Solidariedade e lutas de classes
O papel da Brigada Solidária Laudelina de Campos Melo [1]
Por Jeferson Garcia [2]
De que serve a bondade
Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
Aqueles para quem foram bondosos?
De que serve a liberdade
Quando os livres têm que viver entre os não-livres?
De que serve a razão
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?
Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;
A faça supérflua!
Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
Por criar uma situação que a todos liberte
E também o amor da liberdade
Faça supérfluo!
Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
Um mau negócio!
De que Serve a Bondade – Bertold Brecht
O ponto de partida
Desde o início da pandemia da Covid-19 (Corona vírus disease) em 2020, surgiram no Paraná as “brigadas de solidariedade” populares, ligadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e seus coletivos partidários – União da Juventude Comunista (UJC), Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro (CFCAM), Unidade Classista (UC) e Coletivo Negro Minervino de Oliveira (CNMO). Maringá, Foz do Iguaçu, Londrina e Curitiba construíram suas Brigadas a partir da sua militância e com parcerias com outros camaradas3 e organizações.
O objetivo das brigadas foi (e ainda é) minimizar os efeitos da crise político-econômica da covid sobre a nossa classe, de acordo com as possibilidades de cada região do Estado. Em Maringá foi criada em maio de 2020 a “Brigada Solidária Laudelina de Campos Melo4”, cujo nome traz uma homenagem a essa importante militante negra e comunista que liderou batalhas das trabalhadoras domésticas nesse país.
Com o intuito de realizar esse objetivo, uma das palavras de ordem mais utilizadas é a de “Solidariedade de classe”. Mas o que isso significa e qual a relação dessas atividades com a estratégia e tática dos comunistas?
É nessa seara que esse texto se encaixa, na tentativa hercúlea de fazer nosso trabalho de solidariedade sem cair perante os monstros ou as dúvidas que nos atacam pelo caminho. O capital, assim como a Hidra de Lerna5, possui muitas cabeças – precisamos cortar todas e queimá-las.
Longe de querer fazer uma análise da situação da classe trabalhadora nessa pandemia, ou da fração da classe com a qual a brigada faz seu trabalho hoje, o objetivo deste ensaio é incitar a discussão sobre o que querem os comunistas quando falam em solidariedade de classe, seu significado histórico e sua relação com a luta pela emancipação humana. A brigada é, nesse sentido, um espaço para todos aqueles que querem contribuir com os problemas imediatos de nossa classe ao mesmo tempo que lutam por uma outra forma de sociedade. Lutas que se combinam, não se excluem.
1. O que é solidariedade?
Solidariedade é uma categoria histórica. Ser solidário implica ser solidário a alguém que carece pelo resultado de certas causas que se manifestam em um período, segundo as necessidades particulares de um indivíduo, grupo, ou classe social, de acordo com as condições de cada época.
A categoria6 de solidariedade geralmente é tratada de forma atemporal, a partir de um modelo judaico-cristão de tratar os efeitos da alienação7, transferindo problemas sócio-históricos para o campo da moral religiosa8. O maior exemplo é, provavelmente, a pobreza. A miséria é justificada, em regra, pelo egoísmo, mérito, ou o individualismo, que são responsabilizados como culpados últimos, não como produtos históricos.
Na vida cotidiana, os indivíduos são culpabilizados (particularmente) pelas suas atitudes mesquinhas e são convidados a resolver esse problema de forma também singular. A essência da miséria é buscada nos sujeitos, em suas ações particulares, sem pensar a sociedade que produz tais humanos e seus valores sociais. Aquilo que o liberalismo fez bem, foi construir a imagem da sociedade a partir da imagem do indivíduo. Tudo é ele, só existe ele e só ele interessa. Não há sociedade, como dizia Margaret Thatcher (1925-2013).
Quando a categoria de solidariedade é abstraída do processo socioeconômico concreto, uma aparência de realidade9 pode esconder o real e dificultar a compreensão genuína dos complexos envolvidos. É por isso que a solidariedade liberal – realizada por grupos filantrópicos ligados a empresas e a sociedade civil – e a solidariedade religiosa só se interessam por paliativos, principalmente porque eles respondem do ponto de vista da moral, não entrando em conflito com o ponto de vista da economia-política10 – por mais bem intencionadas que possam ser.
A solidariedade se relaciona, portanto, com a alienação e com a ideia de essência humana11. Se os homens são mesquinhos e egoístas por natureza, é preciso uma moral que contrabalanceie, que os façam “mais humanos12” e crie uma sociedade de “face mais humana”.
O problema, assim, é resolvido na ética – tratada na verdade como moral. A solidariedade torna-se um antídoto contra as manifestações da natureza egoísta, como mostram as tentativas pífias que as organizações mundiais passaram a ter durante grande parte dos anos 1990, formulando documentos e ações para desenvolver uma sociedade civil ativa e solidária. Se as relações são opostas ao princípio de igualdade ou demonstram seus limites, esse problema é convertido em postulado moral e os indivíduos passam a ser o foco da mudança.
