Kerala, o Estado vermelho da Índia

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REVISTA JACOBIN BRASIL

Por Vinaya Raghavan

Tradução: Victor Marques

A região administrada pelos comunistas na Índia recebeu elogios até do Washington Post e do New York Times por sua resposta ao coronavírus. O segredo? Um governo que, com o lema “distância física, unidade social”, coloca o interesse público acima do lucro privado.

“O que Kerala pensa hoje, a Índia deve pensar amanhã!” exclamou o âncora de notícias indiano Rajdeep Sardesai durante um programa recente na televisão nacional. Kerala, uma estreita faixa de terra entre o Mar Arábico e o Gates Ocidentais (uma cordilheira no oeste da península indiana), tornou-se um foco frequente de atenção desde que a pandemia de coronavírus tomou conta de grande parte do mundo. Na semana passada, o Washington Post publicou uma matéria intitulada “Como o Estado Comunista da Índia achatou a curva”.

Kerala opera como uma democracia socialista, seu governo tem raízes em fortes movimentos da classe trabalhadora e essa história definiu a natureza de sua resposta. O ministro-chefe Pinarayi Vijayan e o ministro da Saúde K. K. Shylaja, ambos membros do Partido Comunista da Índia Marxista (CPIM), têm enfatizado a necessidade de solidariedade social em resposta à crise – algo que contrasta fortemente com a retórica xenofóbica e divisista do governo Modi. O governo regional de Kerala pode se apoiar em uma sociedade civil bem desenvolvida e em organizações governamentais descentralizadas e eficazes – até agora sua abordagem parece estar funcionando.

Como observou o Washington Post, Kerala foi o primeiro Estado indiano a ter um caso confirmado de coronavírus. Mas, em abril, suas taxas de infecção passaram a diminuir 30% semana após semana. Não por acaso. Nas últimas décadas, Kerala investiu enormemente em educação e saúde pública – o resultado é que a região é a líder na Índia tanto em alfabetização quanto em índices de saúde. Combinado com uma resposta rápida focada em “testagem agressiva, rastreamento intenso de contatos, quarentena mais longa e construção de milhares de abrigos para trabalhadores migrantes”, isso garantiu à Kerala estar em uma condição elogiada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma base sólida para responder a essa histórica pandemia.

Outro artigo recente, do New York Times, descreveu o processo pelo qual Kerala foi bem sucedida em lidar com o surto, enquanto muitos Estados ocidentais, bem mais ricos e desenvolvidos, ficaram para trás:

“Em Kerala, no sul [da Índia], as autoridades usaram a tecnologia GPS, imagens de circuito de TV e registros de telefones celulares para rastrear os movimentos de uma família indiana que acreditava-se estar entre os primeiros infectados. A família retornou da Itália no final de fevereiro e, em poucos dias, as equipes médicas se espalharam por todos os lugares que haviam visitado, incluindo bancos, restaurantes e igrejas, e rapidamente colocaram em quarentena praticamente todo mundo com quem haviam entrado em contato – quase mil pessoas”.

Quando os jornais favoritos da elite dominante dos Estados Unidos elogiam um governo de esquerda, você sabe que é hora de prestar atenção. Mas a história em Kerala é muito mais profunda do que apenas uma resposta rápida à pandemia.

O histórico socialista de Kerala
O movimento socialista em Kerala, como muitos outros movimentos da classe trabalhadora, se desenvolveu originalmente fora do sistema político, durante a resistência ao domínio imperial britânico. O Partido Comunista desempenhou um papel vital na mobilização dos trabalhadores pobres e, apesar ser obrigado a operar na clandestinidade, foi fundamental na organização de uma série de revoltas camponesas contra autoridades opressivas.

Depois que a proibição legal contra atividades comunistas foi abolida em 1942, o partido conseguiu obter registro formal e o direito de disputar eleições. O sucesso eleitoral veio pouco depois, com a conquista de um dos primeiros governos comunistas democraticamente eleito no mundo, e a implementação de uma série de reformas sociais responsáveis por transformar Kerala um dos Estados mais pobres da Índia pós-colonial naquele com a maior taxa de alfabetização, maior igualdade de gênero, maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e maior expectativa de vida.

