Reflexões atuais sobre a polícia, a reforma e a abolição

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Por Tálison Vasques

1 O caráter racial da polícia e do conceito de segurança pública

Primeiro é preciso compreender as polícias dentro de seu contexto histórico, identificando qual papel do braço armado do Estado em uma realidade capitalista dependente e de desemprego estrutural, onde a não superação de diversos elementos superestruturais de origem colonial culminou na organização de um Estado que se diferencia profundamente das experiências republicanas centrais. Aqui o elemento raça informa a identidade de um Outro ao qual se quer controlar, disciplinar. Um Outro formado por aqueles substituídos arbitrariamente na linha de frente da produção capitalista pela mão de obra injetada europeia e que se converteram em uma faixa supranumerosa de trabalhadores extremamente alargada e que, em certa medida, extrapola o conceito de superpopulação relativa em Marx – especialmente sob o agravante violento da raça, dos péssimos locais de moradia, da falta de escolarização, etc. – e ao qual Clóvis Moura de forma perspicaz chamou de “Franja Marginal” [1].

É para esta franja marginal que, desde os primeiros anos da República, são organizadas as estruturas policiais. Ora, se, como nos diz Lênin, o Estado se apresenta como a manifestação política da dominação burguesa sobre o proletariado [2], e se, em nossa realidade social o proletariado enquanto classe social nega uma concepção meramente sociológica consagrada pelo marxismo acadêmico e se apresenta sob múltiplas identidades construídas sobre a mentalidade colonial reminiscente, é claro que a polícia só pode funcionar como um instrumento de dominação, que em uma realidade de profunda desigualdade como a nossa deve operar uma coerção violenta contra estas identidades marginalizadas e sob uma mentalidade também colonial.

O resultado disso está ricamente documentado inclusive pela historiografia mais prestigiada no mundo acadêmico brasileiro (como no clássico “Crime e Cotidiano” de Bóris Fausto [3]), de modo que nem sequer é preciso consultar uma bibliografia marxista para compreender a história do papel das polícias e seu caráter racial na consolidação dos principais pilares de dominação burguesa em nosso país.

A segurança pública enquanto propaganda política, evocada quase como um ente sobrenatural pelos aparelhos de mídia e pelos agentes do Estado burguês, nada mais é do que um véu que encobre uma realidade profundamente conflituosa, onde somente a classe dominante tem motivos para estar insegura. Porém, é justamente onde ela opera ideológica e até psicologicamente a disseminação de uma insegurança coletiva e de uma desconfiança mútua fortemente implicadas em uma ideologia de dominação racial que mantém a todos sob constante estado de crise. Desde aquele que atravessa a rua quando vê um jovem negro na mesma calçada, até o policial que atira neste jovem sem antes perguntar e, ainda, o próprio jovem que teme mais a polícia do que a qualquer criminoso.
Diante disso, de que modo é possível criar uma polícia que de fato sirva e proteja a população isenta de função de classe e mentalidade colonial? Quais seriam os caminhos, ainda nos marcos republicanos, para a emancipação do policial e da população a qual ele teoricamente serve? A desmilitarização? A polícia de ciclo único? Vejamos.

2 O mito da desmilitarização e o reformismo de esquerda nas políticas de segurança pública

Nas últimas décadas a pauta da desmilitarização passou a figurar com alguma relevância dentro dos debates acadêmicos e da esquerda brasileira. Formulada intensamente pelo antropólogo e ex-secretário nacional de segurança pública Luiz Eduardo Soares, a pauta chegou a ser Proposta de Emenda à Constituição em 2013 (PEC 51). A ideia geral da desmilitarização, tal qual formulada por Soares e transcrita na PEC, é a desvinculação das PMs do Comando do Exército, extinguindo a polícia enquanto força auxiliar de guerra, implicando no abandono do caráter militar de organização. A PEC ainda prevê a criação das polícias civis de ciclo único – que operem o policiamento ostensivo, investigativo, preventivo e de persecução criminal – onde os servidores teriam plano de carreira única e direitos trabalhistas e previdenciários iguais aos de quaisquer funcionários públicos estaduais e municipais.

Sobre a relação da polícia com a classe trabalhadora, no cerne da questão está uma concepção meramente formal de militarização, que considera a questão como um fenômeno puramente cultural e organizativo onde são os resquícios de períodos como a ditadura militar e o escravismo – muito presentes no militarismo – que tornam a polícia arbitrária e violenta contra determinadas populações, em outras palavras, há uma “cultura institucional” composta por reminiscências de eras autoritárias do Estado brasileiro que impede a atividade policial de ser democrática.

