“A nossa nação não tem divisas”

ENTREVISTA COM ADALTO GUARANI-KAIOWÁ

Por ocasião da V Jornada Universitária pela Defesa da Reforma Agrária (JURA), realizada entre os dias 16 e 19 de abril de 2018 no campus da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ-USP) em Piracicaba/SP, o Partido Comunista Brasileiro entrevistou Adalto Guarani, destacada liderança Guarani Kaiowá do território de Laranjeira Ñanderu (MS), participante de uma das mesas redondas do evento.

Realização: Célula PCB de Piracicaba e Fração Nacional da Questão Indígena do PCB.
Entrevistadores: Gabriel Colombo, Ana Paula Zagueto e Fernanda Moraes.
Questões: Vivian Costa, Gabriele Valadão e Gustavo Velloso
Transcrição e edição: Gustavo Velloso

Partido Comunista Brasileiro
No dia 5 de março deste ano, o senhor publicou em sua página uma denúncia feita pela ONU a respeito das crianças que estavam sendo retiradas de suas famílias nas comunidades do Mato Grosso do Sul. Alguma providência foi tomada sobre isso pelas autoridades governamentais? Como vocês estão reagindo e atuando frente a essa questão?

Adalto Guarani Kaiowá
Essa retirada das crianças não dá retorno para nós. Isso aí é o maior genocídio. Tudo isso que o Estado agora está fazendo, tudo é genocídio, porque mata a esperança das pessoas. Eu acho que ninguém está tomando providência. Por causa que para ele [o Estado] é bom, é ruim para nós. Porque falam para nós, lá em Campo Grande, que [as crianças] vão ficar três meses no abrigo e depois as doam para o internacional. Então, ele faz o maior genocídio, porque a criança sai da comunidade, aprende outras coisas más, dos outros. De lá, se voltar, ele vem com a violência para a aldeia. Então, tira-se a criança para fazer a destruição de um povo. Essa retirada das crianças dói demais. E até agora ninguém tomou providência. E o que será que eu faço? Quem será que vai tomar providência aqui no Brasil? É triste esse negócio, “tá louco”! Quanto mais nós fazemos divulgação nas papeladas…
Nós fizemos três denúncias para o Ministério Público em Dourados, mas não resolveu. Além disso, fomos ao Cotiguaçu, nome do abrigo, esse é o nome onde as crianças vivem, falar: “Vocês estão fazendo genocídio!”. E ele falou: “Não, nós estamos cumprindo o nosso papel”. E a lei falando para ele… É por isso que ainda não se conseguiu devolver essas crianças para nós. Uma mãe estava chorando, nesses dias, chorando para nós. Tiraram do colo da mãe! Isso é que foi chocante para nós. Dizem que ela [a criança] estava no colo da mãe e chegou o Conselho Tutelar tirando… e levaram. E aí falaram que a mãe não tem condições de tratar, que não tem nada de casa boa, cama boa, que não tem terreno para sustentar os filhos. Muitas coisas. Falando mal. É só pela causa de estar passando necessidades que eles tiram as crianças. Essa separação é muito chocante para nós, porque tirar as crianças dos outros é crime! Estão fazendo igual animal, fazendo igual filhote de bicho, igual cachorro… Rapaz, “tá louco”, isso é muito genocídio! A nossa ideia, agora, é fazer denúncia lá fora. O que se vai pensar sobre isso, para poder devolver todas as crianças? Porque já passou da lei esse pessoal. Desacataram a lei. Fizeram como se não fossem mais humanos, penso que como um animal. É triste, é triste demais. É isso que nós seguimos. Vai muito longe essa história.
Desde que tudo começou, eu acompanhei essa história. Parece que são 100 ou 200 e poucas crianças já, lá no abrigo: Santa Casa, parece que esse é o nome do lugar. Colocaram na parede a doação das crianças, uma placa. Depois, foram lá no Cotiguaçu e tiraram essa placa. Parecia que estavam doando um cachorrinho, uma doação de cachorros. Rapaz, “tá louco”! É muito triste aquilo ali, é triste demais. Eu não sei como que nós ficamos, eu não sei mais. Nós não temos mais poder para fazer isso. Alguém tem que ver isso, se estão fazendo certo ou não. Ou estão fazendo crime, ou estão fazendo discriminação, ou alguma coisa. Porque tem muitas pessoas que têm a visão, que só de olhar já conhecem o que eles estão fazendo, a criminalidade.
A nossa intenção agora é essa. Tem que ter alguém para achar, para ver isso, para poder dizer quem está no direito e quem não está na razão. Ou o índio é bicho, ou alguma coisa. É triste, é triste demais… E tem muitas coisas sobre isso, tem muito ainda! Seguimos isso aí, “tá louco”! Rapaz do céu, quando eu falo isso, me choca muito. Os meus sobrinhos mesmo, três estão lá. Agora, já está tudo grandinho. E não falam mais guarani, não comem mais o que o pai e a mãe comiam. Quando a mãe chega lá, eles não conhecem mais a mãe. Eles falam: “Ah, olha lá, os índios estão vindo aí, ó!”. Começaram a ensinar assim. É muito triste…

