O ataque da ignorância contra a razão

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A defesa da universidade pública e a conjuntura

Por Mauro Luis Iasi

BLOG DA BOITEMPO

No último dia 15 de maio vimos uma Greve Geral da Educação, que mobilizou milhares de estudantes, professores e funcionários das Universidades Públicas, dos Institutos Federais, da educação básica e até de instituições privadas de ensino. Tal mobilização se deu em resposta aos cortes nas verbas de custeio das instituições de ensino, que o ministro (inimigo) da Educação eufemisticamente chama de contingenciamento. Para acrescentar um toque de perversidade, o presidente miliciano chama os manifestantes de “idiotas úteis”, manipulados por “militantes”.

 

O principal argumento para os cortes encontra-se na afirmação de que a economia não cresceu conforme o previsto, sendo, portanto, necessárias adequações. O ministro Abraham Weintraub, em depoimento no Congresso, acrescentou que tal previsão teria vindo do governo Dilma/Temer, procurando se isentar da responsabilidade, e ocultando propositalmente que o orçamento em vigor é na verdade do usurpador Temer (apoiado histericamente pelas forças políticas que agora governam e que prometeram o Éden do crescimento com o afastamento da presidente eleita em 2014).

O fato é que as universidades públicas vêm sendo “contingenciadas” em seus recursos há muito tempo. O Fórum de Pró-Reitores de Planejamento e Administração das Instituições Federais de Ensino Superior já alertava em 2017 que estávamos vivendo um agravamento da situação orçamentária nas universitárias, pelo crescimento do número de alunos ao mesmo tempo que encolhiam os recursos. Em 2017, o valor em reais por aluno era 42% menor do que o de 2011, passando de R$ 2496,77 para R$1757,13 nesse período. Neste quadro, a ANDIFES cobrava uma correção nas verbas que, além de não vir, agora foram reduzidas.

No entanto, trata-se de algo muito maior que o mero equilíbrio orçamentário. Trata-se de um ataque contra a concepção de universidade e de ensino público. É preciso, na lógica do governo miliciano, desqualificar a universidade apresentando-a como um lugar improdutivo e desnecessário de desperdício de recursos e promotor de “balbúrdias” e orgias. Além do “saneamento” nas contas do Estado promovido pelo guru do ultraliberalismo, o ministro Paulo Guedes, e o claro favorecimento à lógica privatista da educação, defendida por sua irmã, Elizabeth Guedes (vice presidente da Associação Nacional das Universidades Privadas), as universidades estão na mira do rancor governista por motivos políticos e ideológicos.

A tese estapafúrdia propagada pelo astrólogo do apocalipse sobre a existência de um suposto “marxismo cultural” que teria dominado todo o sistema educacional, os meios de comunicação e as forças armadas, encontra nas universidades um ponto central. Essas instituições teriam se tornado o centro da formação de militantes e da lavagem cerebral da juventude para destruir os valores fundamentais da sociedade ocidental e da cristandade. Os verdadeiros e valorosos pensadores conservadores e direitistas teriam sido perseguidos e hostilizados no ambiente acadêmico pela ofensiva deste mítico “marxismo cultural”.

É evidente que há uma relação de determinação entre esses dois aspectos, de maneira que os cortes de gastos públicos para manter os sagrados pagamentos dos juros da dívida e a sangria de recursos para o capital financeiro constituem o essencial, ao passo que o ataque ideológico serve de legitimação para tanto. Entretanto, acreditamos que, nas condições do atual desgoverno, o ataque às universidades e à educação é muito mais que uma mera cortina de fumaça.

As classes dominantes brasileiras precisam operar um ataque brutal aos trabalhadores e à maioria da população para garantir as condições de valorização do capital nas condições atuais. Isto implica a reversão de direitos e garantias que cumpriram um papel na reprodução social em períodos passados e agora precisam ser desmontados. O simples corte, no entanto, provocaria uma reação muito grande, de forma que operasse em dois planos: no sucateamento paulatino que vai inviabilizando as instituições de ensino e sua desmoralização.

O segundo plano, a desmoralização (não só do ensino, mas de tudo que é público) obedece, também, à lógica de blocar a base social de sustentação do desgoverno, mobilizando-a contra inimigos “imaginários”, enquanto servem de fato para implementar os verdadeiros interesses dos reais inimigos da maioria da população e da classe trabalhadora.

Antes de tudo, é necessário afirmar que a universidade no Brasil nunca foi hegemonizada por nenhum marxismo (cultural ou qualquer outro). A necessária defesa da universidade pública contra seu desmonte não pode obscurecer o fato de que essas instituições são e sempre foram eminentemente conservadoras na forma e no conteúdo. Mesmo com a saudável democratização do espaço universitário com a ampliação do acesso de camadas populares e segmentos para os quais este espaço era praticamente vetado (como pobres, negros, indígenas, camponeses, etc.), a vida acadêmica prima pelo elitismo, pela forma meritocrática ou quase aristocrática, pela seleção de currículos e saberes que respondem muito mais às necessidades da ordem burguesa e a reprodução do capital do que às demandas reais da maior da população.

A UFRJ, só para dar um exemplo, fica de frente para uma das maiores favelas do Brasil, o Complexo da Maré, à qual é ligada por uma ponte que foi batizada de “Ponte do Saber”, que é irônica e simbolicamente de mão única (saindo da universidade para a favela). Há muito tempo os interesses das grandes corporações lotearam os espaços universitários pela porta das parcerias, fundações e outros meios, capturando laboratórios, pesquisadores e estruturas para os colocarem a serviço das pautas e dos interesses empresariais.

