Água é direito universal, não é do capital
Eduardo Grandi*
Nos dias 18 a 23 de março realizou-se em Brasília o chamado Fórum Mundial da Água (FMA), que, contando com o patrocínio do governo ilegítimo e de transnacionais como BRK, Ambev, Nestlé, Coca-Cola e Aegea, recebeu ampla visibilidade da mídia capitalista. O FMA tratou-se de um evento exclusivista, com ingresso de R$ 1 mil para participação dos debates, verdadeiro “fórum das corporações” que, por trás dos discursos tecnicistas e de preocupação ambiental, veio ao Brasil para vender a ideia liberal de que o Estado “fracassou” na gestão da água e que, para ser usada racionalmente, a água deveria ser privatizada e mercantilizada.
Por trás de tal discurso existe o contexto de crise global do capitalismo, que obriga o capital a encontrar novos espaços para despejar capitais excedentes e extrair mais-valia, bem como buscar discursos que legitimem tal prática. E as águas brasileiras são um dos alvos prioritários desse avanço. Pois o setor de saneamento nacional ainda é majoritariamente público (atualmente, apenas 6% dos municípios possuem tratamento de água e esgoto em mãos privadas), setor que emprega diretamente mais de 200 mil trabalhadores (enorme massa pronta para produzir mais-valia ao capital) e acumula insuficiências (notadamente, as perdas de água e a baixa cobertura dos serviços de esgoto) exploradas pelos privatistas e representantes do capital com o discurso das crises fiscal e hídrica.
É importante frisar que o Brasil detém sozinho 12% das reservas de água potável do mundo, possui reservas subterrâneas capazes de abastecer o mundo todo por mais de 300 anos e que, além disso, possui condições únicas para desenvolver toda uma cadeia produtiva em torno da água (terras férteis, sol, minérios, mão de obra). Tudo isso faz com que, atualmente, a conquista das águas do Brasil seja central para o grande capital transnacional, que encontra no FMA o espaço ideal para articular a transformação da água em mercadoria.
Com o objetivo de preparar a resistência à privatização e mercantilização da água, movimentos sociais, sindicatos e entidades da cidade e do campo promoveram em Brasília, entre os dias 17 a 22 de março, o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), evento que, sem qualquer apoio do governo federal e enfrentando a censura da mídia privada, reuniu cerca de 7.000 participantes de mais de trinta países para o debate e a organização da atuação conjunta em defesa do direito dos povos ao acesso à água.
Momento enriquecedor de troca de experiências, de solidariedade internacionalista e de encontro de diversas culturas e visões sobre o papel da água na sociedade, o FAMA proporcionou diversas lições importantes:
A primeira delas diz respeito ao que significa a crise hídrica vivida em diversos Estados brasileiros. Esta é parte provocada pela depredação capitalista de rios e nascentes, parte “fabricada” deliberadamente pela falta de investimento público, na lógica de se “criar dificuldades para se vender facilidades”, ainda que a “facilidade” em questão seja um bem essencial à vida. O Estado brasileiro é um Estado capitalista, e como tal sempre buscará beneficiar o capital privado, nem que para isso tenha de “sabotar” a si mesmo através do sucateamento, da má-gestão, da falta de investimentos, da terceirização ou das “parcerias” público-privadas. Isso explica por que governos democrático-populares como os de Agnelo Queiroz (DF) e Wellington Dias (PI), ambos do PT, se empenharam na precarização e até privatização do saneamento. Daí se percebe que não basta lutar pela (re)estatização da água; é preciso, também, lutar por uma estatização com amplo, eficaz e transparente controle social pelo povo trabalhador, única forma de garantir que a água seja não apenas pública, mas também seja um direito e não uma mercadoria.
Em segundo lugar, destrói-se o mito de que a água é um recurso renovável. Menos de 3% da água do mundo é potável, sendo que quase 70% desta água se encontra congelada nas calotas polares; do que resta, 96% se encontra não acima, mas abaixo da superfície: são as águas subterrâneas e os aquíferos, que já são responsáveis por mais de 60% do abastecimento doméstico no Brasil. O problema é que o processo de renovação das águas subterrâneas (chamado de recarga) por vezes ocorre muito lentamente, como no caso do Aquífero Guarani (um dos maiores do mundo, localizado em sua grande maioria no Brasil), que estima-se ter levado cem mil anos para ser formado. Isso, somado ao crescente desmatamento do solo e degradação das nascentes, faz com que a água potável seja atualmente tão “renovável” quanto o petróleo! Derruba-se, também, o mito de que o desperdício de água estaria no consumo doméstico e que, portanto, seria culpa do povo. Na verdade, mais de 70% da água do mundo é gasta na agricultura, mais de 20% na indústria e somente 8% no consumo humano direto – isso tudo para alimentar um modo de produção que desperdiça pelo menos um terço de toda a comida produzida no mundo e que induz ao consumismo desenfreado ao medir a “felicidade” pelo nível de consumo. Fica, assim, evidente o recorte de classe em torno da água: o capitalista explora quase toda a água de forma predatória, mas é o trabalhador quem “desperdiça” e tem de fazer racionamento!
