A pobreza nos Estados Unidos

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ODiario.info

O sonho americano está rapidamente em vias de se tornar a ilusão americana

Em dezembro do ano passado o Relator especial das Nações Unidas para a pobreza extrema e os direitos do homem, o professor Philip Alston, falou da investigação de 15 dias que

realizara em alguns dos bairros mais pobres dos Estados Unidos. Alston, o autor da frase citada no subtítulo do artigo, é australiano e professor de Direito na Universidade de Nova York. No decorrer da sua missão, foi aos estados do Alabama, Califórnia, Virgínia

Ocidental, Texas, Washington e Porto Rico.

As afirmações de Alston sobre a pobreza e desigualdade nos Estados Unidos passaram em silêncio na maioria dos grandes meios de comunicação.

Alston foi sempre imparcial, o que torna incontornáveis as suas declarações sobre a pobreza americana. Criticou a China no seu relatório sobre esse país (o governo chinês acusou-o depois de «ingerência» no seu sistema judiciário). Deseja que o Sri Lanka seja investigado por crimes de guerra contra a sua minoria tâmul. De acordo com The Guardian, Alston «criticou abertamente o regime saudita pelo tratamento dado às mulheres pouco antes de o reino lhes

conceder a permissão de dirigir, denunciou o governo brasileiro por atacar os pobres sob pretexto da austeridade, e atingiu mesmo a ONU por ter levado a cólera para o Haiti». Alston reprovou também o Banco Mundial por ter feito «jogo duplo» e engendrado «um

nivelamento por baixo dos direitos do homem».

Alston começou a sua declaração sobre os Estados Unidos afirmando que «na prática os Estados Unidos são o único país desenvolvido a afirmar que, se os direitos do homem são de importância fundamental, não incluem o direito de não morrer de fome, nem de morrer por falta de acesso a cuidados de saúde fundamentais, nem de não crescer num contexto de privação total… afinal, e em particular num país rico como os Estados Unidos, a persistência da pobreza extrema é a escolha política dos que detêm o poder. Se existisse vontade política de suprimir a pobreza, seria fácil fazê-lo».

Falou depois da sua investigação no terreno: «Encontrei muitas pessoas que sobrevivem com dificuldade no bairro de Skid Row no centro de Los Angeles, vi um policial de São Francisco

dizer a um grupo de sem-abrigo para circular, mas que não soube responder quando eles perguntaram para onde podiam ir, ouvi pessoas afirmarem que milhares de pobres sofrem multas que parecem intencionalmente concebidas para se tornarem rapidamente dívidas

insuportáveis, penas de prisão e multas destinadas a reforçar os cofres da municipalidade, vi pátios nos fundos das casas inundados por esgotos nos Estados onde os governos não acham que

assegurar os serviços públicos básicos seja da sua responsabilidade. Vi pessoas que haviam perdido todos os dentes porque os cuidados dentários dos adultos não são cobertos pela

maioria dos apoios oferecidos aos mais carentes, fui informado do aumento das taxas de mortalidade e da destruição de famílias e de comunidades por medicamentos que provocam dependência e outras drogas e encontrei pessoas no sul de Porto Rico que viviam perto de uma montanha de cinzas de carvão que impregnavam o ar e são causadoras de doenças, de

deficiências e de morte.

Respondendo à solicitação de elementos de comparação entre os Estados Unidos e outros países, Alston forneceu estatísticas interessantes.

Numerosos indicadores confirmam que os Estados Unidos são um dos países mais ricos do mundo. Gastam mais em Defesa que a China, a Arábia Saudita, a Rússia, o Reino Unido, a Índia, a França e o Japão juntos.

As despesas de saúde norte-americanas por habitante são duas vezes mais elevadas que a média da OCDE e muito mais elevadas que todos os outros países. Mas têm muito menos médicos e camas de hospital por pessoa que a média da OCDE.

As taxas de mortalidade infantil nos Estados Unidos eram em 2013 as mais elevadas dos países desenvolvidos.

Em média, os norte-americanos têm uma expectativa de vida em boa saúde mais curta do que as pessoas que vivem em outras “democracias” ricas, e o «fosso de saúde» entre os Estados

Unidos e os países comparáveis continua a alargar-se.

Os níveis de desigualdade nos Estados Unidos são muito mais elevados que na maior parte dos países europeus.

As doenças tropicais maltratadas ou não tratadas, como o zika, são cada vez mais frequentes nos Estados Unidos. Calcula-se que 12 milhões de norte-americanos vivem com uma infecção parasitária não cuidada. Um relatório de 2017 mostra que as infecções causadas pelo anquilostomo são muito habituais no condado de Lowndes, no Alabama.

Os Estados Unidos têm a maior taxa de obesidade dos países desenvolvidos.

Em termos de acesso à água e ao saneamento, os Estados Unidos situam-se no 36° lugar no mundo.

