O fantasma comunista no seu labirinto
– Notas “a partir de um obscuro rincão do mundo”
Por Néstor Kohan
O capitalismo em debate
Depois de várias décadas de cozidos requentados pós-modernos, sopas “pós-marxistas”, saladas reformistas e sobremesas pós-coloniais à la carte, a discussão sobre o capitalismo mundial volta ao centro da mesa. Nos movimentos sociais, nas organizações políticas e no mundo cultural. Já ninguém se conforma com os “microrrelatos”, os “micropoderes”, a “micro-história”. Todos os pretextos e malabarismos para não encarar as crises selvagens que atravessam o sistema capitalista são afastados, como migalhas sujas, para fora da toalha.
O incêndio da crise de 2008 não se apaga. O fogo estende-se. O planeta range. Cada vez se tornam mais inadiáveis as explicações totalizantes sobre o que atravessamos.
Estaremos, por fim, numa época de capitalismo “desterritorializado” e interdependente, sem imperialismo, metrópoles, dependências nem periferias, onde um grupo de vendedores ambulantes de um bairro perdido do Haiti desempenha o mesmo papel no sistema mundial que o Bundesbank alemão, uma aldeia longínqua da Indonésia tem a mesma categoria de poder financeiro e político-militar que a Wall Street ou o Pentágono? Ou talvez continuemos localizados, ainda que não percebamos, no antigo capitalismo keynesiano do pós-guerra, com cadeias produção de valor ancoradas em cada país e capitais regulados em escala puramente nacional? Terá sido totalmente inócua a contraofensiva capitalista iniciada em setembro de 1973 no Chile, estendida a seguir à Argentina de 1976 e finalmente aplicada durante 1979-1980 na Londres de Margaret Thatcher e na Washington de Ronald Reagan? Que alguém avance uma explicação por favor e nos esclareça o panorama!
Não estaremos vivendo, talvez, uma nova fase do capitalismo, na qual se combinam as revoluções tecnológicas do capitalismo tardio estudadas por Erneste Mandel, os cinco monopólios mundiais explicados por Samir Amin e a reconquista planetária por expropriação (desposesión) sobre a qual nos alertou David Harvey?
Seja qual for a resposta correta, o que está claro é que a partir da crise feroz de 2008 e da reconversão dos antigos fanáticos do livre comércio em “protecionistas” e “guerreiros comerciais” (EUA, Alemanha, China, etc), somadas às invasões, bombardeios, bloqueios econômicos e intervenções político-militares imperialistas da última década, qualquer análise séria do presente já não pode continuar a repetir os tiques, os slogans e as modulações da “coexistência pacífica” de 1960.
Aquele tosco e demasiado inocente “pacifismo” de Nikita Kruschev dos velhos documentários em branco e preto, uma década mais tarde adotado nas metrópoles ocidentais pelo eurocomunismo (acompanhado de refinadas e esquisitas argumentações epistemológicas), hoje… nos atrasa!
Afirmar que a grande meta estratégica do comunismo é… “a paz” (assim, em geral, como diziam os soviéticos) e a defesa “da democracia” (também em geral, sem especificações e qualificações), está demodé. Não vai mais. Não corresponde ao planeta em que vivemos.
Flower power frente ao imperialismo ou estratégia comunista?
O mundo mudou. Lamentavelmente não foi para melhor. O movimento hippie de John Lennon e Yoko Ono, junto com o flower power, ficaram no belo rincão da nostalgia estética e da memória musical. Longe daqueles cabelos compridos e dos seus protestos pacifistas em lençóis brancos, nosso mundo atual parece-se muito mais com as sombrias imagens distópicas onde proliferam as invasões, as bases militares em escala planetária, a vigilância global, a repressão das massas empobrecidas migrantes e as guerras por recursos naturais não renováveis.
