Economia dos EUA atolada na mais-valia absoluta
CRÍTICA DA ECONOMIA
por José Martins e Alice Teixeira
Os governos e classes proprietárias do G7 (grupo das sete maiores economias do mundo) nunca estiveram tão preocupados com o desemprego da classe operária como na atual quadratura do ciclo.
Além dos fantasiosos discursos contra as desigualdades e a favor dos pobres desempregados, estão na verdade preocupados em como este desemprego pode ou não achatar os lucros dos capitalistas.
Não menos importante, os capitalistas estadunidenses e seu governo estão preocupados em como a perda de vitalidade da maior economia do mundo pode levar a conflitos sociais que ameaçam os próprios fundamentos da propriedade privada em geral e do capital.
Nos EUA, maior potência econômica mundial, essa preocupação com o futuro imediato da acumulação do capital aparece de forma mais dramática que nas demais economias dominantes do sistema.
Nesta semana, discursando no conhecido Economic Club of New York, o presidente do Fed, banco central dos EUA, Jerome Powel, repetiu mais uma vez suas ideias sobre os movimentos atuais do mercado de trabalho.
Essas ideias, que mudaram a histórica política do Fed para enfrentar o problema do desemprego e dos preços – preocupando-se agora muito mais com a recuperação do emprego do que com a inflação – batem de frente com gerações de sabedoria econômica convencional. E prepara o terreno não apenas para a ação do Fed na atual crise econômica como também para a voluntariosa política fiscal de Joe Biden, presidente dos EUA.
Parece que o novo Fed de Jerome Powel e a nova equipe econômica de Joe Biden comandada por Janet Yellen não estão acreditando que os altos e baixos do ciclo econômico atual podem ser entendidos como meras e inofensivas “flutuações” em uma tendência de crescimento contínuo, como em todo o período pós-guerra, e como continuam acreditando os economistas em geral.
As cruciais particularidades do atual período de crise ou, o que a flutuação atual tem que as outras não tiveram no período pós-guerra. Esse é o ponto mais importante de toda esta discussão que agita Wall Street e adjacências.
Como responsável pela política do Banco Central do planeta, Jerome Powel procura desesperadamente evitar que o elevado desemprego atual da força de trabalho nos EUA se transforme em algo permanente, o que levaria a economia para o abismo. Os economistas não concordam com este diagnóstico de um estado estacionário em curso.
Powel estabelece para o Fed, junto com o Tesouro de Janet Yellen, uma economia de guerra para evitar que isso aconteça. Gastos volumosos e nada convencionais do lado do Tesouro e expansão recorde da moeda e do crédito para os capitalistas privados com taxas de juros básicas próximas (se possível levemente acima) de zero.
Nenhuma precaução nesta nova política fiscal e monetária dos EUA com os riscos de déficits monumentais no orçamento do governo. Nenhuma preocupação com possível descontrole dos preços (hiperinflação) no futuro próximo. Os economistas só se preocupam com isso.
O que Powel e Yellen (juntos com Biden, of course) têm em mente é que há algo mais importante em jogo do que imagina a vã economia vulgar. E estão certos.
Estão preocupados, fundamentalmente, com a ameaça de “japonização” da maior economia do planeta: deflação dos preços, dos investimentos e tendência ao estado estacionário na produção, particularmente na indústria de manufaturas.
A taxa de mais-valia (ou de produtividade) da força de trabalho está no centro desta discussão. Aparece de início no espaço mais superficial do chamado mercado de trabalho e suas imprecisas variações do emprego e desemprego. É só neste nível que os economistas focam suas observações. Não vão além disso.
O que Powel e Yellen observam não é nada promissor para o futuro da maior e mais moderna economia do mundo. De acordo com o Bureau of Labor Statistics (BLS, departamento do Trabalho dos EUA) há hoje 10.1 milhões de estadunidenses desempregados.
E isso tende a aumentar. Em seu discurso acima destacado, Jerome Powel alerta que a taxa de desemprego de 6.3% esconde situação mais grave, pois muitos trabalhadores pararam de buscar emprego. Somando estes casos de quem desistiu de procurar emprego ele calcula uma taxa real de desemprego de aproximadamente 10% da força de trabalho neste início de 2021.
