Sobre os resultados das eleições europeias

imagemRémy Herrera

ODIARIO.INFO

Ainda está por se fazer a análise em profundidade das eleições europeias. Dos seus resultados em cada país e da sua repercussão no conjunto da UE e fora dela. A França foi um dos países em que a extrema-direita ganhou. E é urgente identificar as razões que levam um partido de extrema-direita consolidar e alargar o seu apoio entre as camadas populares.

A bem dizer, os resultados das eleições europeias de 25-26 de maio revelaram poucas surpresas. Em quase todo o lado os partidos das direitas extremas obtiveram bons e mesmo muito bons resultados. A tendência não é nova no âmbito do continente. Ela confirma-se, consolida-se. E inquieta. O Rassemblement national (RN, ex-Front national) de Marine Le Pen venceu na França, com 23,3% dos votos expressos, enquanto na Itália a Liga do Norte (Lega Nord per l’ Indipendenza della Padania) do atual ministro do Interior e Vice-presidente do Conselho de Ministros italiano, Matteo Salvini, registou 34,3% dos votos. Além dos 22 franceses do RN e dos 28 italianos da Liga, o grupo “Europa das nações e das liberdades” contaria também com três deputados austríacos do Partido da Liberdade da Áustria (Freiheitliche Partei Österreichs), três do partido nacionalista Interet Flamand (Vlaams Belang) e um do partido populista estônio (Eesti Konservatiivne Rahvaerakond). A este grande contingente da extrema-direita oficialmente proclamada deveriam sem dúvida ser adicionados, pontualmente, os membros das forças reacionárias “eurocéticas” do Direito e Justiça da Polônia (Prawo I Sprawiedliwość) e da União Cívica Húngara (FIDESZ), entre outras. Em geral, fora da França e da Itália, as direitas conservadora e neoliberal ganharam em toda a Europa – com a notável exceção da Península Ibérica, onde a esquerda ganhou.

Neste quadro europeu que gradualmente se obscurece, o caso da França é bastante singular. Lá, o partido da maioria presidencial, a República em Marcha (LREM) criada em 2016 por e para Emmanuel Macron – que confiscou a campanha europeia pelos seus “one-man-shows” do Grande Debate, e depois pelo seu envolvimento pessoal, a ponto de figurar nos cartazes eleitorais e de eclipsar a cabeça de lista – , perdeu claramente (22,4%) face ao RN. Perdeu apesar da negação de um chefe de Estado emparedado no autismo político, que se considera “confortado” na sua recusa de “mudar de rumo” e apesar das acrobacias de linguagem de um governo decidido a passar à “segunda fase das reformas” do mandato presidencial. Os dois partidos – nos quais têm parcialmente origem o LRM – Les Republicains (a direita tradicional) e os resíduos do Partido Socialista (de direita também, mas da nova tendência neoliberal globalista, euro-idólatra e pró-atlantista), foram ao tapete: 8,5% dos votos para o primeiro, 6,2% para o segundo – com a generosidade de se arredondarem as suas percentagens à casa decimal superior. Os resultados conjuntos das duas formações partidárias que há quase 40 anos têm em conjunto aplicado as políticas neoliberais – por vezes sob a forma da coabitação entre um presidente da República e um Primeiro-ministro de lados “opostos” – não chegam a 15%. A rejeição do neoliberalismo é portanto maciça. Continuará ainda a ser imposto aos franceses. Democraticamente, é o que nos dizem. Quando uns 23 613 483 cidadãos (ou seja quase 49,9% dos inscritos, pouco menos do que os eleitores que votaram) decidiram não participar na votação, abstendo-se. E 551 235 outros votaram em branco (um modo de expressão agora contabilizado). Mais um meio milhão suplementar de boletins de voto anulados.

Não é necessário ter estudado latim na escola para constatar que o espetáculo oferecido pela esquerda é sinistro. A França insubmissa (com 6,3%) congratulou-se com a eleição de seis deputados, quanto não tinha nenhum – normal, afinal de contas, o movimento impulsionado por Jean-Luc Mélenchon não existia ainda quando das eleições de 2014. Culto do chefe (é certo que excepcionalmente talentoso e culto), sectarismo da sua envolvente mais próxima, incapacidade definitiva em produzir um programa ao mesmo tempo radical e coerente explicam particularmente este fiasco. O Partido Comunista Francês? Há muito que deixou de falar de socialismo, apenas do social, e mais frequentemente do societal… Chegou aos 2,5%, ou seja, abaixo dos 3% (sem reembolso de despesas de campanha) e, portanto, também abaixo dos 5% (nenhum eleito ao Parlamento Europeu). Os trotskistas da Lutte Ouvriére estão nos 0,7%; imperturbáveis. Seguramente não trotskista, o Partido Revolucionário Comunistas está nos 0, 1%. Não procure mais! A taça está vazia. Vão nos dizer: o futuro é a ecologia. E estaremos certos. Mas provavelmente não com os nossos. Do alto dos seus 13,5%, sentem lhes crescer as asas e querem “hegemonizar” a esquerda. Porque ainda falta esclarecer se o seu partido, Europe Écologie, é de esquerda! Yannick Jadot, o cabeça de lista às Europeias, não se manifestou favorável a uma reforma da função pública e à sua «aproximação ao estatuto da função privada»? Tal como deseja o Presidente Macron! Que esperar de Pascal Canfin, eleito – sem qualquer vergonha – deputado ao Parlamento Europeu na segunda posição na lista macronista… A lista de alguém que retrocedeu na sua promessa de banir o glifosato antes de 2021, que se sentou sobre os Acordos de Paris sobre o Clima e se prostra frente aos lobbies dos poluidores! E que dizer de um Cohn-Bendit? É inútil gastar energia, tinta e papel para evocar este palhaço. Papel higiênico será suficiente. Os meus pensamentos vão apenas para os pobres veteranos do Maio de 68 que têm que engolir a sua máscara bochechuda e sorridente de traidor nas fotos dos livros de História!