Outra lição importante a se tirar do FAMA é que, quando se fala que a água será a causa das guerras do futuro, é preciso compreender que esse futuro já chegou. No Brasil e no mundo, o Estado capitalista move uma verdadeira guerra contra os povos (especialmente comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas e pescadores) que buscam seu direito à água e sofrem com a destruição causada por grandes “empreendimentos” poluidores, bem como a repressão do Estado que prende, tortura e assassina lideranças sociais em todos os continentes. Casos emblemáticos são os do Chile (onde a escassez natural do recurso contrasta com a enorme exportação de água proporcionada pelo agronegócio, fruto da total privatização da água imposta pela ditadura Pinochet, que intensifica os conflitos e faz com que o país tenha as tarifas de água mais caras da América Latina), da Colômbia (nação açoitada por mineradoras poluentes, que possui o maior número de refugiados políticos do hemisfério ocidental e que, só este ano, já registrou o assassinato de uma centena de ativistas) e Palestina (cuja água é roubada pelo exército de ocupação israelense, que destrói estruturas de coleta e armazenagem de água dos palestinos e obrigam o povo palestino a comprar por preços exorbitantes a água que é deles mesmos).
Também no Brasil há muita repressão, mas também resistência: em Caetité (BA), onde a poluição dos mananciais trazida pela mineração de urânio (por sinal, movida por empresa pertencente ao Estado capitalista, a Indústrias Nucleares do Brasil) faz com que a população local tenha uma das maiores incidências de câncer do país; em Mariana (MG), onde mais de dois anos após o rompimento de barragem da mineradora privada Samarco/Vale ter provocado um desastre ambiental que vitimou e desalojou centenas de pessoas, a maioria das vítimas ainda não receberam qualquer reparação; no Pará, onde a mineração de bauxita da corporação norueguesa Hydro polui rios e assassina militantes sociais; no sertão do Nordeste, onde a Transposição do Rio São Francisco, obra faraônica iniciada pelo governo Lula (PT), ameaça trazer danos irreversíveis ao Velho Chico e visa tão somente beneficiar o agronegócio, conforme apontado por entidades da região que denunciam a “indústria da seca” e defendem a convivência com o semiárido como solução social e ambientalmente sustentáveis para a seca; e no Brasil como um todo, onde os planos do governo ilegítimo de privatização da Eletrobrás ameaçam seriamente a condição de água como direito, uma vez que a matriz energética brasileira é essencialmente hidráulica.
Por outro lado, apesar do crescimento dos ataques, descobre-se que a luta muda sim a vida. Muda através da reestatização de mais de 250 sistemas de abastecimento na Europa e América Latina nos últimos quinze anos, demonstrando que a tendência de privatização apontada no Brasil vai na contramão do mundo. Muda com vitórias populares expressivas em referendos no Uruguai (2004), Itália (2011) e Tessalônica, na Grécia (2014) que barraram, ainda que temporariamente, a privatização da água nesses locais. Muda com a grande vitória da Guerra da Água do ano 2000 na Bolívia, que não somente reverteu a privatização da água em Cochabamba e em todo o país como também representou a largada para a ascensão do governo progressista de Evo Morales. Muda ao fazer recuar até mesmo aqueles que não se importam minimamente com a vontade popular: foi assim que a Medida Provisória preparada pelo governo Temer para destravar a privatização da Companhia Estadual de Saneamento do Rio de Janeiro (Cedae) e demais empresas públicas do Brasil fosse abandonada, ainda que o governo golpista prepare agora projeto de lei para “modernizar” o saneamento, ou seja, privatizar as companhias estaduais do setor e mercantilizar ainda mais as fontes de água. Estes são exemplos da grande lição proporcionada pelo FAMA: que a defesa da água enquanto direito universal, um dos mais importantes enfrentamentos deste século, está apenas começando; e que os povos podem vencer essa batalha com força e persistência, somente se souberem somar esta causa à luta pela superação do modo de produção capitalista.
*É servidor da Companhia de Saneamento de Santa Catarina (Casan) e militante do PCB.