A presença do setor privado nas redes estaduais de educação
Levantamento aponta que 353 organizações, a maioria recebendo dinheiro público, atuam em 26 Estados e no Distrito Federal.
A reportagem é de Luiz Sugimoto, publicada por Jornal da Unicamp, 13-11-2018.
A enorme quantidade e diversidade de organizações privadas atuando junto aos sistemas estaduais de ensino – grande parte recebendo recursos públicos – é o que mostra a pesquisa “Mapeamento da inserção do setor privado nas redes estaduais de educação (2005-2015)”, cujos resultados estão parcialmente disponibilizados na forma de plataforma de acesso livre. A pesquisa, a ser publicada em e-Book durante o VI Seminário da Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação), em 26 e 27 de novembro na Unicamp, aponta a incidência do setor privado nas três dimensões da política educacional – oferta, gestão e currículo. O estudo foi desenvolvido pelo Grupo de Estudo e Pesquisas em Políticas Educacionais (Greppe), que é interinstitucional e reuniu neste trabalho professores e estudantes de graduação e pós-graduação de Unicamp, USP, Unesp (Rio Claro) e UFRJ, com apoio do CNPq e da Fapesp.
“A pesquisa apresenta muitas informações interessantes, mas um elemento que vale a pena destacar é a quantidade e a diversidade de atores privados atuando na gestão ou oferta da educação da rede estadual; na verdade, na definição da educação estadual”, observa a professora Theresa Adrião, líder do Greppe. “Grosso modo, considerando apenas duas dimensões, do currículo e da gestão, localizamos 231 diferentes programas funcionando ou que funcionaram no período, incidindo sobre o currículo do conjunto dos 26 estados brasileiros e Distrito Federal. São 353 organizações privadas atuando – e em grande parte recebendo recursos públicos – para implantar programas de abrangência diversa na área de currículo e 156 na área de gestão.”
Em relação às três dimensões da política educacional, a pesquisa considerou a oferta privada como acesso à educação por meio de convênios, contratos e bolsas em instituições particulares (com subsídio público); a gestão envolve contratação de assessorias, transferências da gestão escolar para instituições privadas, introdução de mecanismos de avaliação de desempenho institucional e de formas diretas ou indiretas de “premiações”, como bônus por produtividade aos trabalhadores da educação; e a dimensão do currículo identificou a presença de atores privados em atividades fins, como de ensino-aprendizagem propriamente dita, desenvolvida dentro e fora da sala de aula.
Na opinião da coordenadora do Greppe, este estudo representou um esforço de síntese e de caracterização bastante abrangente, do qual não se tem outro registro no Brasil. “A ideia é que as pessoas interajam com o mapeamento e, a depender do estado que queiram consultar, cliquem nos dados relacionados – quanto mais escuro o mapa, maior a presença de atores privados na gestão educacional, oferta e currículo daquele estado. No período 2005-2010, Pará e São Paulo foram os que mais concentraram esta presença. Agora, pretendemos atualizar o mapeamento, o que depende da continuidade do financiamento que já solicitamos.”
Theresa Adrião afirma que esta pesquisa dialoga com o histórico de investigações que o Greppe vem desenvolvendo desde 2005, com interesse especial na atuação do setor privado, em suas diferentes manifestações, junto às redes públicas. “Buscamos localizar no período, junto ao conjunto de redes estaduais, quais eram os principais atores privados, em quais programas atuavam, o que propunham para a educação básica, qual segmento focavam (professor, aluno, gestor, comunidade em geral); e, também, se havia ou não sistemas de avaliação do projeto de educação, próprios de cada estado, bem como alguma forma de bonificação (premiação à escola ou diretor).”
De acordo com a docente da Unicamp, apesar de os sistemas estaduais terem como prioridade o ensino médio – “onde está o maior problema na educação básica do Brasil, além da creche” – muitos programas privados, especialmente sobre currículo, também atuavam no ensino fundamental. “Os programas de currículo, em sua maioria, buscavam um diálogo direto com os estudantes, sob a justificativa de que tinham por objetivo garantir o acesso a uma educação de qualidade, etc. No caso da gestão, os gestores de escola são os principais segmentos visados. É interessante destacar, ainda, que temos uma diminuição geral da matrícula na educação básica, tanto pública quanto privada, mas com diminuição maior da oferta pública e elevação da oferta privada, em todas as etapas de escolaridade.”