Partido Comunista Brasileiro
Sabemos da lentidão dos processos de demarcação dos territórios sagrados. Um deles é Laranjeira Ñanderu, comunidade tradicional Kaiowá de Rio Brilhante. Como anda o processo de demarcação desse território e como os Kaiowá estão lidando com as estratégias de avanço anti-indígenas, envolvendo tanto os fazendeiros da região quanto as forças armadas do Estado?

Adalto Guarani Kaiowá
Na Laranjeira, agora, está a se fazer estudo. Primeiro, falaram que eram seis teses e que já estava pronto. Agora, já são sete teses. É por causa da tese que seguram as coisas. Tem sete teses para poder aprovar [a demarcação]. Eram seis, agora são sete. Completou. Agora está na mesa da FUNAI. Agora está em análise, eles estão analisando. E falaram que em abril ou maio será aprovado e publicado. E aí, se publicar, já se faz o reconhecimento da terra. Aí é que eu falo, essa invenção [a sétima tese] é só para atrapalhar mesmo. Sabem bem que essas terras eram dos nossos ancestrais. Nelas viviam os nossos ancestrais. Isso aí é só “disfarçamento”, criam essas teses só para qualquer coisa falar: “Ah, não foi aprovado, não foi aprovado aqui, aqui, aqui”. Para poderem falar isso. É desculpa deles, eles criam isso, criam essa tese. Porque, na realidade, como que eram essas teses? Então, é por isso que “seguram” para nós, lá na Laranjeira. Porque ali era a terra dos nossos ancestrais, a Laranjeira Ñanderu. O nome Laranjeira Ñanderu é por uma causa que as pessoas não conseguem falar. Antes, nós vivíamos lá. Antes de chegar a pessoa, o “candi”, nós vivíamos lá tranquilamente. Além disso, vivia lá a Dona Alda, que está conosco lá. Ela fica traumatizada com pessoas a cavalo, por causa que ela foi atacada num cavalo ali. Todos falam que, onde o povo vivia, chegaram com cavalos rodeando a oca. Os farrapos. Eles falam que tinham chapéu grande e, por baixo, camisa branca. Dona Alda é quem contava essa história. É por isso que ela tem trauma com cavalos. Quando viu dois ou três cavalos, aí ficou doida. Porque ela sente, ela foi violentada por homens de cavalo. Ela falou que, quando chegaram, já começaram a tirar, por cima da calça, o revólver. E ela falou que acertaram o meu irmão na perna. Outro [tiro], acertaram nos braços. E aí nós corríamos.
Antes de chegar na Laranjeira esse pessoal, era mato. Mato, mato, sem fim. Hoje, você vê só cana e soja. Tudo destruído. Então, hoje a maioria faz mais monocultura: a soja e a cana. E pecuária. Então, antes nós vivíamos ali. Ela falou para nós que tinha bastante caça, pesca, bichos, antas. Não faltava nada. Ali morava Uiracu, Japirussé, Uiratupé, Livino, pai do Farid. Esses eram os nossos ancestrais que viviam ali. Esse Siruracu é o nosso ancestral, é o meu ancestral. Acho que a terceira geração já é a da minha mãe. Então, toda a família que está lá vem dessas pessoas: o Japirussé, Siruracu, Ijariparé, Uirapupé… Toda a família está ali agora nas redondezas. É por isso que eu falo, é só por causa dessas teses que eles “seguram”. Eles falam: “Ah, essa terra não é indígena, esses aqui não são ancestrais, esses aqui não são da terra” e não sei o quê. É só uma desculpa. É só para não demarcar. As teses são do ambiente, dos modos de viver etc. Sete teses eles criaram. São os laudos antropológicos. Têm que ser bem elaboradas para se poder aprovar.

