Breve história da OTAN de 1991 aos dias de hoje
ODIARIO.INFO – Manlio DINUCCI
Manlio Dinucci vem publicando um conjunto de textos sobre a história da OTAN. É desnecessário sublinhar o interesse e a qualidade que têm. Dada a sua extensão e ainda não estar concluída essa publicação, odiario.info irá reproduzi-los divididos em secções de dois capítulos cada.
A OTAN, fundada em 4 de Abril de 1949, integra dezesseis países no decurso da guerra-fria: Estados Unidos, Canadá, Bélgica, Dinamarca, França, República Federal Alemã, Grã-Bretanha, Grécia, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, Espanha, Portugal, Turquia. Por meio desta aliança, os EUA preservam o seu domínio sobre os aliados europeus, utilizando a Europa como primeira linha de confronto, incluindo o nuclear, com o Pacto de Varsóvia. Este, fundado em 14 de Maio de 1955 (seis anos depois da OTAN), integra União Soviética, Bulgária, Checoslováquia, Polónia, República Democrática Alemã, Roménia, Hungria, Albânia (entre 1955 e 1968).
DA GUERRA FRIA AO PÓS-GUERRA FRIA
Em 1989 ocorre a «queda do Muro de Berlim»: é o início da reunificação alemã que se concretiza quando, em 1990, a República Democrática se dissolve aderindo à RFA. Em 1991 o Pacto de Varsóvia é dissolvido: os países da Europa centro-oriental que o integravam abandonam a aliança com a URSS. No mesmo ano a União Soviética é dissolvida: formam-se quinze estados onde existia um único.
O desaparecimento da URSS e do seu bloco criam na região europeia e centro-asiática uma situação geopolítica inteiramente nova. Ao mesmo tempo, a desagregação da URSS e a profunda crise política e económica que atinge a Rússia marcam o fim do superpoder capaz de rivalizar com o dos EUA.
A guerra do Golfo de 1991 é a primeira guerra, no período que se seguiu ao segundo conflito mundial, que Washington não justifica com a necessidade de conter o ameaçador avanço do comunismo, justificação que estivera na base de todas as intervenções militares anteriores dos EUA no “terceiro mundo”, da guerra da Coreia à do Vietnam, da invasão de Granada à operação contra a Nicarágua. Com esta guerra os EUA reforçam a sua presença militar e a sua influência política na zona estratégica do Golfo Persa, onde se concentra uma grande parte das reservas petrolíferas mundiais.
Simultaneamente, Washington lança aos seus adversários, ex. adversários e aliados uma mensagem inequívoca. Está contida na National Security Strategy of the United States (Estratégia de segurança nacional dos Estados-Unidos), documento no qual a Casa Branca enuncia, em Agosto de 1991, a sua nova estratégia.
«Apesar da emergência de novos centros de poder – sublinha o documento subscrito pelo presidente – os EUA permanecem o único Estado com uma força, um alcance e uma influência em todas as dimensões – política, económica e militar – realmente mundiais. Nos anos 90, tal como em grande parte deste século, não existe qualquer substituto para a liderança americana.»
Seis meses após a directiva presidencial, um documento proveniente do Pentágono – Defense Planning Guidance for the Fiscal Years 1994-1999 (Guia para a planificação da Defesa para os anos fiscais 1994-1999) – filtrada pelo New York Times em Março de 1992, clarifica aquilo que na directiva presidencial devia ficar necessariamente implícito: o facto de que, para exercer a sua liderança mundial, os EUA deverem impedir outras potências, incluindo antigos e novos aliados, de poderem tornar-se seus concorrentes: «O nosso primeiro objectivo é o de impedir a reemergência de um outro rival, sobre o território da União Soviética ou em outro lugar, que constitua uma ameaça da mesma ordem da anteriormente colocada pela URSS. Devemos impedir que qualquer outra potência hostil domine uma região cujos recursos, se fossem estreitamente controlados, seriam suficientes para gerar uma potência mundial. Estas regiões compreendem a Europa ocidental, a Ásia oriental, o território da ex. União Soviética e a Ásia sul-ocidental».
Num tal quadro, sublinha o documento, «é de fundamental importância preservar a OTAN como principal instrumento da defesa e da segurança ocidentais, bem como canal de influência e da participação dos EUA nos assuntos da segurança europeia. Ao mesmo tempo que os EUA apoiam o objectivo da integração europeia, devem procurar impedir a criação de dispositivos de segurança unicamente europeus, que minariam a NATO, em particular a estrutura de comando da Aliança», ou seja o seu comando pelos EUA.