Uma das mudanças mais abrangentes e controversas promulgadas pelo Partido Comunista foi o seu programa de reforma agrária. Após quase uma década de batalhas legislativas e legais, tanto contra os senhores de terras quanto contra com o governo nacional liderado pelo Partido do Congresso, o governo de Kerala aprova em 1969 a Lei da Reforma Agrária.

A terra foi redistribuída sob o lema “terra para quem nela trabalha”, acabando rapidamente com o sistema feudal agrário que ainda pesava sobre a maioria da população. Uma ênfase subsequente na educação capacitou a população a desenvolver setores importantes da sociedade, incluindo a saúde. Salas de leitura, bibliotecas de aldeias e grupos de debate foram criados e consolidados nas aldeias, proporcionando educação política. Essas instituições constituíram parte integrante do modo de vida de muitas pessoas nas vilas de Kerala.

Distância física, unidade social
A Frente Democrática de Esquerda, um governo de coalizão liderado pelo ministro Pinarayi Vijayan, deu exemplos para o restante da Índia em gestão de crises, com ação pública rápida e positiva, tanto durante as sérias inundações durante a estação de chuvas em 2018 quanto na atual pandemia. O ministro-chefe, que em tempos mais normais raramente aparece na mídia, passou a se dirigir diariamente ao povo de Kerala, dando entrevistas coletivas que têm sido elogiadas pela apresentação concisa da abordagem do governo em lidar com a crise.

Suas palavras, com uma mensagem cuidadosa de “distância física, unidade social”, construída para enfatizar a necessidade de garantir que ninguém se sinta sozinho, trazem um reconforto necessário ao povo de Kerala. Psicólogos e profissionais de saúde mental foram mobilizados para atender por telefone qualquer um em stress psíquico, disponíveis para falar com pessoas que estão isoladas e com necessidade de apoio nesses tempos difíceis.

A ministra da saúde de Kerala, K. K. Shylaja, aprendeu com a experiência da crise do vírus Nipah em 2018 e agiu rapidamente, com as medidas contra a COVID-19 já a partir de janeiro, formando comitês de enfrentamento à pandemia e salas de controle por todo o Estado.

Sua campanha de “quebrar a cadeia” foi amplamente divulgada, e criaram-se quiosques para incentivar as pessoas a usarem desinfetantes para as mãos e lavar as mãos com água e sabão antes de entrar em qualquer edifício. Também foram tomadas medidas para reduzir a disseminação do contágio comunitário, liberando mapas de rotas anônimas de pessoas infectadas através dos meios de comunicação tanto tradicionais quanto alternativos.

O rastreamento de contatos permitiu que os profissionais de saúde isolassem proativamente, e preventivamente, qualquer pessoa que pudesse estar infectada, e as pessoas que retornavam de fora do país foram solicitadas a ficar em quarentena por 28 dias. O governo também usou seu aplicativo de telefone, o GoK Direct, para disseminar informações como mapas de rotas de pessoas infectadas, informações sobre tratamento e outras formas de apoio e aconselhamento.

Em um movimento sem precedentes, o governo expropriou um hospital privado recentemente fechado no distrito de Kannur, convertendo-o como uma instalação dedicada à COVID-19. Da mesma forma, o governo assumiu o controle de prédios vazios, sem uso social, para construir centros de atendimento, usados para isolar e colocar em quarentena pessoas infectadas e aquelas sob suspeitas, mas que ainda não apresentaram sintomas.

Como uma democracia socialista responde à crise
Como a testagem rápido ainda não é viável em larga escala, o governo de Kerala concentrou-se em seguir as recomendações da OMS de testar “agressivamente” sempre que possível. Isso significa testar não apenas todos aqueles com sintomas, mas aqueles que tiveram contato com pessoas infectadas – é o Estado que mais testa proporcionalmente em toda a Índia.