Partido Comunista Brasileiro
Desde quando esses estudos estão sendo feitos no território de Laranjeira?

Adalto Guarani Kaiowá
Está com três anos agora. Agora, falta só o [levantamento] fundiário. O fundiário é “rapidão”, vão lá na área para ver como é que vão fazer, os limites. Não sei, o fundiário eu nunca acompanhei. O ambiental sim, eu já acompanhei porque nós estamos lá. Perguntam para nós: vocês viveram aqui? Não vai faltar remédio para vocês? Essas terras é que vão sustentar vocês? Será que não vai faltar nada para vocês? É tudo assim, um monte de perguntas.
Eu estava pensando hoje cedinho: se essas pessoas fossem as que confiam em nós pelas nossas falas, teriam demarcado para nós, teriam devolvido. Não é “demarcado”. Devolveriam essas terras dos ancestrais para nós. Só que vai ser muito difícil por causa da tese, porque eles confiam mais e só veem a tese. Cada tese eles têm que analisar todinha, para ver se está certo. Entra até a nossa língua nessas teses. Eles têm que nos chamar, porque toda língua tem que ser conhecimento através dessas plantas. Anotaram tudo, porque a nossa língua é diferente do guarani, porque parece que tem o livro guarani lá na Funai. Eles começam a analisar uma palavra e olham no livro. Veem que não é a língua guarani para poderem falar que somos vindos do Paraguai. Sempre fazem isso. É aí que sempre nós perdemos. Muitas vezes, o guarani Mbiá fala mais na língua do Paraguai. Agora nós não. Nós, os Kaiowá, somos diferentes dos Mbiá. Então, eles comparam todas. Por isso é difícil sair a demarcação para nós. Eles comparam com o Guarani Mbiá, com o Guarani Ñandeva… Acham que a língua é uma só, mas não é não. Porque o Guarani Mbiá é diferente. O Guarani Ñandeva também é diferente. Só uma língua eles analisam com aquela tese. É aí que demora. É por isso que é difícil para nós fazermos. Eu não sei como nós temos que fazer com aquilo, eu não sei mais debater com aquilo por causa da tese. Eu não sei quem criou essa tese, tem que descobrir. Deve ser alguém que entende sobre tese. Porque é difícil fazer isso, é difícil demarcar para nós. Não é só para nós, é para todos. Todos, começou com o Guarani Kaiowá. É por causa dessa tese que nós estamos sofrendo. Se fosse sem tese, estaria tudo entregue para nós. Como Jaguapiré, Piraquá, Panambizinho, Sucuriú. Esse não foi muito as teses, apenas conhecimento. Primeiro é assim, depois criaram essas coisas. Essas teses foram criadas antes da Laranjeira. Por isso que eles usaram essas teses na Laranjeiras, de outra área. Então fica difícil. Não sei, eu não entendo mais… Eles falaram se nós viemos do Paraguai, ou se somos daqui mesmo. Então, para provar é com a língua. Comparação. Isso aqui nós chamamos “mamã”, só que na nossa língua é “iaracatiá”, no Guarani Kaiowá se fala assim. E aí quando falam “mamã”, eles pensam que no Paraguai também se fala “mamã”. Eles comparam a nossa língua com o Paraguai. Dizem descobrir que viemos do Paraguai para não demarcar terras. Eles falam: “Não, você não é daqui não, você é de lá do Paraguai”. E isso começa a dificultar a demarcação. É só para disfarçar mesmo. A nossa nação não tem divisas, porque tem aqui no Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia, em toda nação tem guarani. A língua é a mesma, só que um pouquinho diferente, mas é a mesma. É só para dificultar mesmo que eles falam isso: “Você vem do Paraguai, vem do Paraguai, vem do Paraguai”. Só para depender daquilo. É só para atrapalhar mesmo. O meu tio mora lá no Paraguai. Quando vem para cá, eles falam que é migrante: “Você não é do Brasil, você é do Paraguai”. Só falam isso. Na verdade, nós não temos fronteira. Como falam, fronteiras são ideológicas da humanidade. Nós somos igual o animal, as fronteiras são os rios grandes que não tem como passar. Se é pequenininho, ainda passa (risos). Que nem o Rio Paraná. Esse é o nosso limite, essa é a nossa fronteira, não tem como ultrapassar. Então, é esse pessoal que está no poder que fala que eu vim do Paraguai. É difícil, por isso que fica parada, ainda, a nossa demarcação.