Se tivermos os pés na terra e não confundirmos o princípio do prazer (e a imaginação psicodélica) com o princípio da realidade, o trauma da queda do Muro de Berlim e as antigas nostalgias, hoje imperantes, devem ser superadas de uma vez por todas. De nada serve invocá-las periodicamente para reinventar novos reformismos.
Num livro recente, Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos. Manuales, mentalidades y uso de la antropología [NR] (2019), o antropólogo mexicano Gilberto López y Rivas descreve o sistema mundial capitalista da nossa época. É só uma tentativa possível, mas a nosso ver muito útil e realista.
No momento de definir as características centrais e o tipo de capitalismo que predomina nos nossos dias, o autor recusa de fato as versões apologéticas de uma suposta globalização “homogênea, plana, sem assimetrias nem desenvolvimentos desiguais”. Gilberto López y Rivas afirma que o sistema capitalista do nosso presente constitui um imperialismo global lançado sem escrúpulo algum numa “recolonização do mundo”. Sua tese, arriscada e precisa, desmonta na prática esse lugar comum das academias (financiadas por fundações “desinteressadas” como a NED ou a USAID) segundo a qual “num mundo globalizado, governado pela informação e o capitalismo cognitivo, os Estados Unidos, a Europa ocidental e os países capitalistas mais desenvolvidos já não necessitam da América Latina, África nem dos países pobres da Ásia, ou seja, do Terceiro Mundo”. Essa formulação trivial, repetida até à exaustão por especialistas em guerra psicológica, opiniólogos do marketing midiático e diletantes vários a soldo do império, depara-se com as guerras permanentes contra países periféricos, os bombardeios “humanitários” contra as sociedades dependentes, os bloqueios econômicos e comerciais contra qualquer governo desobediente – nomeados com desdém como um “regime” só pelo facto de não se ajoelhar perante as ordens das embaixadas estadunidenses, da União Europeia ou as receitas do FMI e do Banco Mundial – e o saqueio ininterrupto dos recursos naturais e da biodiversidade do Terceiro Mundo. Esse processo renovado de dominação e apropriação, ou a tentativa de levá-lo a cabo por métodos violentos, constitui a manifestação de um “neocolonialismo imperialista”, segundo a análise rigorosa de Gilberto López y Rivas. Toda uma definição.
O arco-íris da bandeira vermelha
Dentro deste contexto global, não cabe a passividade. As resistências são múltiplas. Ainda que nem todas tenham a mesma capacidade de organização, mobilização, nem a mesma nitidez ideológica para convocar e unir em escala internacional as iras populares, as rebeldias antissistêmicas e as dissidências contra “a nova ordem mundial”, cada dia mais caótica, cruel e desapiedada. As bandeiras das massas oprimidas e dos movimentos sociais em escala planetária têm as cores mais diversas, desde o verde ecologista e o violeta feminista até o emblema multicor LGTBI, entre muitíssimas outras expressões da palestra rebelde. Mas de todas as cores e matizes, necessariamente variados e coexistentes, acreditamos que o horizonte vermelho do marxismo continua a ser a perspectiva teórico-política mais abrangente, inclusiva e integradora e a que permite articular e unir todas as demais rebeldias à escala mundial, como há alguns anos assinalou a pensadora dos Estados Unidos Ellen Meiksins Wood no seu conhecido livro A renovação do materialismo histórico. Democracia contra capitalismo (2000).
A nova resistência. Polêmicas 90 anos depois da Primeira Conferência Comunista sul-americana
Há “apenas” 90 anos, quando não existia internet nem TV, destacamentos de diversas organizações revolucionárias da Nossa América reuniram-se em Buenos Aires (Argentina) para organizar a resistência das classes trabalhadoras, o mundo plebeu e popular. Tratava-se então de enfrentar de forma unida e organizada o imperialismo daquele tempo e sua famosa crise capitalista de 1929.
A reunião de 1929 teve lugar na Nossa América, dez anos depois de os bolcheviques fundarem a Internacional Comunista (faz agora 100 anos).