O NOVO CONCEITO ESTRATÉGICO DA OTAN
Enquanto reorientam a sua própria estratégia, os EUA pressionam a OTAN para que o faça também. Para eles é de urgente prioridade que seja redefinida não só a estratégia mas o próprio papel da Aliança atlântica. Com o fim da guerra-fria e a dissolução do Pacto de Varsóvia e da própria União Soviética dissipa-se efectivamente a motivação da “ameaça soviética” que até então mantivera a coesão da OTAN sob a liderança incontestável dos EUA: existe portanto o perigo de os aliados europeus fazerem opções divergentes ou até mesmo considerarem a OTAN inútil na nova situação geopolítica criada na região europeia.
Em 7 de Novembro de 1991 (depois da primeira guerra do Golfo, na qual a OTAN não participou oficialmente enquanto tal, mas com as suas forças e estruturas), os chefes de Estado e do governo dos dezesseis países da OTAN, reunidos em Roma no Conselho atlântico, lançam o «novo conceito estratégico da Aliança». «Ao contrário da ameaça predominante do passado – afirma o documento – os riscos que permanecem para a segurança da Aliança são de natureza multiforme e multidireccional, o que os torna difíceis de prever e de avaliar. As tensões poderiam conduzir a crises prejudiciais para a estabilidade europeia e até a conflitos armados, em que poderiam participar potências exteriores ou que poderiam alastrar para o interior dos países da OTAN». Face a estes e outros riscos, «a dimensão militar da nossa Aliança permanece um factor essencial, mas o facto novo é que ela estará mais do que nunca ao serviço de um amplo conceito de segurança».
Ao definir o conceito de segurança como algo que não está circunscrito à zona norte-atlântica, começa a delinear-se a «Grande OTAN».
II
A INTERVENÇÃO DA OTAN NA CRISE DOS BALCÃS
O «novo conceito estratégico» da OTAN encontra-se posto em prática nos Balcãs, onde a crise da Federação Jugoslava, resultante das oposições entre os grupos de poder e aos impulsos centrífugos das repúblicas, atingiu o ponto de ruptura.
Em Novembro de 1990, o Congresso dos EUA aprova o financiamento directo de todas as novas formações «democráticas» da Jugoslávia, encorajando deste modo as tendências secessionistas. Em Dezembro, o parlamento da República croata, controlado pelo partido de Franjo Tudjman, estabelece uma nova constituição segundo a qual a Croácia é «pátria dos Croatas» (e já não dos Croatas e Sérvios, povos integrantes da república) e é soberana sobre o seu território. Seis meses mais tarde, em Junho de 1991, para além da Croácia também a Eslovénia proclama a sua própria independência. Imediatamente a seguir, eclodem os confrontos entre o exército federal e os independentistas. Em Outubro, na Croácia, o governo de Tudjman expulsa mais de 25 mil sérvios da Eslavónia, enquanto as suas milícias ocupam Vukovar. O exército federal responde, bombardeando e ocupando a cidade. A guerra civil começa a alastrar, mas poderia ainda ser detida.
Pelo contrário, o caminho que vem a ser tomado é diametralmente oposto: a Alemanha, empenhada em ampliar a sua influência económica e política na região dos Balcãs reconhece unilateralmente, em Dezembro de 1991, a Croácia e a Eslovénia como estados independentes. Consequência: no dia seguinte os Sérvios da Croácia proclamam por sua vez a autodeterminação, constituindo a República sérvia da Krajina. Em Janeiro de 1992 a Europa dos doze reconhece também, para além da Croácia, a Eslovénia. A Bósnia-Herzegovina incendeia-se de imediato o que representa, em miniatura, a gama completa dos nós étnicos e religiosos da Federação Jugoslava.
Os capacetes azuis da ONU, enviados para a Bósnia como força de interposição entre as facções em luta, vão ser deliberadamente mantidos em número insuficiente, sem meios adequados e sem orientações precisas, acabando por se tornar reféns no meio dos combates. Tudo concorre para demonstrar o «fracasso da ONU» e a necessidade de que seja a OTAN a tomar conta da situação. Em Julho de 1992 a OTAN lança a primeira operação de «resposta à crise», para impor o embargo à Jugoslávia.
Em Fevereiro de 1994, aviões OTAN abatem aviões servo-bósnios que violam o espaço aéreo interdito sobre a Bósnia. É a primeira acção de guerra desde a fundação da Aliança. Com ela a OTAN viola o artigo 5º da sua própria carta constitutiva, uma vez que a acção de combate não é motivada por ataque a um membro da Aliança e é efectuada fora da área geográfica que abrange.