Há de se considerar, é claro, a contribuição histórica e cultural na formação das polícias. É certo que períodos como a ditadura militar, por exemplo, deixaram forte influência nos aparelhos de segurança. Não à toa se inicia na ditadura a curva ascendente do encarceramento em massa no Brasil e é também nela e por ela que os grupos de extermínio e esquadrões da morte se formam, ganham notoriedade e são institucionalizados nas “tropas de elite” como o BOPE, ROTA, ROCAM etc. Porém, não é por estas reminiscências e heranças que a polícia funciona essencialmente como a operadora do terror de classe contra os trabalhadores. Na verdade, este terror é necessário para a manutenção da estabilidade política necessária à produção capitalista no país. O terror estatal é expressão de uma contrarrevolução preventiva e permanente contra o elo frágil da sociedade burguesa: os trabalhadores estruturalmente desempregados, o pauperismo, a franja marginal. Na verdade, tais reminiscências são expressão da capacidade da etapa neoliberal do capitalismo brasileiro em aproveitar elementos ultrapassados da forma política capitalista para reinventar sua dominação.

A concepção formalista de militarização presente na PEC 51 quando ignora a luta de classes perde de vista elementos centrais para a compreensão do que realmente é o fenômeno da militarização da vida social: um aspecto fundamental para a compreensão dos tempos neoliberais e que abarca não só as corporações policiais, mas também o judiciário, que passa a funcionar como uma força auxiliar das forças de segurança em um processo de inversão fortemente influenciado pelo populismo penal promovido pela guerra às drogas (basta lembrar do polêmico artigo 28 da Lei de Drogas de 2006, que permitiu que a palavra do policial definisse quem era traficante e quem era usuário). Além dos poderes legislativo e o executivo que funcionam em uma lógica mercadológica e eleitoral retroalimentando politicamente o discurso da guerra. Há ainda outros elementos como a própria mídia que prepara as mentes para a tragédia diária que este modelo de política de segurança produz e dissemina o pânico moral contra negros, pobres, favelados e imigrantes em nome do combate ao crime e à criminalidade.

A militarização é, portanto, um quadro geral que não será superado com meia dúzia de reformas sintetizadas em uma PEC. Os revolucionários devem se diferenciar desta ilusão de desmilitarização, participando dos movimentos onde está o povo que pede o fim da polícia militar não porque de forma caricata não gosta de militares, mas porque odeia a repressão de todo o tipo e entende que passa pela superação da polícia e da militarização a construção da liberdade e emancipação.

3 O policial contra a polícia

Neste complexo panorama não podemos, é claro, confundir a polícia com o policial. A polícia, como já dito, cumpre papel inconfundível na luta de classes, cujo as estruturas são impossíveis de serem modificadas no sentido da emancipação humana. Por outro lado, o policial é um sujeito diverso, atravessado por infinitas contradições por ter origem trabalhadora e comungar de tudo o que implica isto, porém tendo sua identidade e consciência resumidas aos limites do militarismo e da doutrina da corporação.

O resultado disso é um sujeito cindido, que é indiscutivelmente parte da classe trabalhadora, porém, permanece sob uma falsa consciência imposta pela hierarquia, pelo militarismo e pela política de segurança atual. Vive sobre os efeitos da superexploração, da insalubridade e das péssimas condições de vida e trabalho, porém, é recompensado com o “salário psicológico” do status militar, que o diferencia do conjunto de sua classe, reduzindo seus direitos políticos por um lado, e por outro o alçando ao patamar de autoridade da qual o sujeito não consegue e nem quer se despir mesmo quando não está usando a farda.

Neste panorama – e com a segurança pública e as polícias estando no centro do debate político nacional, capturados discursivamente pela extrema-direita – nascem iniciativas como o movimento Policiais Antifascismo. Com um programa político sólido e de perfil sindical, busca romper a lógica da segurança pública atual a partir de uma concepção republicana de polícia, constituindo um importante contraponto a realidade policial atual, atuando nos elos frágeis da política de segurança como a restrição de direitos políticos e trabalhistas aos policiais militares e a política de guerra às drogas. Contudo, o movimento apresenta duas limitações fundamentais as quais os comunistas devem olhar com absoluto cuidado.