Mas o mais grave está no corrosivo processo de desemprego nas indústrias de manufaturas, nas fábricas, coração do sistema de produção de capital. Segundo recente matéria da Bloomberg, após breve período de recuperação no ano passado, a folha de pagamento das fábricas dos EUA estagnou nos últimos meses e, em seguida, reverteu em janeiro.
Os capitalistas já cortaram 582.000 empregos nas fábricas só em 2020 e a tendência, segundo a pesquisa Bloomberg, é esse número aumentar ainda mais. Empresas como a Caterpillar Inc., uma das maiores fabricantes de máquinas do mundo, estão tentando fazer planos para o que permanece uma “incerta recuperação”. Os analistas de Wall Street não esperam que suas vendas voltem aos níveis anteriores à pandemia até pelo menos 2025.
A Caterpillar já começou as demissões de operários da produção. Relatório anual do governo para 2020 provavelmente mostrará que o emprego na empresa caiu pelo segundo ano consecutivo. A Caterpillar não respondeu imediatamente a um pedido de comentário da Bloomberg.
Não está claro quanto da capacidade industrial acumulada dos EUA será cortada. A produção industrial em dezembro foi 3.6% menor do que no ano anterior, com uso da capacidade 5.3 pontos percentuais abaixo da média de 1972-2019, de acordo com o Fed.
Muitos observadores mais atentos acreditam que está a caminho de se repetir um padrão visto em todas as recessões desde o pico de empregos na indústria em junho de 1979: uma redução estrutural no emprego, mesmo em meio a uma expansão sustentada da produção.
Esta reversão na estrutura do mercado de trabalho nos EUA é histórica. Coincide com o período da mais recente onda de globalização da produção de capital, aberto de forma mais clara a partir da crise cíclica com duplo mergulho em 1980 e 1982.
E, ao contrário do que imaginava e propagandeava a economia vulgar do desenvolvimento econômico, o que se verifica agora – quarenta anos depois do início da mais recente onda de globalização produtiva do capital – é que o movimento de generalização da produção baseada na mais-valia absoluta no mercado mundial se sobrepôs em grande medida ao desejado movimento de generalização da mais-valia relativa.
O sonho de um desenvolvimento econômico harmônico e virtuoso para todas as nações do mundo virou pesadelo. Esqueçam o desenvolvimento em um só país. Foi substituído pelo pesadelo de um mero crescimento econômico de baixa produtividade e elevadíssima pauperização das massas.
Mais importante ainda: este vírus da mais-valia absoluta, com seus baixos salários reais e baixa produtividade, invade inacreditavelmente o território e as indústrias das economias dominantes do sistema, onde predomina a mais-valia relativa. Com os EUA puxando a fila de Alemanha, Japão, França, Inglaterra, etc.
Uma paisagem social absolutamente nova nos últimos setenta e cinco anos: a pauperização absoluta, as favelas e a fome se propagam incontrolavelmente no interior das grandes metrópoles imperialistas do mundo.
É justamente neste processo histórico que o problema da queda da produtividade do trabalho transforma-se em uma questão de perda de vitalidade na outrora florescente indústria de manufaturas dos EUA.
A recuperação da vitalidade perdida torna-se então um problema de sobrevivência da economia e da sociedade capitalista estadunidense.
Biden e sua equipe estão bem cientes do perigo. Mesmo enquanto o presidente deseja apoio dos mais proeminentes capitalistas para seus planos de emergência – apresentados em uma reunião na Casa Branca com os principais executivos – ele planeja um papel maior para o governo nesta recuperação, com dinheiro para pesquisa e criação de demanda, por meio de programas de infraestrutura, políticas de aquisição, iniciativas de remanejamento e prioridades de longo prazo, incluindo mudanças climáticas.
Ao assinar uma ordem executiva em 25 de janeiro deste ano, para encorajar mais compras do governo federal de produtos feitos nos Estados Unidos, Biden rejeitou “a visão derrotista” de que os EUA não poderiam criar mais empregos na indústria. “Não acredito por um segundo que a vitalidade da manufatura americana é coisa do passado”, conclui o novo líder.
O presidente da United Steelworkers (Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Aço), Tom Conway, não está tão convencido com este brado heróico do novo presidente dos EUA. Na verdade, o sindicalista já está preocupado com uma “recuperação sem crescimento dos empregos”.
“Foi o que aconteceu em 2009”, diz Conway. “Veremos a produtividade diminuir muito, sem aumento significativo na força de trabalho”, e os funcionários restantes “trabalhando de 12 a 16 horas por dia por meses a fio”, ele teme.