É evidente que há honrosas exceções nas diferentes dimensões do ensino, da pesquisa e da extensão que buscam reflexões críticas, saberes e práticas voltadas às necessidades da classe trabalhadora e à compreensão de nossa sociedade e do mundo contemporâneo, a formação profissional de qualidade e à produção acadêmica de excelência. Mas todos concordarão que seria absurdo afirmar que essa vertente é determinante no mundo universitário – pelo contrário, sobrevive subordinada, como poucos recursos, preterida na distribuição de verbas e recursos materiais, bolsas, assistência estudantil, etc.

Manifestam-se na instituição universidade as mesmas contradições que marcam a carne da sociedade brasileira: as desigualdades entre homens e mulheres, brancos e negros, cidade e campo, ricos e pobres, assim como outras que poderíamos enumerar à exaustão.

Ao defender a universidade pública, é necessário todo o cuidado para não idealizarmos esta instituição, transformando-a em algo que ela não é. Ela é um espaço de conflito e de contradições, mas também é o espaço de onde vêm 95% de todas as pesquisas científicas em nosso país, a maioria absoluta das teses e dissertações defendidas, onde se realizam trabalhos de extensão de grande significado e onde se formam profissionais das mais diferentes áreas de atuação. No entanto, sabemos que o campo das pesquisas e da formação profissional está longe de ser neutro do ponto de vista dos interesses de classe que dividem nossa sociedade.

O ataque à universidade é parte da pauta do obscurantismo reinante e serve de coesionador da base retrógrada que deu a vitória eleitoral ao presidente miliciano. Fazem parte dessa frente de batalha a desqualificação da filosofia e da sociologia, a crítica aos intelectuais e artistas, entre outras iniciativas obscurantistas como nas pastas que tratam da família, dos povos indígenas, do meio ambiente ou da política internacional. Mas contra quem é necessário coesionar essa base?

Temos que estar atentos para um deslocamento importante. Evidente que é contra a esquerda, os ativistas, o “marxismo cultural”, mas há uma outra disputa em curso – esta entre os segmentos que compõem o governo. Claramente Bolsonaro não era a primeira alternativa da ordem burguesa e do grande capital monopolista. Parece evidente que ele não estava (e ainda não está) preparado para governar. Acrescente a isso o fato de que a personalidade do presidente é fonte de constantes instabilidades. Não creio que se trate de uma disputa, como se tem desenhado, entre duas alas: a “olavista” e a militar. Nos parece mais preciso descrever o governo como composto por três segmentos: o de sustentação do presidente (que inclui os seguidores de Olavo de Carvalho, o fundamentalismo religioso e a estrutura miliciana que envolve sua família), os militares (que não são, como o presidente gostaria, sua base ou seu grupo de pertencimento) e os ultraliberais bancados pelo “mercado”.

A convivência não deve ser fácil. Os militares se incomodam com o fato de que deram aval a algo que de fato não controlam e que é fonte inesgotável de constrangimento e vergonha alheia. A área chamada técnica tem lá seus problemas, pois pilota um programa de “reformas” que dificilmente produzirá os efeitos esperados na retomada da economia e do emprego e depende de uma sustentação política que dá claras mostras de incompetência para administrar a base do próprio governo. Moro, que gostaria de se incluir nesta área “técnica” é fonte de mais instabilidade, pois é odiado pelo Congresso que parece estar disposto a derrota-lo em tudo. O presidente não tem liderança e capacidade para unificar tudo isso que ele julgava ser homogêneo, mas que a cada dia se mostra não ser. O antipetismo, tão útil para ganhar as eleições, agora não serve para nada.

Pelo menos até agora, o presidente parece pensar que pode coesionar esses segmentos na medida em que fale diretamente com a base social por cima das mediações políticas que o Estado burguês lhe oferece. Para tanto, precisa manter mais um clima de campanha do que de governo e acaba acirrando a crise ao invés de controlá-la. A ofensiva contra a universidade faz parte deste script que pode incendiar as condições de governabilidade e agregar o tempero das ruas que faltava para fritar seu mandato.

O documento que o próprio presidente divulga, em que se diz obstaculizado pela “classe política” e por interesses que controlam o Estado, é menos uma tática política pensada e mais uma justificativa que tenta encobrir sua própria incapacidade. Isso, no entanto, não impede que produza o resultado esperado em sua base de apoio. A grande dúvida do momento é se a operação em curso para substituir o incômodo mandatário poderá ser feita sem grandes custos políticos e sem abrir brecha para uma oposição de esquerda ou centro esquerda que possa criar problemas para a agenda de reformas do capital. Parece claro que a direita quer se livrar de Bolsonaro para realizar sua agenda, mas como reagirá a extrema direita e sua base fanática?

Poderá o presidente destapar a panela do descontrole e movimentar o fanatismo em sua defesa? Mas, desta forma, não romperá definitivamente com os segmentos substantivos de seu governo (militares, representantes do sagrado mercado e base parlamentar) para quem a estabilidade e a garantia das reformas é a prioridade estratégica? Haveria espaço para um governo bonapartista que fosse capaz de se impor contra o Estado sem destruir a si mesmo? Os indícios apontam para mais um blefe. Está se formando um consenso pelo seu afastamento que pode ser selado pela linha da investigação que o associa às irregularidades no mandato de seu filho eleito senador e, por esta via, às supostas vinculações com as milícias e, quem sabe, ao assassinato de Marielle. Ao que parece, ele não articula mais uma maneira de ficar, mas uma justificativa de por que deve sair.


Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.