Os fantasmas de Paris
Mauro Iasi nos leva em uma viagem no tempo na qual os fantasmas da Comuna se transformam em relíquias da classe operária e continuam a rondar a Europa e o mundo.
BLOG DA BOITEMPO
Por Mauro Luis Iasi
“Os mártires [da Comuna] estão guardados
como relíquias no grande coração da classe operária”– Karl Marx [A guerra civil na França]
– Quem é o chefe aqui?
– Não tem chefe, somos uma Comuna.
– Não sei o que é isso, mas preciso falar com alguém para que me explique essa algazarra.
Eles se amontoavam ao lado da parede do Père-Lachaise e não paravam de chegar. Eram muito diferentes dos mortos comuns que chegavam todos os dias. Falavam muito, riam e se abraçavam. Faziam discursos acalorados, discordavam uns dos outros, por vezes descambando para a força física, mesmo agora sem o físico, na imaterialidade etérea de seus espíritos.
– Fiquem calmos… mantenham-se em fila… pelo amor de deus, largue essa arma…
– Você está ao lado de Versalhes, canalha, capacho de Thiers!
– Quem? Não, não… represento o Reino de Deus…
– Capacho de Napoleão III…
Paris ardia em chamas, os cadáveres lotavam os campos e jardins, transformados em uma enorme sopa de lama e corpos em decomposição. O cheiro era insuportável. Um jornal conservador proclamava: “estes miseráveis que nos fizeram tanto mal em vida não podem continuar a fazê-lo depois da morte”.
Os mortos reagiam como podiam. Cheiravam, apodreciam, permaneciam incômodos como testemunhas do massacre. Mostravam seus crânios amassados pelas coronhadas, os tiros na nuca, os membros decepados. Mulheres tombadas ao lado de seus baldes de petróleo ou simplesmente por trazer um lenço vermelho preso ao braço ou ao pescoço.
Ao lado do muro do cemitério forma-se um enorme comício de almas desgarradas de seus corpos. O anjo, bastante assustado voltou com alguém que parecia ser seu superior, o guardião do portão, que com uma voz poderosa dirigiu-se a turba:
– O negócio é o seguinte. Vocês estão mortos, precisam ficar calmos para a próxima etapa. Sigam a luz e…
– Não.
– Como não?
– Decidimos em assembleia que vamos ficar aqui.
– Veja, não cabe a vocês decidirem…
– É o que sempre nos disseram, mas…
– As coisas do mundo ficaram para trás meu irmão, seus corpos se foram, tem que pensar em suas almas.
– Pois é, mas estávamos nessa de corpo e alma seu padre.
– Eu não sou padre.
– Cansamos de chefes, prefeitos, generais e esta gente que faz guerra para que os pobres morram. Você entende, eminência?
– Eu não sou…
– Certo, certo. Pessoal, o barba aqui quer falar com a gente, vamos ouvi-lo.
– Sou contra! Este cara veio com aquele guarda de Versalhes…
– Não sou guarda… eu…
– Certo, certo. A gente escuta ele e depois vota.
– Obrigado irmão. Eu entendo a revolta de vocês, mais ou menos, vem de um mundo de injustiças e violência, de privações da carne e desesperança. A morte é a passagem para uma outra dimensão…
– Que dimensão, o que tem lá?
– Ele disse que é um reino…
– Reino… monarquia?
– Capacho de Bismark!
– Não… não… essas são coisas do mundo dos homens…
– Por que? Nós mulheres não podemos entender de política. Sei muito bem a diferença entre Monarquia e República, meu senhor…
– Não, não… falei “homens” no sentido geral do termo…
– Vou te dar um tiro… bem no sentido geral do termo…
– Calma gente, deixa o barba concluir. Fala barba, você dizia de outra dimensão que é diferente desta merda de mundo. Como é lá?
– Como é lá? Veja bem… não sei… você tem que acreditar sem ver… a fé…
– É tramoia, o cara é padre…
– Eu não sou padre…
– O cara é protestante… tá do lado dos prussianos…
– Deus está acima destas pequenas disputas terrenas…
– Deus eu não sei, mas os caras dele ficaram ao lado de Versalhes…
– Peraí, sou cristão e comunardo, está duvidando da minha lealdade, cidadão?
– Você eu conheço… deus eu nunca vi…
– Vamos votar…
– Como? Eu não acabei de falar…
– Você enrola muito, o negócio é o seguinte: quem quer morrer e seguir o barba para luz, proposta um; quem que continuar lutando proposta dois…
– Não, não… não tem como seguir… vocês estão todos mortos.
– É um argumento forte…
– Como a gente segue nesta luta, sem os corpos?
– Estou tentando apodrecer devagar e cheirar bastante…
– Eu também, mas até quando… ?
– Cidadãos. Não se trata de nossos corpos ou nossas almas. Não desisto, nem morta! Estamos aqui pela humanidade…
Os mortos explodiram em gritos de guerra e uma salva muda de palmas com mãos ausentes. Atravessaram o muro e se postaram entre o pelotão de fuzilamento e seus companheiros. Abraçavam os que chegavam e os ajudavam a se levantar.
– O que a gente faz? Perguntou o anjo ao seu superior.
– Não sei, nunca entendi os franceses… Quer saber, foda-se, deixa eles aí…
A multidão de fantasmas foi tomando as ruas de Paris entre os prédios incendiados, foram para os bairros pobres abraçar viúvas e filhos, até as cadeias confortar os prisioneiros, seguiram, tempos depois, com os desterrados e condenados aos trabalhos forçados. Alguns seguiam seus algozes, esfriavam sua sopa, abriam as janelas para que entrasse o vento e a chuva fria, ou apenas os olhavam nos olhos congelando seus corações de pedra.
Todas as noites, um pouco antes do amanhecer, se reuniam no Hotel de Ville para fazer um balanço e tomar decisões. Não se sabe quanto tempo passou, fantasmas não ligam para o tempo, os dias e noites se alternavam, o sol e a neve, as flores e as folhas secas, barricadas erguidas e destruídas, canhões enferrujavam enquanto as sobras se alongavam nas calçadas de pedras projetando edifícios majestosos.
Todos estavam ali, em silêncio com suas roupas e armas espectrais, inclusive o guardião do portão, que havia aderido à causa.
– E agora… o que a gente faz?
– Chegam notícias do Oriente de que o tsarismo está em crise lá na Rússia… pensei que…
Um enorme cortejo de fantasmas marchou para o Oriente, com suas armas e estandartes, seus cantos e palavras de ordem, ganhando adeptos em cada parte, barricada, cemitério, campo de batalha, fábricas e fazendas. Davam as mãos aos esquecidos e humilhados, retiravam suas almas da lama e marchavam para o leste. Um enorme sol nascia no horizonte, tingindo de vermelho as nuvens e expulsando a escuridão.
– E aí padre…
– Eu não sou padre…
– Sei, sei… tá contente? Finalmente estamos fazendo sua vontade.
– Qual?
– Estamos indo em direção à luz.
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.