A obra que reúne as intervenções, palestras, debates e discussões daquele rico encontro histórico tem o título El movimiento revolucionario latinoamericano. Versiones de la Primera Conferencia Comunista latinoamericana del 1 al 12 de junio de 1929 [NR] . Foi editada por “La correspondencia Sudamericana”, Buenos Aires, 1929. O grosso volume – durante muitos anos em poder de escassos colecionadores – pode-se hoje ler e baixar na íntegra e gratuitamente no seguinte link: http://cipec.nuevaradio.org/?p=92 [Obtivemos o exemplar digitalizado da biblioteca pessoal do historiador marxista Rodolfo Puiggrós, por isso varias páginas têm o seu carimbo].
Em algumas investigações e livros tentámos analisar os eixos e discussões daquela lendária reunião que tentava desenvolver na Nossa América os ensinamentos de Lenine e dos bolcheviques, tomando [chá] mate, ouvindo música latino-americana e conversando em idioma castelhano. Não repetiremos agora essas análises.
Contudo, 90 anos depois, soubemos que em abril de 2019 voltaram a reunir-se organizações comunistas de vários países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela) em Montevideo, Uruguai. Estas organizações publicaram um documento conjunto onde, invocando aquela Conferência Comunista de 1929, tentam descrever como veem o capitalismo atual e quais deveriam ser as estratégica e táticas para lutar contra ele.
Pode-se consultar a Declaración del Encuentro de Partidos Comunistas de Suramérica no seguinte link: http://www.pcu.org.uy/index.php/noticias/item/3110 (datada na web de 30/Abril/2019).
A essa reunião não assistiram todos os comunistas do continente. Alguns núcleos, inclusive, fizeram fortes críticas ao documento. Por exemplo, pode-se consultar: A propósito de la Declaración de Montevideo. Resposta do Comité Central del Partido Comunista de México, no seguinte link: comunistas-mexicanos.org/… (datada na web de 24/Maio/2019).
Até onde sabemos e temos notícias, a organização comunista de Cuba (em outras décadas, em vida de Fidel, cabeça ideológica da revolução continental na Nossa América) não só não participou como, além disso, nem sequer se manifestou acerca de nenhuma das duas posições encontradas. Desde que foi dissolvido o célebre “Departamento América” do comunismo cubano (outrora conhecido como “Departamento de Libertação Nacional, sob a direção de Manuel Piñeiro Losada [“el gallego”, comandante “Barbarroja”]), Cuba pronuncia-se em escala internacional prioritariamente através do seu Ministério das Relações Exteriores. Mas nesta ocasião nem sequer por essa via oficial-diplomática-institucional ouviram-se ou leram-se pronunciamentos cubanos.
Em meio a este debate político-ideológico aberto em escala continental e perante o silêncio de Cuba, uma terceira organização que até há muito pouco tempo reclamava-se e definia-se como comunista tampouco se pronunciou no debate, pois está atravessando uma crise aguda à beira da divisão, tornada pública por todos os meios de comunicação do mundo. Trata-se das antigas FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo, vinculadas anteriormente ao Partido Comunista Clandestino da Colômbia, PCCC], definidas antes do seu desarmamento, reconversão e do acordo com o Estado colombiano como um “partido comunista em armas”.
O que está claro é que já ninguém se atribui nem exerce a função internacional de “partido guia”. Nem o antigo partido comunista da Rússia (que liderava o universo “pró-soviético”), nem o da China (outrora à testa da constelação maoísta), nem o da Coreia do Norte, nem o da antiga Albânia, nem o da Grécia, nem o já mencionado partido comunista de Cuba (durante décadas, farol das insurgências latino-americanas e inclusive com influências diretas nas Panteras Negras dos EUA). Ainda que existam afinidades, simpatias e aproximações internacionais, o comunismo mundial já não tem Vaticano nem Meca ideológica.