Partido Comunista Brasileiro
Desde que a constituição de 1988 foi escrita, não encontramos uma situação tão dramática para as demandas indígenas de demarcação de territórios e conquistas de novos direitos sociais como a que estamos vivenciando hoje. Como você avalia os novos desafios que estão colocados para os movimentos de resistência em geral e para a causa indígena em particular?

Adalto Guarani Kaiowá
Essa resistência nós temos desde o começo. As nossas avaliações, eu acabei de falar. Todas as desculpas faziam para não demarcar mesmo. Porque na nossa Constituição, tudo já se fala bem, é tudo bem falado. A constituição fala: “quem ocupa a terra, tem tradicional cultura, tem direito a permanecer”. Mas eles não vão na Constituição, eles vão pela ideia. Então, por isso cada vez mais criam as coisas para dificultar a nossa demarcação. Porque se fossem cumprir a Constituição, “ih!”, não demoraria para fazer a demarcação. E aí que, na nossa avaliação hoje em dia, é só para levar mais tempo para eles poderem conseguir barrar tudo da demarcação. É por isso que estão se fazendo, cada vez mais, um grupo desses políticos. E hoje, para podermos chegar a essa conclusão, à demarcação, tem que ter alguém nos ajudando. [Dizendo] como seria para chegar lá, por onde tem que ir, por onde tem que chegar… Porque se você não souber o segredo da pessoa, você não consegue saber o que aquela pessoa está fazendo. É a mesma coisa com quem está fazendo essa politicagem agora: a própria Justiça, o próprio Supremo, a própria Funai e o próprio Governo Federal. Para nós, com essa demora com que eles estão avaliando isso, só se nós fizermos mesmo manifestações. Uma manifestação geral, porque só um não consegue. Tem que ser geral. Eu acho que todas as pessoas da classe média temos que nos unir para conseguir. Se não reunir essa classe média, acho que nós vamos nos lascar. E ninguém vai conseguir direito. Por causa que todas as coisas têm “embarramento”: embarra aqui, embarra lá, embarra lá, todas. Enquadram todo mundo dentro dessa classe média. Quanto mais “embarramento”, quem sofre são os índios. Então, a nossa ideia hoje é a de todos fazermos um diálogo e achar um caminho. Nossa ideia é assim, porque só os índios não vamos conseguir. Ninguém vai conseguir, porque tem que ser todos. Todos. Tanto o MST, tanto os índios, tanto os camponeses, tanto o que for. Nós conseguiremos o nosso direito. O nosso direito já foi morrido, porque quando você tira a Constituição dos outros, você mata a esperança dos outros. Porque já foi morrendo, a nossa esperança acabou. Já foi extinguido. Já foi assassinado, porque tiram a nossa esperança que nós tínhamos. Hoje nós temos que nos unir para a luta. Só isso que nós temos que fazer. A nossa ideia é essa. Por isso nós temos que fazer de aliados todo mundo, não é só um. Porque nós estamos sofrendo demais. Quem sofre mais nós ajudamos, quem morre mais nós ajudamos. É assim. Assim nós venceremos essa batalha, senão ninguém consegue.

