A pandemia, as empresas e seus «parceiros»
Créditos / El Confidencial
AbrilAbril
Por António Ribeiro Domingo
O marketing faz questão de representar o entregador como um indivíduo de alegria contagiante e completamente comprometido com a empresa. Este é, na realidade, quem menos importa no modelo de negócio.
A inovação é, sem sombra de dúvida, um dos principais objetivos das empresas no quadro econômico atual. A Steve Jobs, por exemplo, é atribuída a frase: «a inovação é o que distingue um líder de um seguidor». Este chavão, tão vulgar como outro qualquer, pode servir para qualquer espectro da vida humana, é certo. Contudo, neste caso particular, o presumível autor procura salientar a importância das empresas concentrar as suas energias em identificar e perseguir novas oportunidades de negócio e crescimento.
A procura constante de vetores de crescimento levou, ao longo de 2019, muitas das empresas a focar as suas estratégias de inovação e crescimento no mercado digital, vulgarmente chamado de e-commerce. Assim, vimos aparecer no mercado um grande conjunto de empresas focadas em desenvolver este canal de distribuição.
Em dezembro do ano passado a Statista, um portal de estatísticas alemão que detém uma das mais extensas bases de dados estatísticos do mundo, salientava a importância que este setor viria a ganhar na economia. Citado pela consultora Minsait, esta plataforma prévia, na altura, um volume de negócios superior a 3670 milhões de euros só em Portugal, até 2023.
Fatores como a facilidade e a segurança nos métodos de pagamento, a automatização presente neste negócio, proveniente das várias intersecções com consumidores, e a inesgotável potencialidade da inteligência artificial para oferecer uma individualização da oferta orientada e adaptada ao perfil de cada cliente, eram razões de peso para se acreditar na enorme potencialidade de futuro do comércio digital.
Cumulativamente, no início deste ano, fruto do surto da Covid-19, que se implantou na Europa e no mundo, todas as empresas viram aparecer um motivo bem mais forte para a aposta neste canal específico. O isolamento imposto às populações veio trazer uma razão de peso para acelerar todo este processo, aumentando de forma muito mais drástica a necessidade e a potencialidade deste tipo de canal de distribuição.
Em Portugal, a pandemia, segundo um estudo do Group M elaborado em meados de abril, acelerou este processo e gerou um crescimento do e-commerce de entre 40% a 60%, face aos valores do ano passado.
O impacto da Covid-19 criou uma gigantesca oportunidade, não só em setores como o comércio alimentar & retalho (44% de crescimento face aos números pré Covid-19) mas também noutros setores como o Entretenimento, Cultura e Subscrições (57% de aumento) e Restauração, Food Delivery e Take Away (53% de aumento). É a este último que iremos dar destaque aqui.
Cadeias como a Uber Eats e a Glovo, duas das mais importantes empresas neste setor, registraram em março deste ano crescimentos de 59% e de 20%, respectivamente. Tudo alicerçado no impacto provocado pela Covid-19 nos hábitos de consumo dos portugueses.
É caso para dizer que, enquanto uns choram, os outros vendem lenços de papel… Nada de novo. Numa época difícil, em que as pessoas se veem de um momento para o outro privadas da sua normalidade, é inegável o importante papel destes serviços para assegurar as necessidades de todos nós.
Ao longo da pandemia, estas empresas juntaram-se ao rol de muitas outras que, na ânsia de serem percebidas pelo consumidor como agentes solidários, procuraram campanhas para reduzir custos de entrega e fizeram questão de nos recordar que até nos momentos difíceis poderemos sempre contar com elas.
Mas, na prática, o que oferecem estas empresas? Basicamente, procuram ligar vendedores e compradores estabelecendo de uma forma ágil uma conexão rápida entre a oferta e a procura. O objetivo delas é ter o maior número de entidades registradas na sua plataforma. Partem do princípio de que, quanto maior for o volume de informação disponível, mais fácil será controlar este canal de distribuição e mais difícil será estar nele sem a ajuda destas empresas.