Regressemos antes ao essencial, isto é, à vitória da extrema-direita na França. Por que razão ganhou? Por que razão se beneficia de um apoio crescente entre as classes populares que, tendo em vista o seu gosto pronunciado pela mestiçagem, não parecem racistas? Numerosas causas, trabalhando a sociedade em profundidade por um longo período, de natureza socioeconômica, ideológica, mesmo psicológica, poderiam ser mobilizadas. Especificando que as nossas hipóteses dizem respeito a um tema: que o racismo é uma doutrina intrinsecamente de direita e visceralmente difundida pelo pensamento burguês a fim de dividir as classes dominadas; que as classes populares não são geneticamente mais estúpidas do que as outras e assim – ainda que manipuladas pelos meios de comunicação – não são menos capazes de identificar o seu interesse de classe; e que largas parcelas destas mesmas classes laboriosas estão hoje disponíveis para uma mudança social radical, prontas para uma “saída do sistema” (certas partes das classes médias parecendo também na iminência de se deslocar para o mesmo campo). Arrisquemo-nos a avançar uma dessas causas, entre outras, importante naquilo que diz respeito à esquerda. Mas tabu. Ei-la: mais e mais segmentos das classes laboriosas dão o seu apoio à extrema-direita porque a julgam – erradamente – como mais capaz de lhes dar respostas aos inúmeros sofrimentos que os afligem e aos medos que os assombram. Medo face ao desemprego, à precarização, à degradação social, medo face à abertura das fronteiras e à perda da soberania nacional, medo finalmente face à imigração. Tudo ao mesmo tempo, como diz o outro. Porque eles pensam também – justamente neste caso – que a maioria das organizações partidárias da esquerda, tal como funcionam atualmente, com as suas contradições, as suas divisões, as suas hesitações, as suas deficiências, renunciaram (ou deixaram de ter capacidade) de defendê-los.

As forças da esquerda não estão encostadas à parede, estão no fundo da parede. Da parede capitalista. Ou elas finalmente entendem que não haverá saída da crise capitalista senão pela saída do próprio sistema capitalista, ou o país (e a Europa com ele) seguirá inelutavelmente a via que os EUA acabam de empreender, a do acesso ao poder de uma extrema-direita. Como é o caso dos seus dois aliados indefectíveis que são Israel e a Arábia Saudita. E muito recentemente do Brasil, onde Jair Bolsonaro é um produto fatal do fracasso do reformismo. Portanto, sair do capitalismo surge como o imperativo absoluto de todos os verdadeiros progressistas. Ambientalistas incluídos, é claro, e em primeiro lugar, que devem tomar consciência de que se trata de uma questão de vida ou de morte, que a alternativa fundamental permanece mais do que nunca a de socialismo ou barbárie. Se 88 milhões de europeus vivem em condições inaceitáveis de pobreza, uns privados de emprego, outros lançados à competição entre trabalhadores, todos vendo os seus direitos eliminados, é porque a lei da selva do capitalismo o impõe. Se o “Estado francês” – para nomear aquilo em que está em vias de se tornar – vende a retalho o melhor da indústria nacional (entre 1.000 exemplos possíveis, o ramo de energia da Alstom à General Electric. .. que despede 1.000 assalariados em Belfort), foi porque fez a escolha de abdicar face aos ditames de Bruxelas e à ditadura do grande capital globalizado. Se os migrantes procuram alcançar as costas da Europa – e é devido recebê-los e tratá-los dignamente –, é porque a miséria e a guerra os impelem a fazê-lo, arriscando as suas vidas, porque o capitalismo saqueia as suas sociedades e porque o imperialismo que gera os faz sofrer conflitos criminosos.Se a crise climática provoca tanta devastação é porque nenhum limite é colocado à loucura e à rapacidade dos exploradores. É preciso arrancar de nós essa espiral destrutiva.

O espírito de Justiça exige uma ruptura com o capitalismo e a cessação das guerras imperialistas. Face aos ódios, às raivas, às violências em germe na extrema-direita – último baluarte do sistema capitalista – a razão apela à radicalização das forças progressistas, que passa pelo abandono do reformismo hipócrita e colaboracionista e ao retorno ao projeto pós-capitalista de transições socialistas. Nos anos 1920-30, os fascismos se alastraram sobre o continente europeu para se opor aos comunistas que, se não triunfavam na esteira do Outubro Vermelho, combatiam de armas na mão, heroicamente, até ao fim, dos Spartakusbund às Brigadas Internacionais. As figuras que nos servem de exemplo e nos fazem levantar a cabeça chamam-se Rosa Luxemburgo ou Dolores Ibárruri Gómez. As extremas direitas modernas têm por seu lado prosperado naturalmente sobre o estrume nauseabundo deixado no meio da cena política pelos líderes de uma esquerda socialdemocratizada, aburguesada, feita de vacuidade, saciada pelas migalhas que os capitalistas lhe lançam, domesticada por uma renda imperialista extorquida aos povos do Sul. Líderes que se confessaram derrotados e capitularam miseravelmente sem sequer pensar em lutar.

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