Partido Comunista Brasileiro
O Partido Comunista Brasileiro criou recentemente uma fração nacional de apoio e solidariedade aos povos indígenas que se organizam e lutam contra a barbárie e a exploração capitalista. Com que meios concretos ou tipos de contribuição política você diria que os povos indígenas esperam receber de um partido como o nosso, que defende um movimento de transformação radical da sociedade?

Adalto Guarani Kaiowá
É isso que nós estamos pensando também. Porque a gente cansou de ter a esperança na política, porque a política tem nos enganado todos os anos. Só mel na boca. Falam que vão fazer aquilo, aquilo, aquilo, e nunca fazem [nada] por nós. Eu acho que agora, para ajudar mesmo, para nós sermos uma união popular, é através de algumas coisas: um pouquinho de recurso, caronas, pequenas coisas para poder ajudar no transporte, para poder correr atrás daquilo que está feito. Então a nossa ideia era isso, hoje em dia. Se começarem a ajudar através de um ônibus, alguma coisa, pela viagem, isso seria legal para nós. Porque nós não temos dinheiro para poder arrumar ônibus e outras coisas. Não temos também apoiadores, porque nós não conhecemos quem vai fazer isso para nós, com quem nós vamos falar. Pequenas coisas, porque nós, você sabe, pequenas pessoas não temos mais recursos. A gente vai pelo alcance da pessoa. Então, se algumas coisas vocês alcançam, de vocês também daria. Pelo menos no transporte: algum carro pequeno ou van, para a ida e volta de Brasília, seria ótimo. Porque muita coisa vocês não vão conseguir também.
Para nós é difícil divulgar, porque central nós não temos. Agora, se consegue muita coisa se você tem o parceiro. Quem tem mais parceiro, consegue mais essa divulgação. É mais essa divulgação. Esse esforço é tranquilo também, essa parceria. Todas as coisas que acontecem nós mandamos para esse mundo. É importante divulgar as coisas, porque todas as coisas estão muito escondidas hoje. Temos que divulgar, temos que mostrar tudo. E não é só indígena, é toda a pequena classe, a média classe. E tem que divulgar, tem que reunir. Porque o sacrifício não é só nosso, é de todos. Todos somos iguais. Então, pelo menos ajudar isso. Acho que vai do alcance de vocês também, do poder popular. Na divulgação, nas filmagens, tudo. Com os Caarapó tem um movimento de direitos humanos. Foram tudo lá, com a câmera, com o celular, um pouquinho de lanches, que alguns levam para o pessoal lá… Essas pessoas iam filmar e divulgar. Iam fazer isso, mas só que não aconteceu. Então é assim, qualquer coisa que acontecer a gente chama vocês para ir para lá. Assim, também dá tranquilo, pela ajuda na divulgação, essas coisas. O que a gente faz é do alcance da gente mesmo, não tem como. Porque o braço é curto, você vai até onde o seu braço alcança.

Partido Comunista Brasileiro
Cada vez mais, as denúncias e as críticas que os povos indígenas fazem da sociedade capitalista e do seu poder destrutivo contra a vida humana e a natureza se mostram compatíveis com as leituras e as ideias das ideias comunistas sobre a mesma realidade. Você acha que há uma correspondência possível entre as perspectivas ameríndias e socialistas? Há possibilidade de se construir um plano conjunto desses dois campos para a transformação da realidade?

