A «Casa de Papel» * em versão latino-americana

imagemAlfredo Serrano Mancilla

A impressão massiva de dinheiro pelos bancos centrais dos EUA, UE, Japão e Grã-Bretanha funciona como mais um mecanismo de dominação econômica sobre países que não têm esse privilégio, amarrando-os a um endividamento sem fim à vista.

Na última década, Estados Unidos, União Europeia, Inglaterra e Japão imprimiram o equivalente a dez bilhões de dólares. Os seus respectivos bancos centrais puseram a maquineta de imprimir notas a toda a velocidade. O Federal Reserve dos Estados Unidos duplicou o seu volume entre 2008 e 2014 e depois continuou a imprimir, embora a um ritmo algo inferior. O Banco Central Europeu duplicou o seu entre 2015 e 2017. O Banco do Japão começou a incrementar o ritmo de impressão a partir de 2013 e hoje em dia o seu volume impresso tem quase o mesmo tamanho que a sua economia. No caso do Banco da Inglaterra, o seu volume multiplicou por 15 em termos de Produto Interno Bruto.

E com tanto dinheiro pelo mundo, com este excesso de liquidez global, faz sentido fazer-se esta dupla pergunta a partir de uma perspectiva latino-americana: 1) isto serviu para melhorar a economia? 2) quem foram os afortunados que ficaram com boa parte dessa quantidade desmedida de notas impressas? Neste caso, na realidade, ao contrário do que ocorre na famosa serie “La Casa de Papel”, os ganhadores não são os cidadãos da rua. Tampouco há tiros ou reféns. Mas há sim um outro método, não baseado num roubo como tal, mas sim numa vigarice milimetricamente planificada.

A sequência é a seguinte. Primeiro, o já referido: imprimem-se notas aos montes que, de imediato, são emprestadas na sua maioria à grande banca a uma taxa de juro ridícula, em muitas ocasiões próxima de 0%, ou inclusivamente com taxa de juro real negativa. A justificação foi que havia que “salvar” a banca, considerada “demasiado grande para cair”. De modo que lhes foi oferecido dinheiro. Literalmente a custo zero.

Segundo, a banca demasiado grande para cair, já salva, e com o saco cheio, tinha o grande objetivo de emprestar esse dinheiro sobrante a economias periféricas, como as latino-americanas, desejosas de nutrir-se de novo capital. Este empréstimo em segunda instância não seria já a taxa zero ou a um juro muito baixo, mas era feito a uma taxa de juro mais elevada, garantindo-se assim um negócio redondo.

Há um terceiro passo: identificar aonde foi parar este dinheiro que recentemente aterrou em algumas economias latino-americanas. Chegados a este ponto, o importante antes de tudo é reter um dado claro: este “novo dinheiro” não se orientou para atividades econômicas produtivas nem para a economia real. De cada 10 dólares novos, 9 terminaram em atividades financeiras, especulativas e ociosas. Então, qual foi o destino do dinheiro conseguido através destes novos empréstimos? Em muitos países, como são os casos de Colômbia e México, foi empregue em pagar dívidas anteriores. Na Argentina a situação foi outra devido a que Macri recebeu um país desendividado. De modo que os dólares novos se colocaram em modo de livre oferta à disposição de quem pudesse compra-los. E assim foi: os dólares acabaram na sua grande maioria nas mãos de uns poucos fundos de investimento e da mesma banca que havia previamente emprestado os dólares; houve também dólares para bancos locais e para outros atores econômicos de alto escalão (especialmente, o que na Argentina se chama o “campo”); e o resto, uma percentagem ridícula, para uma maioria que não tinha pesos suficientes para os comprar ao novo tipo de cambio depois das desvalorizações.

E é assim que chegamos ao quarto capítulo desta serie. Agora é a altura em que o mundo financeiro esfrega as mãos. Por quê? Porque ainda restam muitos mais dólares para emprestar. Dez bilhões de dólares são muitos dólares e não foram todos gastos na primeira fase. Com tudo o que resta por colocar, agora é o turno do FMI, que chega com os bolsos cheios de dinheiro impresso pelas maquinetas dos seus bancos centrais com uma única missão: emprestar de novo para que o país cancele a sua dívida, quer dizer, devolva o que pediu anteriormente emprestado. E assim a dívida externa vai-se constituindo em divida eterna.

Dado o domínio atual do capitalismo neoliberal, impede-se que o dinheiro novo, o que se consegue por empréstimo, seja usado para a economia real. Isto provoca que as economias latino-americanas, que se inserem no mundo pelos canais regulares, acabem sumamente endividadas, com uma economia real cada vez mais raquítica e ineficiente. O grande boom global de impressão monetária é um fator condicionante do crescente endividamento externo latino-americano, que determina para o futuro um modelo de desenvolvimento dependente, financeirizado e improdutivo e, em consequência, com uma procura interna cada vez mais débil.

«La Casa de Papel» em versão latino-americana tem um final diametralmente oposto ao que ocorre na série. Na ficção, o dinheiro fica com um grupo de gente anônima, mas na realidade o caudal impresso vai parar na conta dos resultados de uns quantos bancos à custa das economias da região. Veremos o que sucede na próxima temporada.

*«La Casa de Papel» é uma série espanhola de televisão, cujo enredo se centra num grupo de ladrões que se encerram na Casa Nacional da Moeda de Espanha. Presume-se que no decurso dos episódios imprimem papel moeda.

Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2018/12/12/economia-la-casa-de-papel-en-version-latinoamericana/