Os EUA têm a taxa de encarceramento mais elevada do mundo, à frente do Turquemenistão, Salvador, a Federação Russa e a Tailândia. Essa taxa é 6 vezes superior à média da OCDE.

A taxa de pobreza entre os jovens nos Estados Unidos é a mais elevada no conjunto da OCDE. 25% dos jovens vivem na pobreza nos Estados Unidos, enquanto no conjunto da OCDE essa

taxa é de menos de 14%.

O Centro Stanford sobre a desigualdade e a pobreza classifica os países mais ricos em função do mercado de trabalho, da pobreza, da rede de segurança, da desigualdade de trabalho, do nível de vida e da mobilidade econômica. Os Estados Unidos estão na última fila dos dez países mais ricos. Na OCDE, os Estados Unidos são 35º em 37 no que diz respeito à pobreza e à desigualdade.

Segundo Alston, 19 milhões de pessoas viviam em 2017 em pobreza profunda (uma renda familiar total inferior à metade do limiar de pobreza) nos Estados Unidos.

Segundo os dados da WID (Dados Mundiais do Rendimento), os Estados Unidos têm o coeficiente Gini (que mede a desigualdade) mais elevado de todos os países ocidentais.

Taxa de Pobreza Infantil

O Centro Stanford para a pobreza e a desigualdade qualifica os Estados Unidos como “exceção manifesta e constante no que diz respeito à luta contra a pobreza infantil”. Segundo a

UNICEF, os Estados Unidos têm taxas de pobreza infantil mais elevadas que

15 outros países ricos. Segundo a Academia americana de pediatras, mais de metade dos bebês norte-americanos corre o risco da má nutrição.

Segundo o Serviço de pesquisa econômica do departamento americano da Agricultura, em 2016, 38,3% dos lares cujo rendimento era inferior ao nível da pobreza federal sofria de insegurança alimentar.

Cerca de 55,7% da população americana na idade adulta votou nas eleições presidenciais de 2016, enquanto houve uma média de 75% nos países da OCDE. Nos países da OCDE os Estados Unidos classificaram-se em 28° lugar na questão da participação eleitoral. Os

eleitores inscritos nos Estados Unidos representam uma proporção muito mais fraca do eleitorado do que em todos os outros países da OCDE. Só 64% numa população norte-americana em idade de votar (e 70% dos cidadãos em idade de votar) estava inscrita em 2016,

comparativamente a 91% no Canadá (2015) e no Reino Unido (2016), a 96% na Suécia (2014) e quase 99% no Japão (2014).

Assim, a maior parte dos países desenvolvidos teve melhores resultados do que os Estados Unidos no que diz respeito aos indicadores internacionalmente reconhecidos do bem-estar humano, tais como a expectativa de vida, a mortalidade infantil, a mortalidade de grávidas, as

taxas de obesidade, as taxas de encarceramento, as taxas de homicídios, os níveis de escolaridade, as disparidades de rendimento, os níveis de pobreza infantil, as normas nutricionais, o número de sem-abrigo, etc.

Com efeito, segundo o Washington Post, os dados demonstram que os Estados Unidos regridem em todos esses campos (contrariamente a outros países ricos).

“A esperança de vida dos nascituros nos Estados Unidos diminuiu em 2016 pelo segundo ano consecutivo, em virtude de um aumento vertiginoso de 21% da taxa de mortalidade, aumento devido a overdoses de drogas”, declararam os Centros de Controle das doenças e

da prevenção. “É a primeira vez desde 1962 e 1963, dois anos em que a gripe causou um número de mortes

sem precedentes, que os Estados Unidos conhecem anos consecutivos de diminuição da esperança de vida”.

Segundo Alston, uma grande parte destes problemas é consequência das escolhas políticas norte-americanas, e mais ainda da “importância ilusória que os Estados Unidos deram ao

emprego”.

As propostas para suprimir a já insuficiente proteção social partem do princípio de que os pobres devem poder viver do seu trabalho em vez de depender do auxílio social (um

processo lançado por Bill Clinton com o objetivo de «viver do seu trabalho e não da segurança social».

O pressuposto quase risível neste caso é que há numerosos empregos que poderiam ser ocupados por pessoas que têm um nível de educação inferior à média, pessoas deficientes (em que muitos o são por causa de um sistema de saúde deficiente), pessoas que têm por vezes registo criminal (talvez por crime de vagabundagem ou porque não conseguiram satisfazer uma contravenção) e, tudo isso, quase sem formação ou ajuda para encontrar um

emprego.

As tentativas para elevar o salário mínimo, já fraco em relação às normas de outros países desenvolvidos, são regularmente contrariadas pelos Republicanos.