Adalto Guarani Kaiowá
Eu acho que sim, porque tem que construir outra sociedade. Uma comparação sobre essa ideia. Porque se um mundo desse continuar, quem vai sofrer somos nós. Tem que mudar a nossa situação, daqui em diante. Porque o planeta está pedindo socorro. Se nós mudarmos esse pensamento em nós todos, nós socorremos de novo o nosso planeta. Porque continuando o mundo todo do agronegócio, vai terminar a nossa natureza. Nós mesmos vamos ter que fugir de novo. Como temos que fazer? Temos que pensar em como temos que levar isso. Porque chegou a hora já.
Eu antes estava pensando: aqui [no Departamento de Floresta] é o local certo. Porque aqui tem tudo para matar a saúde da terra, para extinguir outras coisas, terminar outras coisas. Então, daqui tem que ter plano para devolver a saúde da terra. Aqui se tem que ter ideia de como temos que fazer. Ou vai florestar de novo, ou fazer algumas coisas… Então, aqui tem muitos estudantes para fazer isso. Tem que trabalhar bastante para poder recuperar. Se não recuperar, o fim do mundo está perto. Do jeito que eu estou vendo agora, por causa do eclipse do sol, do eclipse da lua, por causa disso. O planeta não está aguentando mais. Então é só mudar, porque o agronegócio está terminando com a proteção da terra, proteção dos humanos, de todos, todos, todos. Está terminando. É só pensar em fazer outra sociedade, outro modo de viver. A nossa ideia era isso, é só pensar outra forma. Tem que ter união, sozinho você não consegue. Sozinho você só faz os outros sofrerem e ficarem nervosos. Com união você consegue. Outro pensa assim, outro dá o plano, outro dá o plano… Você tira aquela ideia positiva para poder construir as coisas. Só isso, não tem mais, porque o agronegócio está terminando com nossas terras. Terminam com todas, porque ele [o agronegócio] pensa que o ouro é a riqueza, mas não. O ouro é a terra dominante da terra. O ouro é o alumínio, para ela [para a terra] é precioso. Mas não é nosso, é a plantação da terra. O diamante (a pedra preciosa), ele parece que vibra. Ele tem vida. Ele é a proteção da terra também. Tira tudo esse agronegócio, termina! Só que para devolver esse ouro e esse diamante que foram tirados dessa terra é difícil, isso é muito difícil. É só pensar de outra forma mesmo. Porque aqui é o certo. Essa ideia é a indicação de vocês. Como tem que fazer daqui em diante?

Partido Comunista Brasileiro
Estamos entrando num período dramático para a questão da luta dos povos indígenas, pois a tática que o Estado e as classes dominantes (através do agronegócio) têm utilizado é a de isolar vocês: tanto no sentido físico, de deixar vocês no meio das lavouras, das áreas desmatadas, sem acesso à mata; quanto tirando a vontade e a esperança de vocês, através da retirada das crianças; e ainda por cima isolando vocês dos aliados que vocês tinham para essa luta. Você comentou do desmonte pelo qual tem passado a FUNAI e também o CIMI com essa CPI que o CIMI tem sofrido. E ainda não bastasse, estão promovendo uma série de alterações na Constituição com o objetivo de retirar o direito de vocês à terra…