A GUERRA CONTRA A IUGOSLÁVIA
Tendo extinguido o incêndio na Bósnia (onde o fogo permanece sob as cinzas da divisão em estados étnicos), os bombeiros da OTAN correm a lançar gasolina sobre a fogueira do Kosovo, onde desde há anos está em curso uma reivindicação de independência por parte da maioria albanesa. Através de vias subterrâneas em grande parte geridas pela CIA, um rio de armas e de financiamentos vai, entre o final de 1998 e o início de 1999, alimentar o UcK (Exército de libertação do Kosovo), braço armado do movimento separatista kosovar-albanês. Agentes da CIA declararão depois ter entrado no Kosovo em 1998 e 1999 disfarçados como observadores da OSCE encarregados de verificar o «cessar-fogo», fornecendo ao UcK manuais estado-unidenses de treino militar e telefones com ligação via satélite, a fim de os comandantes da guerrilha poderem estar em contacto com a OTAN e com Washington. O UcK pode assim desencadear uma ofensiva contra as tropas federais e os civis sérvios, com centenas de atentados e de raptos. Quando os confrontos entre as forças jugoslavas e as do UcK provocam vítimas em ambos os lados, uma poderosa campanha político-mediática prepara a opinião pública internacional para a intervenção da OTAN, apresentada como a única forma de deter a «limpeza étnica» sérvia no Kosovo. O alvo prioritário é o presidente da Jugoslávia, Slobodan Milosevic, acusado de «crimes contra a humanidade» em operações de «limpeza étnica».
A guerra, designada «Operação força aliada», começa em 24 de Março de 1999. Enquanto os aviões dos EUA e de outros países da OTAN lançam as primeiras bombas sobre a Sérvia e o Kosovo, o presidente democrata Clinton anuncia: «No final do século XX, depois de duas guerras mundiais e uma guerra-fria, nós e os nossos aliados temos a possibilidade de legar aos nossos filhos uma Europa livre, pacífica e estável». O governo italiano vai ter nesta guerra um papel determinante: o governo de D’Alema coloca o território italianos, e em particular os seus aeroportos, à total disposição das forças armadas dos EUA e de outros países para operarem aquilo que o Presidente do Conselho definiu como «direito de ingerência humanitária».
Durante 78 dias, descolando sobretudo de bases italianas, 1100 aviões efectuam 38.000 saídas, lançando 23.000 bombas e mísseis. 75% dos aviões e 90% das bombas e mísseis são fornecidos pelos EUA. São também estado-unidenses a rede de comunicações, o comando, o controlo e a informação através dos quais são dirigidas as operações: «Dos 2.000 objectivos atingidos na Sérvia pelos aviões da OTAN – documenta depois o Pentágono – 1999 foram escolhidos pelo serviço de informações dos EUA e apenas um pelos europeus».
Sistematicamente, os bombardeamentos desmantelam as estruturas e infra-estruturas da Sérvia, provocando sobretudo vítimas entre os civis. Os danos que daí resultam para a saúde e o ambiente são incalculáveis. Da refinaria de Pancevo, nomeadamente, são libertas devido aos bombardeamentos milhares de toneladas de substâncias químicas altamente tóxicas (entre as quais dioxina e mercúrio). Outros danos são causados pelo emprego massivo por parte da OTAN, na Sérvia e no Kosovo, de projécteis de urânio empobrecido, já antes utilizados na guerra do Golfo.
54 aviões italianos participam também nos bombardeamentos, realizando 1378 saídas, atacando objectivo indicados pelo comando estado-unidense. «No que diz respeito ao número de aviões apenas ficámos atrás dos EUA. A Itália é um grande país e ninguém deve ficar surpreendido pelo compromisso de que demos prova nesta guerra», declarou o presidente do conselho D’Alema durante a sua visita à base da Amendola em 10 de Junho de 1999, sublinhando que, para os pilotos que nela participaram, foi «uma grande experiência humana e profissional».
Em 10 de Junho de 1999, as tropas da Federação jugoslava começam a retirar do Kosovo e a OTAN termina os bombardeamentos. A resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU indica que a presença internacional deve ter uma «participação substancial da OTAN» e deve ser instalada «sob controlo e comando unificados». A quem é atribuído o comando? O presidente Clinton explica-o sublinhando que o acordo sobre o Kosovo prevê «a instalação de uma força internacional de segurança tendo no seu cerne a OTAN, o que significa uma cadeia de comando unificada por parte da OTAN». «Hoje a OTAN depara-se com a sua nova missão: a de governar», comenta o Washington Post.
Terminada a guerra, os EUA enviam para o Kosovo mais de 60 agentes do FBI, mas não serão encontrados quaisquer indícios de massacres que pudessem sustentar a acusação de «limpeza étnica» lançada contra os sérvios. Slobodan Milosevic, condenado a 40 anos de detenção pelo Tribunal Penal Internacional para a ex.- Iugoslávia, morre na prisão cinco anos passados. Em 2016 o mesmo tribunal desculpa-o da acusação de «limpeza étnica».
O Kosovo, onde os EUA instalam uma grande base militar (Camp Bondsteel) torna-se uma espécie de protectorado da NATO. Ao mesmo tempo, a coberto da designação de «Força de paz», o ex. UcK no poder aterroriza e expulsa mais de 250 mil sérvios, ciganos, judeus e albaneses «colaboracionistas». Em 2008, com a auto-proclamação do Kosovo como Estado independente, a demolição da Federação Iugoslava fica concluída.
(Continua)
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