A primeira é sua inspiração meramente reformista e a falta de um horizonte político claro que guie sua atuação. Todas as principais pautas dos Policiais Antifascistas estão no bojo da PEC 51 e na literatura produzida por Luiz Eduardo Soares e outros teóricos e acadêmicos importantes da questão da polícia. Como já apontada, a desmilitarização das polícias militares não compreende a luta contra a militarização da vida social em geral, onde todos os aspectos da vida acabam tragados por uma lógica militar e mesmo as polícias civis e federais atuam de forma militarizada, promovendo genocídio e encarceramento em massa tal como as polícias militares (um exemplo disso é que a última grande barbárie promovida pelo Estado do Rio de Janeiro, a Chacina do Jacarezinho, foi totalmente operada pela Polícia Civil).

Esta estratégia reduzida a um horizonte meramente formal e de inspiração liberal acaba por representar uma perigosa armadilha à atuação daqueles que lutam contra a violência do Estado e na construção de uma política independente e revolucionária para a resolução do problema da violência urbana do Estado burguês. Sobretudo, esta concepção implica na ilusão de que é possível reformar as polícias, parte da ilusão maior da reforma do Estado burguês, tema há muito superado pelos comunistas brasileiros e pelos revolucionários do mundo inteiro.

A segunda limitação dos Policiais Antifascistas está na sua relação com os movimentos de luta contra a violência policial. O movimento negro e os movimentos comunitários e de favelas em geral já se debruçam há muitas décadas sobre o problema da violência do Estado contra suas populações, de modo que algumas ilusões republicanas e liberais desses movimentos já acabaram por ser superadas. Questionamentos sobre os caminhos para a abolição das polícias e das cadeias já surgem com força nestes setores da luta social e mobilizam braços e mentes preciosas nas periferias brasileiras. Embora tais movimentos sofram forte assédio de ONGs e institutos liberais, já apresentam um programa político mais avançado e com maior diálogo com os setores populares que os Policiais Antifascistas. Estes últimos parecem ter profunda dificuldade de diálogo com o conteúdo programático dos movimentos de favelas, impedindo um processo de criação de sínteses entre a realidade dos profissionais da segurança e o outro lado, no qual estão os principais atingidos pelas políticas públicas de segurança.

Esta cisão é expressão de uma fratura maior entre a esquerda hegemônica e o conjunto mais precarizado da classe trabalhadora. Enquanto os Policiais Antifascismo percorrem o caminho da esquerda institucional tendo como horizonte político as reformas no seio do Estado e já vislumbrando resultados eleitorais e a construção de uma possível “bancada anti-bala” no congresso nacional, os movimentos em luta contra a violência policial nas periferias continuam se articulando no território, buscando a organização popular e construindo alianças pontuais com elementos do Estado simpáticos à causa e que fazem prosperar nos espaços institucionais as demandas populares. Um caso emblemático foi a decisão do STF em favor da ADF das Favelas em julho de 2020, quando um conjunto de organizações ligadas ao movimento negro e aos movimentos de favela do Rio conseguiram a partir de articulações no congresso nacional e no judiciário a restrição das operações policiais nas favelas cariocas durante a vigência da quarentena no Estado, o que diminuiu significativamente a letalidade policial nos meses seguintes.

Tendo seu julgamento retomado na primeira semana de fevereiro de 2022, a ADPF deve redefinir muitos dos mecanismos de controle da atividade policial, impondo às corporações a necessidade de justificar a excepcionalidade do uso da força, além da instalação de câmeras nas viaturas e uniformes dos agentes, a quebra de sigilo dos protocolos de atuação das polícias etc. Avançando em um sentido de redução da letalidade policial em um momento de retrocessos políticos e de tentativas de legalização da barbárie e dos massacres em comunidades carentes como o excludente de ilicitude do ex-ministro Sérgio Moro.

Tais articulações, embora possam ser os eventos mais importantes para a diminuição da repressão violenta à classe trabalhadora nos últimos anos, passaram ao largo das discussões nos amplos espaços do campo progressista institucional e também não foram sequer agitadas por quaisquer quadros do movimento Policiais Antifascismo. Estes setores mais preocupados com o legítimo desgaste do governo de Jair Bolsonaro e a construção de projetos eleitorais para 2022.

Neste sentido, embora surja como um importante movimento de contestação em um setor de amplo predomínio bolsonarista e apresente um sólido programa sindical, o movimento dos policias antifascistas ainda carece de um salto na consciência de classe que supere o corporativismo ao que está preso e um projeto político que ultrapasse os limites do republicanismo.