E se isto acontece com o mundo comunista, algo não muito diferente experimenta também a galáxia de recorte trotsquista, dividida em não menos de oito coordenadoras, todas autobatizadas “Quarta Internacional”, mas na prática nenhuma delas aglutina mais de dez representações, de diferentes países (no caso das maioritárias, várias outras são integradas por apenas dois ou três grupos diferentes).
Contrainsurgência, correlação de forças e problema nacional
Assim, o debate aberto em 2019 tem muitas arestas. Desde como definir o novo tipo de capitalismo mundial até o projeto alternativo pelo qual se deveria lutar se se pretende resistir e mudar o mundo.
Os marxistas e em particular os comunistas devem ter um projeto progressista, de reformas democráticas e em defesa da paz ou, em alternativa, deveriam tentar construir alianças e acumular forças em função de um projeto revolucionário, anti-imperialista e anticapitalista? Quando avançam as forças da extrema direita, neofascistas e anti-institucionais (no caso latino-americano: Brasil e Colômbia, ambos os guarda-chuvas dos EUA e de Israel, ainda que algumas destas correntes neofascistas também proliferem na Europa), devem as forças comunistas defender, como estratégia, o parlamento, a legalidade, a constituição e a paz a qualquer custo ou, em alternativa, devem-se preparar para enfrentar mediante todas as formas de luta possíveis a contrainsurgência, hoje retroalimentada e atiçada em tempos de ofensiva capitalista?
No plano da estratégia de longo prazo, quando na América Latina “o ciclo progressista” se enfraqueceu notavelmente e a direita mais agressiva mostra seu punho de ferro, devem os comunistas promover frentes democráticas, seguindo as velhas palavras de ordem de Jorge Dimitrov e do Sétimo Congresso da Internacional Comunista de 1935 ou em alternativa devem propiciar uma frente única das forças revolucionárias, antifascistas, anti-imperialistas e anticapitalistas?
No âmbito das táticas de curto prazo, qual deveria ser a proposta a apresentar no seio dos movimentos de massas para derrotar os governos neoliberais (Macri na Argentina, Bolsonaro no Brasil, Duque-Uribe na Colômbia, Piñera no Chile, etc)? Priorizar “a paz e a democracia”, diluindo-se em partidos tradicionais do sistema que encabecem as pesquisas eleitorais, sem mostrar a identidade própria (ou inclusive escondendo-a) ou, pelo contrário, promover frentes unitárias de libertação que tenham como objetivo recuperar a soberania nacional espezinhada pelo imperialismo (do econômico, o produtivo e o financeiro até o territorial e o geopolítico) e portanto tentar influir ideologicamente nas grandes massas que participam de processos eleitorais com uma identidade definida através de um programa antineoliberal, mas ao mesmo tempo propondo medidas anti-imperialistas e com perspectivas anticapitalistas?
A disjuntiva é atual, é urgente, mas tem uma longa história.
Recordemos que já naquela Conferência Comunista de 1929 o grupo liderado por Victorio Codovilla (com anuência do PC da União Soviética, presente através do bukarinista Jules Humbert-Droz [“camarada Luís”]) acabou por impor a estratégia continental da revolução democrática burguesa, “agrária-anti-imperialista”, baseando-se no suposto “feudalismo” latino-americano”. Posição hegemônica que enfrentou, com nome e sobrenome, as propostas dos delegados de José Carlos Mariátegui, que propunha como estratégia continental o seguinte: “A própria palavra revolução, nesta América das pequenas revoluções, presta-se bastante ao equívoco. Temos que reivindicá-la rigorosa e intransigentemente. Temos que restituir-lhe seu sentido estrito e cabal. A revolução latino-americana será nada mais e nada menos que uma etapa, uma fase da revolução mundial. Será simples e puramente a revolução socialista. A esta palavra acrescentai, conforme os casos, todos os adjetivos que quiserdes: “anti-imperialista”, “agrarista”, “nacionalista-revolucionária”. O socialismo os supõe, os antecede, os abrange a todos” (editorial da revista Amauta: “Aniversário e balanço”, Setembro de 1928).