A logística, os entregadores que fazem a ligação física entre estas duas entidades, não é, nem de longe, uma das suas principais preocupações. Mesmo que os seus departamentos de marketing nos façam questão de representar o entregador como um indivíduo de alegria contagiante e completamente comprometido com a empresa. Este é, na realidade, quem menos importa no seu modelo de negócio.
Parece quase idiota acreditar que, no modelo de negócio de e-commerce, em que a logística assume um papel fundamental, as principais empresas do setor em Portugal e no mundo tenham conseguido prescindir dela.
No entanto, basta fazer uma pesquisa rápida nos sites destas empresas para entender facilmente a estratégia utilizada. Para começar, o entregador não é um trabalhador da empresa, é um parceiro de negócio. Alguém com tempo livre que está disponível para fazer algum dinheiro de uma forma completamente descomprometida.
O «parceiro» faz o seu registo, compra o seu material de trabalho (moto e mochila) e embarca numa bonita aventura em que, apesar de ser patrão dele próprio, está completamente à mercê dos ditames das multinacionais detentoras da informação. Vale a pena lembrar que não estamos falando apenas de bens alimentares. Hoje em dia, estas plataformas oferecem a hipótese de se adquirir praticamente tudo aquilo que se pretende, como artigos farmacêuticos, exigindo destes estafetas uma preparação e capacidade de resposta cada vez maior.
A empresa fica isenta de lidar com os temas anexos ao seu dispositivo logístico, ficando a cargo de cada um dos seus ditos parceiros a responsabilidade de lidar com as suas próprias condições de trabalho e os custos de manutenção dos seus equipamentos, entre outras questões, inclusive uma essencial: a incerteza de quais serão os seus rendimentos no final da jornada de trabalho – informação sempre omissa no seu log, no site da empresa.
Parece quase anedótico o trabalhador comprar o seu material de trabalho (muitas vezes a prestações), sujeitar-se a trabalhar quando e onde for necessário e não saber quanto irá ganhar no final do mês. Com esta estratégia não se aplica ao trabalhador, seguramente, a máxima de que inovação gera crescimento, tão apregoada pelas empresas.
Vários foram já os intentos, gorados é certo, de procurar elevar estes parceiros à justa condição de trabalhadores e forçar estas empresas a tomar as suas responsabilidades para com o seu dispositivo logístico.
É preocupante a condição destes trabalhadores, tendo em conta os nefastos impactos financeiros que a Covid-19 trouxe ao nível da economia. Recentemente, a Comissão Europeia estimou que o desemprego em Portugal subiu para 9,7% em 2020, valores acima da média europeia.
Em 2007, a jornalista Naomi Klein defendeu, no livro A Doutrina do Choque – A ascensão do capitalismo do desastre, que medidas de foro capitalista acabam por, muitas vezes, se implementar na sociedade não pelo reconhecimento geral do seu caráter benéfico para as populações, mas fruto de instabilidade social provocada por desastres de grande magnitude.
Com os números de desemprego subindo e com a crescente expansão deste tipo de empresas, poderemos num futuro próximo vir a assistir a um fenômeno em que o serviço de entrega deixe de ser um trabalho extra e temporário, assumindo contornos de trabalho a tempo inteiro. Nesse caso, estes trabalhadores serão impulsionados a encontrar nestas plataformas uma fonte de rendimento, acabando por aceitar todas as condições impostas sem contrapor os seus direitos.
Num setor já tão desajustado como o da logística, a precarização do setor de transportes do e-commerce representa mais um duro ataque aos trabalhadores da logística, que são completamente alienados da cadeia de valor e tratados como um mero ator secundário, sem relevo suficiente para fazer valer a sua importância estratégica e os seus direitos. Até mesmo num negócio em expansão, onde aparentemente a sua importância seria inegável, como é o caso do comércio eletrônico.
Quando se fala em inovação, ainda mais em tempo de crise, é essencial que ela seja transversal a todos os setores, dela se beneficiem todas as categorias e não se descarte nenhum agente por se considerar incômodo ou desvalorizável.
António Ribeiro é gestor de logística