Prolongamento da jornada e pagamento do salário abaixo do valor da força de trabalho lembra o quê? Acertou quem respondeu mais-valia absoluta.
Tem cheiro de mais-valia absoluta no ar na maior e mais sofisticada economia do mundo!
Esta afirmação de Conway remete o problema para um nível mais profundo da produção de capital nos EUA.
Vejamos a coisa mais de perto, além da superfície do mercado de trabalho.
Observemos as condições de consumo da força de trabalho no laboratório secreto da produção, ou seja, as partículas elementares que movem a produção de capital propriamente dita. Em 2020 a produção da indústria de bens duráveis dos EUA caiu 8.7%. A produtividade caiu 1.3%. As horas trabalhadas caíram 7.5%. A massa salarial horária real subiu 6.3%. Finalmente, a mais importante, o custo unitário do trabalho subiu vertiginosos 8.9%.
A queda anual na produção de 2020 foi a maior desde o desabamento de 15,3% em 2009. Do mesmo modo, o declínio de 7.5% das horas trabalhadas foi o maior desde o declínio de 15.5% de 2009.
Esmiuçemos um pouco mais essas partículas elementares da produção de capital na maior e mais sofisticada economia do planeta.
Nos números dos dois ciclos econômicos mais recentes (2009 e 2020) pode-se verificar como a baixa taxa de mais-valia (produtividade do trabalho) e o elevado custo unitário do trabalho (valor da força de trabalho) comandam e seguram como um freio de mão puxado o processo de produção do capital nos EUA.
Entre 2010, cravando a recuperação da crise do ciclo anterior, ocorreu uma excepcional elevação da produtividade (9%). Porém, nos anos posteriores, de expansão cíclica, até 2019, observa-se uma renitente estagnação.
Neste processo de baixa produtividade crônica aparece claramente, também, uma tendência de renitente elevação do custo unitário do trabalho. Com a notável exceção, novamente, de 2010.
Nos momentos mais críticos das duas crises esta elevação do custo unitário do trabalho se revela de forma mais dramática para o capital. Elevação de 6% em 2009 e, agora, de 8.9% em 2020. Evapora-se perigosamente a massa de mais-valia extorquida dos trabalhadores pelos capitalistas, a forma mais elementar de existência do capital.
O mais importante do processo é que estes movimentos de partículas elementares do capital mostram, junto com a massa, abruptas reduções da taxa de mais-valia na produção. Veremos em outra oportunidade como essa redução da massa de mais-valia retira da economia importante elemento que se antepõe à queda da taxa de lucro e alonga a fase de expansão do ciclo econômico.
Na fase da crise, mais do que a massa, a redução da taxa de exploração (de mais-valia) da classe operária deve ser imediatamente revertida, sem mais demora, para que ocorra uma recuperação na taxa geral de lucro que havia no período de expansão anterior (até o primeiro trimestre, no atual ciclo).
Entretanto, neste difícil processo político de elevação da taxa de mais-valia e de recuperação da taxa geral de lucro, é crucial a diminuição do valor da massa salarial horária da produção. Tanto em 2009 como em 2020 essa massa salarial horária elevou-se catastroficamente.
Mas essa redução da massa salarial horária só poderá acontecer se a massa de desempregados no mercado de trabalho voltar a procurar emprego nas fábricas e os capitalistas (da Caterpillar, por exemplo) estiverem interessados em contratar. É exatamente isso que procura Jerome Powel, presidente do Fed, neste exato momento.
A economia do capital torna-se economia política.
Duas necessidades se defrontam, para que esta junção de oferta e demanda se realize.
Do lado da classe operária, a necessidade de vender sua força de trabalho a qualquer custo para não morrer de fome. Do lado dos capitalistas, a necessidade que nova e mais elevada taxa geral de mais valia adapte-se às suas novas necessidades de acumulação do capital.
São estas dificuldades de recuperação da saúde do capital, repetimos em nome da clareza, que os capitalistas dos EUA, seu governo, e seu Banco Central enfrentam e procuram resolver neste momento.
Ao atualizar nos próximos boletins esta análise sobre o atual período de crise econômica, partiremos destes movimentos das partículas elementares para retornar à superfície dos fenômenos e avançar no processo de cenarização e perspectivas para os próximos trimestres do ano.