As organizações da sociedade civil, juntamente com os trabalhadores da ASHA (ativistas credenciados de saúde social – agentes comunitários de saúde para as aldeias rurais da Índia), estão se certificando de que as pessoas infectadas continuem se autoisolando, a fim de interromper a propagação comunitária. As brigadas cooperativas da Kudumbasheree, um programa de erradicação da pobreza e empoderamento das mulheres impulsionado pelo governo de Kerala, se uniu à DYFI (Fundação da Juventude Democrática da Índia, historicamente próxima ao Partido Comunista), para produzir desinfetante para as mãos e máscaras, enfrentando a escassez desses produtos sofridas em várias regiões.

A relativa facilidade com a qual os meios de produção podem ser reconvertidos e direcionados para outros propósitos pelos órgãos do governo local tem se mostrado uma vantagem estrutural para uma democracia socialista como Kerala, especialmente em comparação com às dificuldades enfrentadas por vários governos ocidentais. A polícia de Kerala, supervisionada por autoridades de saúde, também está realizando testes de temperatura nas fronteiras interestaduais e distritais, bem como nas estações ferroviárias, aeroportos e estações de ônibus.

Os atores centrais na implementação das medidas governamentais são os órgãos autônomos, descentralizados, de Kerala: os panchayats (conselhos de vilas), as municipalidades e as guildas. Em contraste com muitos países ocidentais que viram a erosão das organizações comunitárias e do poder dos órgãos de governo, Kerala construiu fortes órgãos locais que contribuíram de maneira significativa para sua resposta à crise – como identificar idosos, vulneráveis e pessoas com deficiência para garantir que tenham acesso a alimentos e itens essenciais.

A Federação Democrática da Juventude criou um exército de voluntários que está ajudando esses órgãos populares locais com a entrega de alimentos, provenientes de cozinhas comunitárias criadas pela Kudumbasheree por todo o Estado. O ministro-chefe foi categórico ao afirmar que ninguém em Kerala deve passar fome (Pinarayi Vijayan: “Kerala tomou amplas medidas para garantir que ninguém passará fome durante o lockdown. Essas medidas serão implementadas por meio do auto-governo local, comitês de defesa e brigadas de voluntários”), um sentimento ecoado pelo ministro da Saúde no parlamento.

Para esse fim, o Estado anunciou um pacote de ajuda de 20.000 crores de INR (equivalente a 2,24 bilhões libras), incluindo empréstimos, distribuição de alimentos, refeições subsidiadas e um programa de garantia de emprego. Dois meses em pagamentos de pensão da previdência social antecipados aos idosos no início de abril, com o Tesouro se preparando para garantir que os pagamentos possam ser feitos mantendo o distanciamento físico, mobilizando redes cooperativas para a distribuição, e com voluntários atuando para entregar os pagamentos àqueles que não podem deixar suas casas.

O setor informal de trabalho, do qual os trabalhadores migrantes são uma grande fração, não foi deixado de lado. Em uma Era de xenofobia crescente, o governo instou seu povo a tratar esses trabalhadores com hospitalidade e acolhimento, referindo-se a eles como athithi thozhhilalikal, que significa “trabalhadores convidados”.

Mais de 4.600 centros de assistência foram criados para acolher os mais 100.000 trabalhadores migrantes, juntamente com locais para desabrigados e necessitados. Instituições educacionais, como escolas e faculdades, foram convertidas em centros de atendimento, e as pessoas alojadas lá recebem itens essenciais, como alimentos, máscaras, sabonetes e desinfetantes.

As campanhas de conscientização sobre vírus estão sendo realizadas por voluntários que podem falar os idiomas nativos dos trabalhadores convidados. Agora que as ruas estão vazias e as lojas fechadas, o governo requisitou aos órgãos governamentais locais para cuidar de cães e macacos de rua, que em tempos normais são alimentados por moradores locais nas ruas e templos.

Só o tempo dirá se o sistema de saúde de Kerala será capaz de lidar com o aumento de casos, em uma situação de escassez de laboratórios e kits de teste. Há, no entanto, um sentimento de esperança de que o Estado e o povo possam superar a pandemia juntos, colocando as necessidades imediatas da população acima dos indicadores econômicos.

Vinaya Raghavan é uma ativista de Kerala que está vivendo temporariamente na Inglaterra.

Como Kerala, o Estado vermelho da Índia, enfrenta o coronavírus

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