Noventa anos depois, reaparece o debate. Ficamos só na defesa “da democracia” a seco, em geral, ou nos esforçamos por disputar a hegemonia político cultural puxando da corda rumo a posições socialistas, entrecruzadas, na Nossa América, com antigas, adiadas e irresolutas exigências étnico-nacionais (como acontece com a nação mapuche, os mais de trinta povos-nações do estado plurinacional da Bolívia, os povos originários do Peru, os do Equador, os da Guatemala, os do México, etc).
Tem sentido suicidar uma insurgência? Balanço de inventário
Ao avaliar as diferenças atuais entre os comunistas do cone sul e os mexicanos, não se deveria perder de vista o contexto regional e a correlação de forças à escala continental.
Nesse horizonte, perguntamos com a cabeça fria e absoluta serenidade: terá sido uma boa decisão desarmar (ou suicidar?) o maior exército revolucionário do continente quando proliferam e multiplicam-se as bases militares estadunidenses? (Sobre este tema pode-se consultar a volumosa obra de Telma Luzzani (2012): Territorios vigilados. Cómo opera la red de bases militares norteamericanas en Sudamérica, Buenos Aires, Editorial Debate). Desde 2012, quando esse livro documentado foi publicado, até hoje, as bases militares estadunidenses continuaram a aumentar. Não é nenhum segredo que o governo do presidente Macri entregou parte do território argentino para essas novas bases. No livro Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos (2019) de Gilberto López y Rivas encontram-se várias descrições pormenorizadas dos diferentes tipos de bases operativas estadunidenses fora do território norte-americano.
Ao levantar a barreira geopolítica que a insurgência comunista – com uma experiência prática de mais de meio século de luta – interpunha entre os estados da Colômbia e da Venezuela, não terão sido deixados de mãos livres os paramilitarismo e o narco estado colombiano para que arremeta contra o governo bolivariano do chavismo e tente, pela mão dos “falcões” do Pentágono e da administração Trump, derrubá-lo por vias violentas?
Será que o governo cubano imaginou que, ajudando a desativar, em nome “da paz”, o último contingente político-militar de envergadura, seria afrouxado o bloqueio criminoso contra essa ilha heroica e rebelde? Pelo pouco que se sabe, aparentemente o referido bloqueio está mais duro do que nunca…
Será que o governo do presidente legítimo da Venezuela pensou que, desaparecida a guerrilha bolivariana, o estado colombiano iria finalmente respeitar a lei, o direito internacional e a “boa vizinhança”? As aparências indicam o contrário. Desaparecidas as FARC-EP como força beligerante, o uribismo (o oficial e o paralelo) está mais cevado do que nunca… e seus paramilitares podem dispor da fronteira para cometer todo tipo de malfeitorias e violências contra o valoroso e abnegado povo venezuelano.
Enquanto isso, no interior da Colômbia, o Estado executou 135 ex-combatentes, desarmados, assassinados a sangue frio. Sem contar toda a militância social e de direitos humanos que foi reprimida nos últimos meses.
Até o jornal The New York Times, insuspeito de posições marxistas, publicou nos EUA um artigo assinado por Nicholas Casey, gerando um alvoroço de alcance internacional. Ali alerta sobre as execuções extrajudiciais na Colômbia, o papel do ex-presidente Uribe e o desconhecimento permanente do atual presidente Duque dos acordos de paz. Até 79 congressistas do Partido Democrata dos Estados Unidos pediram à Casa Branca para suspender todo apoio aos sabotadores (estatais) da paz na Colômbia.
