A crise tem nome: capitalismo
A confiança no capitalismo está diminuindo, mesmo assim, onde estão as alternativas? Rainer Mausfeld, professor na universidade de Kiel na Alemanha acaba de lançar mais um livro sobre a reciprocidade entre Medo e Poder.
Artigo escrito por Rüdiger Göbel no jornal do Partido Comunista Alemão Unsere Zeit. Tradução exclusiva para o PCB.
O jornal conservador Frankfurter Allgemeine Zeitung soa o alarme: “Alemães duvidam do capitalismo”. A agência americana de relações públicas Edelmann apresentou o seu “Trust Barometer”. Segundo essa pesquisa, que foi realizada em 28 países, apenas 12,5% dos alemães acreditam que podem tirar proveito de um crescimento econômico. Nem mesmo 25% olham com otimismo para seu futuro financeiro. 55% são da opinião de que o capitalismo, na sua aparência atual, mais prejudica que ajuda.
Os alemães estão bem na média dos outros 27 países. A crítica ao capitalismo cresce em todo lugar e ultrapassa a barreira do nível de rendimento. Também é marcante a desconfiança em relação aos “super ricos”. Mas se o capitalismo e os capitalistas passam a ser vistos sem ilusões, por que a resistência ao sistema não fica maior? Onde fica a crítica ao sistema como um todo e a oposição ativa? De onde vem o medo de levantar a voz e exigir mudanças?
Repostas a essas perguntas oferece o professor Rainer Mausfeld da Universidade de Kiel, na qual ele dirigiu a faculdade de pesquisa cognitiva e perceptiva até sua aposentadoria. Segundo ele, a destruição psicológica deixada pelo neoliberalismo é gigantesca. “O capitalismo é na sua constituição ligado à geração de medo. A ordem capitalista da propriedade privada obriga a todos que não disponham de capital a trabalhar na propriedade alheia e transformar assim seu trabalho em salário”, diz o professor Rainer em seu mais novo livro Medo e Poder.
Se trabalho no capitalismo é impensável sem medo, então o sistema gera com isso de forma estrutural a matéria-prima que – tanto diretamente como através de seus resultados – se deixa explorar de forma manipulativa para os fins do Poder.
O Professor Rainer cita ainda três técnicas de dominação ligadas à geração de medo que ajudam a evitar que o abismo entre a retórica democrática e a realidade capitalista seja reconhecido publicamente. A primeira delas é a desformalização do direito. Ela se dá na utilização de alguns termos do direito público como, por exemplo, a palavra “suspeito” de forma indiscriminada, a fim de que decisões sobre um fato sejam determinadas não pelo enquadramento jurídico específico, mas de acordo com a interpretação do agente público diante do caso concreto. A prisão por três meses de três jovens ao passarem pela autoestrada nas imediações da cidade de Biarritz, onde havia um encontro do G7, sob a acusação de que eles eram “perigosos”, é um exemplo disso.
O Professor Rainer destaca: “O direito democrático exige segurança e clareza jurídica através de definições formuladas de forma específica e de enquadramentos com base na lei. A desformalização do direito faz com que – principalmente no campo das atividades onde a discordância é articulada – o ato público em nome do Estado se torne imprevisível e incalculável. O medo gerado por essa fórmula é politicamente desejado“. No livro “Por que as ovelhas se calam” o autor aborda esse mecanismo de um ponto de vista mais global. “Uma forma especial de legalização da criminalidade organizada da classe proprietária com pesadas consequências é o sistema do direito comercial internacional e o estabelecimento de uma justiça paralela representada por tribunais que se tornam independentes dos estados democráticos de direito. Este desenvolvimento leva a uma refeudalização, na qual o direito é retirado do processo democrático e reprivatizado de forma a que os atores econômicos mais fortes se livram do direito público e entregam a judicialização de seus interesses a tribunais com arcabouço jurídico por eles mesmos elaborado.
Um outro instrumento para a geração do medo é a ideologia da meritocracia. Meritocracia considera que todos aqueles são legitimados ao exercicio do poder que conquistaram esse mérito com o esforço, com trabalho. “Na democracia capitalista a meritocracia serve para justificar o status quo da dominação dos donos e leva aqueles que não possuem nada à aceitação enquanto lhes é sugerido a esperança de que, com o devido esforço, eles também terão seu status social melhorado. Além disso, a ideologia da sociedade do resultado, na qual o status social depende do esforço e trabalho, é, segundo o autor, tão profundamente ancorada em nossa cultura que nós nem a percebemos como tal. Escolas, universidades e todo o sistema de formação social servem para espalhá-la e são organizadas com base nela. Ela faz com que as pessoas menos privilegiadas busquem em si mesmas a origem de seus problemas sociais e se sintam por eles responsáveis. Com isso, a meritocracia gera na maior parte da população um sentimento de vergonha e fracasso.
Por fim, o Professor Rainer aborda a geração do medo em si. Segundo ele o medo é gerado principalmente através da propaganda de um suposto perigo. Como exemplo ele cita a construção do inimigo Rússia na Europa por parte dos Estados Unidos e da OTAN. Para isso foram construidos inúmeros “centros estratégicos de comunicação”, nos quais “métodos adequados para o manejamento de percepções” e para o “controle da narrativa” são desenvolvidos e por meio das mídias usados como base de “desinformação direcionada”. Como exemplo, o autor cita a “Integrity iniciative”. Trata-se de uma rede internacional com sede na Grã-Bretanha cuja função é influenciar a opinião pública e os “tomadores de decisão“. Essa empresa é financiada pelos ministérios das relações exteriores dos EUA, da Grã-Bretanha e pela OTAN. Sob o lema “defending democracy against desinformation” ela espalha por toda a Europa campanhas midiáticas contra a Rússia.
É possível observar também como eles trabalham ao se analisar como eles trataram os protestos dos Coletes Amarelos na França. Através da rotulação dos protestos sociais de massa como exagerados, violentos e de direita mirava-se à ausência de solidariedade e a um banimento midiático do movimento. Imaginemos o que aconteceria se na Rússia dezenas de pessoas perdessem olhos por tiros de balas de borracha ou tivessem mãos amputadas por explosões de cápsulas de gás lacrimogênio…
O Professor Rainer é categórico: “Democracia não se deixa combinar com capitalismo. Por motivos estruturais é impossível que em uma democracia capitalista as três promessas democráticas – são elas: autonomia, solução pacífica para problemas internos e externos e liberdade de medos sociais – sejam cumpridas. É necessário que nós nos libertemos da aparente falta de alternativa frente às democracias capitalistas”. Isso não é nada fácil. “Hoje parece mais simples imaginar o fim do planeta do que o fim do capitalismo”, diz o professor citando o marxista americano Frederic Jameson.
“Deve o capitalismo com um todo ser posto em questão?”, perguntou o Frankfurter Allgemeine Zeitung. 44% dos leitores do jornal conservador responderam: “Sim, o sistema todo deve ser posto em questão“. Resta-nos agora o grande desafio de responder acertadamente a essa questão.