A pesquisadora acrescenta que nas regiões mais ricas, Sudeste e Sul, são as corporações com finalidade de lucro que mais apareceram no conjunto de atores, das dimensões do currículo e da oferta. “Nas regiões mais pobres prevalecem as agências filantrópicas(institutos, fundações), que são braços sociais de corporações que visam a aumentar seus lucros investindo em startups e desenvolvimento de produtos para vendê-los a sistemas públicos – é o que a própria OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] chama de filantrocapitalismo.”
No mapa do Brasil, Pará e São Paulo aparecem na cor preta, o que significa uma intensa atuação privada na rede estadual de educação, e que ganha uma explicação de Theresa Adrião. “Orientei uma dissertação de mestrado sobre o caso do Pará, onde instituíram uma estrutura de governança em que o setor privado integra os processos decisórios para a educação no estado: o chamado ‘Pacto do Pará pela Educação’. Assim como em São Paulo, com o ‘Compromisso de São Paulo pela Educação’. Não são apenas programas pontuais: a política educacional é elaborada e mediada por um conjunto articulado deste setor privado, que se diz parceiro ou pactuado com o governo.”
A coordenadora da pesquisa salienta, também, que este levantamento foi feito nos sites das secretarias de educação e das instituições identificadas, e que isso implicou em dificuldades. “Quando muda o governo, somem as informações relacionadas aos processos anteriores. Há uma dificuldade muito grande de se construir a história da presença dos setores privados na educação dos diferentes estados. Sabe-se, por exemplo, que a Fundação Roberto Marinho e o Instituto Ayrton Senna estão atuando desde muito tempo no Nordeste, mas é muito difícil identificar tudo que de fato aconteceu.”
Cenário futuro
O levantamento terminou em 2015, mas a professora da FE prevê que as cores do mapa mudarão quando as informações forem atualizadas, como do Rio de Janeiro, onde já se sabe que o processo de privatização da educação do estado se aprofundou. “É fundamental, primeiro, que as informações sejam públicas. Isto porque, apesar de se tratar de recursos públicos, é dificílimo saber, por exemplo, quanto os governos estão repassando ou repassaram por contratos ou termos de cooperação – não há transparência. Segundo, queremos agora fazer um estudo longitudinal, acompanhando os grupos que atuam por mais tempo e tencionando o discurso de expertise que adotam, pois são esses próprios atores privados que desqualificam a gestão pública da educação. Afinal, quais são as evidências de que a presença deles melhorou aquilo que dizem ser ruim?”.
Comentando o cenário futuro, Theresa Adrião, dias antes do fim das eleições, manifestava sua preocupação com a pauta do novo governo, pregando ideias que acentuariam a participação do setor privado na educação básica brasileira. “Um dos candidatos tem vendido o modelo chileno, que é questionado pela literatura de modo geral. Como considerar a efetividade do modelo de voucher, a ser entregue para as famílias, como se aquelas de regiões/zonas mais pobres tivessem escolas à disposição para escolher? E quando é muito pouco o que o governo federal investe na educação básica. Vale lembrar que mesmo nos Estados Unidos, o voucher não é amplamente adotado. Uma de nossas lutas é para se aumente o repasse para sistemas públicos de ensino. Muito aluno vai ficar fora da escola.”
Outro aspecto importante apontado pela coordenadora do Greppe é que o ensino a distância e o ensino superior são as únicas modalidades completamente liberalizadas para comercialização como serviços pela OMC (Organização Mundial do Comércio). “Já a educação básica, nenhum país liberou completamente para o mercado, pois está claro que a formação da juventude é um compromisso nacional. É preocupante a proposta de ampliar o atendimento no ensino fundamental por meio do ensino a distância, ainda mais com as dificuldades de comunicação que temos no país. O que será da criança no interior do Amazonas, que não tem internet?”.
http://www.ihu.unisinos.br/584754-pesquisa-mapeia-insercao-do-setor-privado-nas-redes-estaduais-de-educacao