Segundo o diário norte-americano, o governo ultradireitista de Iván Duque e seus principais comandos militares ordenaram voltar à prática suja dos “falsos positivos”. Ou seja, executar civis disfarçando-os de insurgentes e aumentar os “caídos em combates” (falsos). Até o ponto de o jornal The New York Times ter confirmado que as forças armadas da Colômbia iniciaram uma investigação interna para descobrir as fontes militares que deixaram escapar a informação dessas novas operações contrainsurgentes. Perante semelhante evidência, tem sentido continuarmos teimosamente abraçados a um papel assinado em Havana do qual a burguesia colombiana e seu imenso aparelho de guerra se ri em público?
Neutralizar, desarmar, dividir e aniquilar
Essas parecem ter sido as fases estratégicas da contra-insurgencia colombiana, dirigida com muita precisão a partir dos Estados Unidos e de Israel. Talvez tenha chegado a hora de interrogar acerca das debilidades ideológicas que permitiram semelhante operação. Ou foi só “perfídia”? Será que a categoria “perfídia” chega para explicar todo esse processo?
Nesse contexto inscreve-se o triste e vergonhoso caso do sequestro – completamente ilegal e forçado – de Jesús Santrich, acusando-o de narcotraficante, montagem grosseira no melhor estilo DEA/CIA. Como explicá-lo?
Valendo-se de uma montagem digna do famoso computador mágico de Raúl Reyes (de onde brotavam os delírios mais hilariantes, as histórias mais descabeladas), recrutou-se um militante da organização, seguindo o manual de operações da CIA. Todo o mundo recorda como Philip Agee, antigo agente da “companhia” que escreveu há década um livro famoso, Inside the Company [traduzido para castelhano com o título Diario de la CIA ], descreve o método de recrutamento clássico da inteligência estadunidense: o dinheiro. Mediante este método, a montagem DEA/CIA contra o revolucionário cego Santrich, recorreu mais uma vez à figura do “arrependido” (assim os chamavam na Itália dos anos 70 quando o estado burguês venceu as Brigadas Vermelhas; na Argentina denominavam-nos “quebrados”, em cada país são conhecidos com nomes diferentes). Mas neste caso não se trata de algum antigo militante revolucionário que não aguenta a tortura e colabora – como na Itália ou na Argentina – e sim de alguém que muda de lado sem pressões físicas e sim mediante dinheiro). Na montagem contra Jesús Santrich (dirigente insurgente comunista e bolivariano, mas também escritor, poeta, músico e filósofo), seu “acusador” tomou um voo imediato para os EUA onde imediatamente começou a trabalhar, segundo os meios de comunicação, para a DEA, como na série mais imaginativa do Netflix).
Que objetivo perseguiu este injusto, ilegal e cruel encarceramento? Na nossa opinião os objetivos foram vários.
Além da humilhação pública de um dirigente revolucionário conhecido internacionalmente – típica operação de guerra psicológica para causar baixas morais à tropa inimiga –, o principal objetivo consistiu em dividir as FARC e todos os comunistas da Colômbia. Gerar intrigas, enfrentar entre si os revolucionários, debilitar todo projeto de mudança. Uma velha receita… que o reformismo aceita desde que o sistema o tolere.
As provas estão à vista. Parte dos dirigentes oficiais do novo partido reciclado, que já não menciona as palavras “marxismo” nem “comunismo”, tratou de desentender-se de Santrich. Inclusive um dos seus editorialistas estrelas, agora convertido, deu certa credibilidade à montagem oficial deixando nas mãos da vítima a carga probatória da sua inocência, ao invés de negar rotundamente o que evidentemente era uma manobrada fabricada artificialmente contra um dos seus companheiros. Esse mesmo editorialista-estrela que, com intenções evidentes de provocação política, acusou Iván Márquez de estar “assessorado” por peritos trotskistas estrangeiros. A direita, feliz, aplaudia em delírio! A família comunista sangrava e dividia-se sem pena nem glória em troca de… nada.