Tão necessário quanto derrubar o estado burguês é extinguir seu braço armado tal como ele se apresenta e tal processo, realizando-se como um processo de emancipação dos sujeitos, significa também redenção ao policial e ao policiado. Abolir a polícia é, portanto, a abolição tanto do repressor, quanto do reprimido. Esta é a premissa básica para a possibilidade de construção da consciência de classe de um agente de um aparelho repressivo do Estado. Em uma escala mais ampla esta é uma discussão sobre poder que se expressa nas armas. Em um futuro estágio de agitação revolucionária das massas não serão os grupos fascistas ou os agentes da CIA que enfrentaremos de forma cotidiana, mas a própria polícia sob a mesma premissa de servir ao controle das massas e proteger os interesses da classe dominante.

4. Abolição

A extinção do braço armado do Estado não é, porém, um processo instantâneo, uma declaração ou um decreto de fim da autoridade. É, na verdade, resultado de um complexo processo de luta contra hegemônica que esvazie de sentido a necessidade de uma força policial enquanto instância mediadora da vida social, deslegitimando assim a própria ordem social burguesa. Deste modo, a abolição da polícia tem mais sentido se considerada como um desvanecimento terminal da autoridade policial, parte do desvanecimento terminal do próprio Estado e da ordem social burguesa, etapas fundamentais para a construção da ação revolucionária e para a tomado do poder. Este é o sentido seminal da comunicação engelsiana em “O Anti-Durïng”, quando este diz que “o Estado não é abolido, extingue-se” [4]. Uma resposta a ilusão anarquista da abolição instantânea da autoridade, mas que também não é um chamado ao oportunismo e reformismo à espera de uma extinção mística e pacifica da ordem social e do Estado burgueses. Significa de fato a necessidade de construir no seio dos movimentos de massas os elementos concretos que levarão a esta extinção.

Tal processo não foge do que foram as experiências de tomada de poder pelos revolucionários na história. Foi preciso esmagar a Okhrana (polícia secreta do czarismo) e superar até a polícia regular do Czar e o exército russo para que o povo pudesse marchar ao poder. A greve de soldados de São Petersburgo – quando os militares enviados para reprimir a marcha do dia da mulher se negaram a atirar nas manifestantes, tornando possível a escalada no movimento de massas que derrubaria o czarismo – é uma das demonstrações do alto nível de consciência e penetração das ideias do Partido Bolchevique entre as fileiras do exército.

Por fim, embora pareça um horizonte impossível na atual realidade social, propostas que vão no sentido da diminuição do policiamento em diversos espaços da vida social já se constituem como um programa mínimo viável para a atuação dos lutadores sociais. Nos EUA o movimento “defund the police” (“desfinancie a polícia”, em tradução livre) ganha força após o brutal assassinato de George Floyd e a onda de protestos que escancarou o racismo estrutural da polícia estadunidense. No Brasil, diversos movimentos impõem ao Estado a restrição da atividade policial e um controle externo das atividades mais rígido, a supracitada ADPF das Favelas caminha neste sentido. Ao redor de todo o mundo surgem pesquisas e iniciativas populares que denunciam o aumento do vigilantismo e da militarização da vida social. Até mesmo a luta pela desmilitarização das polícias no Brasil é uma trincheira legítima na luta pelo desvanecimento do Estado, desde que seja construída sobre um programa anticapitalista e revolucionário.

É papel das organizações anticapitalistas se engajarem nestes movimentos, qualificando as propostas antiautoritárias com o horizonte político revolucionário e contribuindo a partir da tradição marxista-leninista para a organização e ampliação destes movimentos até que se tornem de massas. Quanto as organizações policiais que se colocam contra a militarização e o estado de guerra imposto pelas polícias, é necessário se colocar à disposição do conjunto das forças populares, integrar-se a elas e compartilhar sínteses no sentido da superação da ordem social vigente, sendo esta a forma suprema da luta contra a violência e a opressão de todos os tipos.

1. MOURA, Clóvis. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Ásia, Salvador, n.14, p. 124-137, 1983.

2. LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo, 2017.

3. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880 – 1924). São Paulo: Editora Brasiliense, 1984

4. ENGELS, Friedrich. O anti-Durïng: O Senhor Eugen Dühring Revoluciona a Ciência. Acessado ein: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estado-e-a-revolucao.pdf

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