Estas afirmações apresentam aquilo que Marx dizia a respeito do intelecto político burguês, que não quer identificar as origens dos males sociais – fato de raízes históricas ligadas a chamada decadência ideológica da burguesia13. O capital assenta a razão da miséria mundana em todos os lugares, exceto onde ele verdadeiramente está, isto é, em sua lógica de produção e reprodução social, justamente porque não interessa a burguesia revelar a natureza dos problemas da sociedade. Colocá-los à mostra deixaria visível que a resolução dos problemas está na sociedade que a beneficia por ser a sua imagem e semelhança.
O exemplo sobre essa característica do intelecto político, segundo Marx (2010b, p.50) é o da compreensão de um teórico chamado por ele de Dr. Kay, que vê a falta de educação como motivo do pauperismo crescente na Inglaterra do século XIX. Dizia Marx14:
Assim, por exemplo, o doutor Kay, no seu opúsculo ‘recente measures for he promotion of education in England’, reduz tudo a uma educação descuidada. Adivinhe-se por que motivo! Com efeito, por falta de educação o operário não entende ‘as leis naturais do comércio’, leis que o reduzem necessariamente ao pauperismo. Daí sua rebelião (MARX, 2010b, p.50, grifo do autor).
De tal modo, cabe corrigir esse problema de educação e forjar novos sujeitos mais humanos, solidários, participativos. Pelos liberais e neoliberais15, visa-se a formação para a cidadania que entenda a importância de se contribuir com os mais necessitados, uma vez que o Estado é ineficiente para tanto. Pelos religiosos, objetiva-se a formação dos cristãos que devem ajudar aqueles que são igualmente filhos de Deus. Em ambos os casos, é imprescindível, por tanto, o reconhecimento de pertencimento dos sujeitos que serão vistos como aqueles que carecem de caridade e, além disso, o Estado16 se distancia de seu papel na resolução dos problemas sociais.
A necessidade histórica da solidariedade, não pode ser apreendida em suas raízes, mas somente em algumas de suas manifestações. Em regra, em manifestações individuais, morais e religiosas. O problema está naquele que não é solidário (cidadão17 ou cristão). A ideologia atua com a solidariedade, deslocando a contradição de onde ela realmente tem origem, como uma mágico que tenta esconder o verdadeiro pote onde se encontra o objeto. A miséria deixa de ter uma ordem sócio-histórica, para ter um fundamento de origem moral. Assim, desloca a contradição, jamais a supera.
2. Valores e a luta de classes
[…] para Bernstein, a própria palavra ‘burguês’ não é expressão de classe, e sim noção social geral. Isso significa apenas que, lógico até o fim, ele trocou também – com a ciência, a política, a moral e o modo de pensar – a linguagem histórica do proletariado pela da burguesia. Classificando-se de ‘cidadão’, indistintamente, burguês e o proletário, e, por conseguinte, o homem em geral, este se lhe afigura, na realidade, idêntico ao próprio burguês, e a sociedade humana idêntica à burguesa.” Rosa Luxemburgo – Reforma ou Revolução?
Por que uma pessoa defende pautas como reforma agrária, legalização do aborto, legalização das drogas, desmilitarização da polícia e reforma urbana se ela não faz parte de um dos grupos “beneficiados” nesse processo?
Ora, não são os interesses, são os valores18. Em regra, o grupamento social que mais sofre nestes casos – ou com latifúndio, por parte dos trabalhadores rurais sem-terra, ou que mais convive com mortes em clínicas de aborto clandestino, além da vida cotidiana ser ligada com a brutalidade policial e, por isso, fazerem parte dos que morrem na “guerra às drogas” e que sofrem as desocupações e ações do Estado em áreas de interesse comercial com a especulação imobiliária – é a população negra.
Mas pessoas brancas, que talvez não tenham interesses diretos com essas políticas as defendem. Este fato ocorre porque seus valores19 as fazem agir para além do particular, em direção ao universal. Definir se algo é bom, ou ruim, se possui valor de igualdade, emancipação, democracia ou solidariedade, é o campo dos processos valorativos.
Todas essas categorias fazem parte dos valores que nos ajudam a definir como agir em cada ação cotidiana. Numa sociedade sem classes sociais, os valores têm como função ajudar na escolha entre alternativas que contribuam com o desenvolvimento das necessidades e interesses do gênero humano. Numa organização social pautada em classes, os valores têm relação direta com os interesses em disputa, com a “luta de classes”, que é uma luta justamente por se tratar de grupos distintos, com interesses antagônicos, que lutam – como diria Leminski20 – com todas as suas armas para colocar seus valores e interesses na ordem do dia. Por isso, nesta forma de sociedade – como em toda lógica societal baseada na divisão de classes sociais – não há compatibilidade entre solidariedade e capitalismo. Ou seja, é impossível uma genuína solidariedade sobre a ordem do capital.