Isso levou a que Iván Márquez, principal líder insurgente (que em Agosto de 2017 ficou em primeiro lugar nas votações da nova organização, com 888 votos, ao passo que Rodrigo Londoño Echeverri [“Timoléon Jiménez”, “Timochenko”] ficou em quinto lugar, abaixo inclusive dos votos obtidos por Jesús Santrich), escrevesse uma carta pública intitulada “Aos guerrilheiros nos ETCR [Espacios Territoriales de Capacitación y Reincorporación] e a todos os colombianos”, que se pode consultar no link: https://www.lahaine.org/mundo.php/a-los-guerrilleros-en-los (publicada na web em 21/Maio/2019). Nela faz uma autocrítica pública pela entrega de armas ao estado colombiano antes de este concretizar o prometido.
Em lugar de ler com humildade o apelo, refletir em conjunto, assumir debilidades e pensar um futuro plano coletivo para tentar reconstruir – nas novas condições – o politicamente perdido, a carta pública de Iván Márquez foi respondida instantaneamente por Rodrigo Londoño, o qual “decretou” que Iván Márquez… era separado das FARC. A decisão de Londoño foi aplaudida por toda a direita e pelos meios de comunicação monopolistas, ameaçando os dirigentes políticos, ex-guerrilheiros, perante um eventual regresso à luta.
Cumprido o objetivo, Santrich é posto em liberdade. Os Estados Unidos e o narco estado colombiano já haviam obtido o que queriam.
Refletindo “A partir de um obscuro rincão do mundo”
Há meio século o velho professor marxista Rodolfo Puiggrós escreveu que, como nós os argentinos não conseguimos tomar o poder e fazer nossa própria revolução socialista, vamos pelo mundo a inspecionar revoluções alheias. Essa aguda ironia de Puiggrós, lúcida e sábia, acompanha-me desde a primeira vez que a li. É um chamado à humildade. Um bem escasso na nossa esquerda. Não obstante, respeitando as decisões políticas de cada país, ao menos pode-se opinar.
Acreditamos que as únicas opções revolucionárias não são as que se autodenominam exclusivamente “PC”. Muita água correu sob a ponte desde a Conferência Comunista de 1929 e da outra, ainda maior, de 1960 (“de partidos comunistas e operários”), para mencionar apenas duas.
Se deixarmos de lado as denominações e as autoproclamações, onde está hoje representado o movimento revolucionário latino-americano? A resposta não é categórica nem matemática. Está no espaço dos “PC”, mas também em outros espaços politicamente contíguos, que muitas vezes foram formados em polêmicas com os “PC”.
Também existem outras coordenações, não denominadas exclusivamente “PC”, mas que implicitamente assumem essa cultura, como o Movimento Continental Bolivariano (MCB), onde o marxismo e a herança de Lenin se entrecruzam com as histórias de luta pela independência (neste caso simbolizadas na figura de Simón Bolívar, ainda que também seria preciso acrescentar Che Guevara). Não será hora de revitalizá-lo e ampliá-lo?
E em paralelo existem também movimentos que se nutrem do marxismo, entrecruzando-o com o indianismo revolucionário (como no caso da Bolívia e de Chiapas), ou também com a teologia da libertação, de inspiração marxista e cristã (como é o caso do Brasil e de alguns países centro-americanos).
Em todos estes casos e espaços, uma das chaves centrais para enfrentar os desafios pendentes é assumir uma posição internacionalista que não dependa de “capitais” nem “vaticanos” ou “mecas” ideológicas, seja Moscou, Pequim, Havana, Paris, Atenas, etc.