Adalto Guarani Kaiowá
O nosso pensamento de hoje em dia é sobre isso mesmo. Porque sempre eu falo pro pessoal: “esses dominantes não gostam de indígenas”. Se você gostar, você não ataca um ao outro. Se você respeitar, você não mexe nas coisas dele. Se você gostar, você ajuda o outro. Se você gostar, o que ele mantém você consegue para ele. Então, esse dominante não gosta de índio por isso. Cada vez mais ele faz as coisas para terminar. Pensa em extinção. É aí que sempre nós falamos: essas pessoas que estão fazendo isso pensam que são o dono do mundo, mas não são. Eles vivem ainda dominados pelo Deus, pois se o Deus castigar ele, pronto. Porque se você faz o bem para os outros, o Deus te abençoa; se você não faz bem para as pessoas, o Deus te castiga. Parece que você é o dono do mundo, mas não é. Você vive dominado pelo Deus. Quem faz essa terra para nós é Deus. Por isso nós respeitamos mais a natureza, porque toda a natureza vem do céu. Quem a faz para nós é Ñanderu. Todos. Tanto os bichos quanto os homens. Tanto os mares quanto os mares, quanto as terras… Ele faz para nós para mantermos todos os rios, os animais, para poder sobreviver. Não para se lucrar, não para se tirar. Por isso que ele coloca tudo em proteção, coloca o ouro, o diamante, tudo. Porque a terra também é vida. Se você mata a vida da terra, começa a ficar enfraquecendo, enfraquecendo, enfraquecendo. E aí para poder reformar de novo, tem que acabar o mundo. Tem que acabar o mundo para poder reformar a terra de novo. Quem vai fazer isso? Os próprios humanos, o próprio capitalismo é quem vai fazer isso. É isso que nós temos que pensar, que é de antes. Para salvar esse planeta, o planeta Terra. Não é só aqui, tem que fazer com qualquer um. Vamos depender [disso]. E é essa a nossa ideia. Antes eu estava pensando: aqui dá para pensar como é que a gente tem que fazer, como tem que levar, se cria projeto, alguma coisa, pede ajuda… Você tem mais ideia do que eu, porque quem estuda é quem mais conhece as coisas. E aí fica mais fácil para ele. E aí, para vocês, como que vão fazer daqui adiante para salvar o planeta daqui por diante? E através de vocês também. O agronegócio confia mais na fala de vocês. Então você vai fazendo. Em comparação, se é doutorado e fala “não, o planeta é assim, assim”, eles respeitam. Se chega o advogado lá, e fala “assim tem que fazer”, eles respeitam. Tudo de vocês eles respeitam. Então, é por isso que eu falo: aquilo é o certo, o centro. Porque aqui tem tudo: parece que tem advogados, tem estudantes, tem professor, então, tem tudo aqui. Vocês é que têm que pensar como é que tem que levar para salvar esse planeta. Se não, se não conseguir convencer esse agronegócio, quem vai sofrer somos nós. Ontem eu estava pensando nisso. O lugar certo é aqui. Porque chegando essa papelada no Governo Federal mesmo, se for advogado, eles respeitam. Se fosse professor, eles respeitariam. Porque tudo através de vocês eles respeitam, por causa que a vocês [eles] respeitam mais. E se, para qualquer coisa, vocês precisarem de ajuda, nós também estamos por aí.

Partido Comunista Brasileiro
Consideramos a sua visita muito rica e proveitosa e criamos com isso um novo canal de articulação, para que nós possamos compartilhar mais diretamente a denúncia que você nos traz e pensar outras estratégias de apoio concreto à luta indígena. Esse foi apenas o nosso primeiro contato, uma articulação que não pode terminar aqui, mas que deve ser apenas um pontapé inicial.

Adalto Guarani Kaiowá
É apenas o começo, um comecinho ainda. Antigamente nós vivíamos. Por que nós chegávamos até uns 180 ou 190 anos? Porque a mãe não comia veneno. Hoje não se chega mais. Aos 60 ou 70 você já está com todo o corpo doído, por causa de veneno, que pouco a pouco mata e a pessoa não chega mais nisso. Então, para salvar essa vida, nós temos que fazer o fim do veneno, tem que dispersar o veneno. Só isso. Para fazer isso, você tem que ter ideia. Você tem mais ideia de por onde tem que começar isso. No agroecológico, se você fala isso… Antigamente nós plantávamos mandioca sem veneno, abóbora sem veneno, milho sem veneno. A banha era de porco, não era de óleo. Feijão era o feijão coivara, sem veneno. Carne também sem aquilo que dá na carne. Hoje carne é tudo com aquilo. Carne, frango, porco… Se você come o próprio [alimento] que você cria, aí você consegue salvar a sua vida. Então, é só passar uma vida, é isso. Só nós dispensar o veneno. Tem que ser [assim], mas vai ser difícil.