumas conquistas materiais para o conjunto da classe trabalhadora do Brasil, desde o início seu funcionamento estava imbricado aos interesses da burguesia do país. Não é à toa que o principal agente consumidor de produtos do complexo médico-industrial privado no país é o próprio SUS: de leitos em hospitais particulares a exames e procedimentos em laboratórios e clínicas privadas, o SUS consome no sentido de oferecer um “serviço gratuito de qualidade” para toda a população; isso sem contar que cada vez mais s serviços de saúde do SUS estão sendo geridos por instituições privadas, como as OSSs. Não podemos esquecer também das imensas isenções que o Estado dá para as empresas donas de convênios e o atual incentivo do governo aos “planos de saúde populares”.
Por que isso ocorre? Pois bem, em uma sociedade cuja organização da produção determina que a maior parte das pessoas – a classe trabalhadora, no caso – são uma simples expressão de potencial força de trabalho, que é a mercadoria fonte de toda acumulação capitalista, as práticas de saúde (educação, tratamentos, manejo de pacientes, burocracias do sistema de saúde, financiamento do sistema de saúde) serão determinadas, em última instância, em função dessa condição concreta, isto é: seu funcionamento, em última análise, será no sentido de garantir um serviço de saúde mínimo para que a classe trabalhadora em seu conjunto não fique inválida a ponto de prejudicar a produtividade do sistema. As próprias entidades de representação global dos capitalistas – Banco Mundial e FMI por exemplo -, em seus relatórios sobre o impacto da saúde da população na economia, deixam isso bem explícito: a necessidade de se estabelecer serviços de saúde públicos e privados que consigam manter minimamente a classe trabalhadora viva e em condições de reproduzir sua força de trabalho.
Depois dessa divagação, fica a pergunta: mas o que o coitado do professor de pediatria tem a ver com isso? Obviamente que o professor não tem culpa nessa história, na verdade pouco importa a opinião pessoal dele sobre o assunto. O que importa aqui são as práticas transmitidas como naturais dentro da formação de um trabalhador especializado qualquer. A educação transmitida nas universidades para a formação de quadros técnicos é determinada pelas condições concretas de trabalho, e não o contrário. Portanto, a educação médica, nos marcos do capitalismo, serve essencialmente para formar quadros que consigam atuar no serviço público com a função de tratar os usuários para que estes estejam aptos a trabalhar e vender sua força de trabalho, não para manter o seu bem-estar, isso é secundário. Então, os usuários que dependem inteiramente do SUS ou de “planos de saúde populares” não precisam ter acesso pleno a toda tecnologia e conhecimento em saúde desenvolvida até hoje; precisam do básico: um médico, pequena equipe de enfermagem e olhe lá! Balança para pesar o filho do trabalhador? Não se faz necessário segundo a própria lógica do sistema: se é possível estimar o peso da prole dos trabalhadores, não há necessidade de ter uma balança nos pronto socorros e unidades de pronto atendimento públicos, é gasto a mais: basta treinarmos os trabalhadores da saúde para lidar com essa precarização e responsabilizá-los legalmente caso ocorra alguma tragédia devido a falta de estrutura.
É a partir das condições concretas imediatas,que se expressam diretamente sob a experiência do sujeito, que as ideias hegemônicas se estabelecem como norma socialmente aceitas, servindo para justificar essas condições concretas, tornando-as naturais e ahistóricas, logo impassíveis de transformação, favorecendo a classe que se beneficia dessa realidade. O professor de pediatria reproduz a ideologia dominante e a reforça, mesmo não sabendo e até discordando de todo esse processo, pois ensina a técnica para estimar a massa do infante, justifica esse ensino com base na evidente precarização do sistema e no fato de que caso haja algo errado o responsável legal é o médico de plantão. Em momento algum questiona o porquê de isso acontecer, nem deve questionar haja vista a função dos serviços de saúde no sistema capitalista, apenas toma como algo que todos os graduandos em medicina vão ter que passar inexoravelmente quando se formarem.
Assim os estudantes são treinados a reproduzir técnicas de forma acrítica e trabalhar dentro de um sistema em ruínas sem sequer questionar suas condições de trabalho, quanto mais tentar se organizar com seus colegas médicos e de outras categorias da saúde para reivindicar melhores condições de trabalho e muito menos irão ser estimulados a discutir novas formas de sociedade onde a riqueza gerada pelo trabalho de condições de plena humanidade a todas as pessoas e não ao que os capitalistas chamam de “mercado”.
*Militante da UJC-Brasil. Núcleo PUC Campinas