A discussão entre reformismo e revolução tornou-se mais complexa. Cinquenta anos de guerra civil só para alcançar a paz? Não estava na agenda a transformação social, a tomada do poder, a revolução? Quem tiver visto, pelo menos na web, algum vídeo do velho Manuel Marulanda sabe perfeitamente o que o líder insurgente com mais anos de insurgência em todo o continente (pois começou inclusive antes de Fidel) repetiu mil vezes: “Que ninguém se confunda. Nós lutamos pelo poder. Esse é o melhor sonho e o maior que sonhámos: o poder” (pode-se procurar no YouTube ou em outras plataformas da web). Enquanto diz isto, o velho líder colombiano sorri diante da câmara.
O que talvez fosse preciso perguntar e explicar é o desarmamento ideológico, anterior a todo desarmamento político ou militar. Como e por que razões foi levado a cabo? Como poderia ser revertido? Ainda que importantíssima, talvez a questão não seja em que momento se realizou “o abandono das armas” e sim as razões pelas quais foi tomada semelhante decisão política.
Tampouco é determinante se no cone sul do continente se postula unicamente a luta pela democracia e o progressismo, deixando o socialismo para um horizonte já indistinguível no tempo e no espaço. O problema é que voltou à tona da muita antiga cultura da “frente democrática”. Aquelas velhas teses de Dimitrov, mas de uma maneira muitíssimo mais light e descafeinada.
Porque uma coisa é que, numa conjuntura determinada, numa situação concreta, não haja forças suficientes para postular a tomada do poder e o socialismo e algo totalmente diferente é que esse projeto seja arquivado definitivamente e seja abandonado para a eternidade. Recordamos quando o jovem Hugo Chávez disse com enorme lucidez e valentia política: “Fracassamos… por agora “. Outra seria a história deste continente se houvesse dito: “Fracassámos”. E ponto.
Na nossa modesta opinião, não se trata de voltar à nostalgia, de vestir uma camiseta com a sigla CCCP (URSS), como costumam fazer alguns jovens que cultivam a moda “retro”. Tão pouco se trata de continuar a girar em torno de se Trotsky reprimiu anarquistas no Kronstadt e se Stalin por sua vez assassinou Trotsky e se por sua vez Kruschev traiu Stalin voltando-se para o pacifismo, redobrado até o paroxismo pelo eurocomunismo e assim por diante. Não. Definitivamente não.
O que se trata é de abandonar a síndrome do Muro de Berlim. Recuperar a ofensiva ideológica. Ter os pés na terra e não cair na dupla moral de proclamar palavras de ordem ultrarradicais mantendo uma prática quotidiana ultrarreformista. Sabemos que a conjuntura não atua a nosso favor. Mas não abandonemos a perspectiva revolucionária.
Se num contexto de contrainsurgência global as organizações marxistas revolucionárias têm de fazer alianças com forças que não são anticapitalistas, será preciso ter flexibilidade. Os movimentos de libertação nacional (recordemos o exemplo vietnamita, para não mencionar outros mais próximos) assim o exigiram. Mas isso não implica diluir-se, apagar a própria identidade, carecer de uma estratégia própria nem abandonar para sempre o sonho da revolução socialista.
“Tudo é ilusão, menos o poder”, escreveu Lenin certa vez. Mariátegui, Mella e Farabundo Martí propuseram [alcançar] o poder, inclusive quando não puderam concretizá-lo. Fidel, o Che, Marulanda, Marighella, etc continuaram esse caminho. Outros e outras, que não se definiram dentro da cultura “PC” (como Robi Santucho, Raúl Sendic, Miguel Enriquez, Carlos Fonseca, Roque Dalton, Camilo Torres, etc) na prática… deram a vida pela revolução e o comunismo. Chamaram-se como se chamaram. Suas memórias, que são as nossas, merecem muito mais que ir a reboque da burguesia.
30/Maio/2019
[NR] Pode ser descarregado em resistir.info/livros/livros.html
[*] Professor da Universidade de Buenos Aires, onde coordena a Cátedra Che Guevara.
O original encontra-se em www.lahaine.org/mundo.php/el-fantasma-comunista-en-su
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/