Alston denunciou uma outra argumentação falaciosa por detrás deste pressuposto, ou seja: que os empregos que os pobres poderiam obter os tornariam independentes do sistema de auxílio social. Ele explica: «Falei com trabalhadores do Walmart e outros grandes armazéns que não

podiam sobreviver com o seu salário o tempo inteiro sem tíquetes de alimentação. Calcula-se que cerca de 6 milhões de dólares do programa SNAP são consagrados a esses trabalhadores, o que de fato constitui uma subvenção enorme às empresas respectivas».

A abolição das senhas de alimentação está no programa dos Republicanos. Note-se que o local onde os residentes dependem mais das senhas é o condado de Owsley, Kentucky, que é constituído de 99,9% de brancos, segundo o recenseamento norte-americano. É 95% republicano, e pelo menos 52% dos residentes receberam senhas de alimentação em 2011.

Poderíamos pensar que os americanos aceitam estoicamente essa situação porque ela estimula a economia americana fornecendo-lhe «bases» economicamente sãs.

Mas a maior parte destas «bases» _ balança comercial, dívida publica (ainda agravada por baixas de impostos inconsequentes de Trump a favor dos ricos), dívidas do lar, dívida

orçamental, dívida de poupança negativa, dólar relativamente fraco, investimentos e produtividade medíocre desde 2008, etc. … não dão muita confiança no que diz respeito aos

Estados Unidos.

Não é necessário ser um gênio econômico para saber que o que salva os Estados Unidos é o papel do dólar como moeda principal de reserva mundial, assim como a envergadura da sua economia. Um mercado bolsista gigantesco e onipresente ajuda, mas como isso contribui de modo significativo para os booms e as crises (87, 97, 2007, ??), a sua contribuição para o conjunto da economia não deve ser subestimada. Em termos econômicos objetivos, se a sua

economia fosse menor e o dólar não fosse a moeda de reserva, os Estados Unidos parecer-se-iam mais com o Brasil.

Após haver feito a sua declaração sobre os Estados Unidos, Alston deu uma entrevista à rádio Amy Goodman, no momento em que os Republicanos publicavam o seu projeto de lei

de redução de impostos que é agora lei. Cito-o:

«O problema da eliminação da pobreza anda sempre à volta dos recursos: Não temos dinheiro que chegue». Mas na realidade os Estados Unidos têm dinheiro. Poderiam eliminar a pobreza

de um dia para o outro se o quisessem. Mais uma vez repito o que sempre digo: é uma escolha política. Que queremos fazer do nosso dinheiro? Dá-lo aos ricos ou criar uma sociedade decente, que será economicamente mais produtiva do que quando nos contentamos em dar

dinheiro aos que já têm muito?».

É impossível não estar de acordo com Phillip Alston quando afirma que este estado de coisas resulta de uma escolha política e não de uma necessidade econômica.

Para além dos participantes da plutocracia (os Kochs, Papa John, o casal DeVos e, claro, o exército dos seus clientes e êmulos dos country clubs republicanos), a base de Trump compõe-se de brancos, medianamente afortunados que se destacaram durante numerosos decênios, o que lhes permite suportar a sua própria exploração sistêmica — mas que devem agora partilhá-la com os negros, os latinos, os muçulmanos, os «gays» (como declarou o quase senil evangelista Pat Robertson) e com uma pequena quota de refugiados de guerras e incessantes campanhas de bombardeamentos norte-americanos, etc.

Como em CounterPunch devemos explicar, «devolver a sua grandeza à América» é uma mensagem codificada destinada a este grupo de autoproclamadas «vítimas» brancas, que imaginam que vão voltar para a ribalta graças à influência de Trump.

Apoiar um homem rico que usa um boné de baseball (fabricado nos Estados Unidos, mas feito com tecidos importados) e repetir pausadamente esse slogan é uma escolha política, assim como a escolha da plutocracia de encher os bolsos já bem repletos fazendo doações maciças ao escroque do boné – o termo «escroque» é o termo utilizado pelos seus colegas plutocratas

republicanos Michael Bloomberg e Mitt Romney – que têm ambições políticas pessoais que não concordam com o programa nacionalista branco de Trump.

Trump, Romney ou Bloomberg? Qualquer que seja politicamente a escolha, é afinal a plutocracia que vai ganhar. Como no tempo de Bill Clinton e de Obama.

Uma outra escolha política nesse contexto é a dos democratas tradicionais, Schumer e Pelosi,

fanfarronando no Congresso num lamentável exemplo de falsa oposição.

E é assim que um grande número de norte-americanos se encontra perante a escolha resumida por um célebre filósofo e de que só precisam de tomar consciência: «Nada têm a

perder a não ser as próprias cadeias».

Se renunciarem às suas ilusões, a libertação dos americanos mais pobres – que parece impossível de se alcançar – estará afinal de contas tão perto.

Kenneth Surin leciona na Universidade de Duke, na Carolina do Norte. Vive em Blacksburg na Virgínia.

Fonte: https://www.counterpunch.org/2018/02/08/poverty-american-style/

Tradução: Manuela Antunes

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