Só é possível ter uma relação de completude entre os interesses dos indivíduos e os interesses do gênero em uma lógica sem classes sociais. Ocorre da mesma forma como os demais valores em disputa, os já citados liberdade e igualdade, por possuírem os seus significados demarcados historicamente pelas relações sociais de produção de cada período histórico.
A liberdade (e as demais categorias) é tida a partir dos interesses e da visão de mundo da classe dominante. Por isso que não podemos tomar como nossos os valores21 criados por esta classe, como bem exemplifica Mauro Iasi:
Enquanto o proletariado tomar como sua a consciência do outro será incapaz de completa e verdadeira autonomia histórica. Estará condenado a ser o adjetivador secundário dos valores centrais do seu adversário: Democracia ‘Popular’, Igualdade ‘de fato’, Liberdade ‘mesmo’, propriedade ‘para todos’, Estado ‘do povo’! Isto equivaleria a vermos nos pais do liberalismo termos como: Monarquia ‘Burguesa’, feudalismo ‘igualitário’, Estatamentos ‘flexíveis’, privilégios de nascimento ‘para todos’ e outras quimeras (IASI, 2002, p.34)
O limite da solidariedade da classe dominante – e também dos grupos dominados que reproduzem a ideologia hegemônica – vai até o ponto em que ser solidário não esbarre com os seus interesses e com a produção e reprodução social do seu mundo. Ser livre é ser proprietário privado e, assim, por mais que a miséria do mundo tenha sua razão de existir na propriedade privada dos meios de produção, esta não deve ser tocada.
Solidariedade, do ponto de vista da burguesia, é essa ajuda dentro dos limites da ordem capitalista, ou seja, não pega as coisas pela raiz. Se é ou não a ordem capitalista que cria e dá origem a toda a miséria que da função social a solidariedade, não importa. É até importante que se esconda esse processo, camufle, mascare, ofusque. Esse é o papel da ideologia burguesa.
Não se trata apenas de um conjunto de ideias que se impõem como dominantes. Elas são dominantes, já que são da classe dominante, mas a classe só é dominante porque se insere em relações sociais de produção historicamente determinadas que as colocam no papel de dominação. Ora, a tarefa ficou mais difícil, pois se as ideias que constituem uma ideologia são expressões das relações de dominação a superação delas pressupõe a superação destas relações e, como Marx e Engels (2007, p. 42) concluíram na mesma obra, isso pressupõe um “movimento prático, uma revolução” (IASI, 2013, p.70-71).
3. O canto da sereia: a solidariedade neoliberal
“Justiça social, liberdade e igualdade de oportunidades, solidariedade e responsabilidade para com os outros: estes valores são eternos. A socialdemocracia nunca os sacrificará. Tornar estes valores relevantes no mundo de hoje requer políticas realistas e com visão de futuro, capazes de enfrentar os desafios do século XXI […] A pobreza continua uma preocupação central, especialmente entre famílias com crianças. Precisamos de medidas específicas para os mais ameaçados de marginalização e de exclusão social. Isto também requer uma abordagem moderna por parte do governo: O Estado não deve remar, mas pilotar: não deve ter tanto controle, mas enfrentar desafios. As soluções para os problemas devem ser obtidas com a participação.” Tony Blair e Schroeder22
Solidariedade é uma categoria em disputa. No Brasil contemporâneo, a ideia da solidariedade se estabeleceu com muita força no início dos anos 1990 a partir de uma política deliberada de maior afastamento do Estado no que se refere as políticas sociais, com o slogan da participação da sociedade civil na resolução dos problemas brasileiros. Aquilo que o movimento operário pedia após o fim da ditadura civil-militar, ou seja, participação e democracia, foi ressignificado pela classe dominante.
Bresser-Pereira, o grande nome da reforma do Estado Brasileiro, tinha como leitura de cabeceira as obras de Anthony Giddens23. Bresser, defendia – assim como ainda o faz – uma ação política estatal intermediária, nem muito estado, nem muito mercado. Ele fazia parte do seleto grupo que havia criticado os efeitos do neoliberalismo, como fundamentado por Hayek e Friedman. Bresser-Pereira, assim como alguns nomes ligados a organizações multilaterais, Banco Mundial e FMI, como Bernardo Klikisberg, Joseph Stiglitz24 e Robert Putnam, fundamentaram uma política “menos agressiva” que o neoliberalismo25 para a América Latina.
Este grupo de intelectuais, economistas, políticos, analisavam que a ideologia do livre mercado não cumpriu sua promessa de benefícios globais, pois:
[…] na visão convencional, supunha-se que, alcançando taxas significativas de crescimento econômico, o mesmo se ‘derramaria’ para os setores mais desfavorecidos e os tiraria da pobreza. O crescimento seria, ao mesmo tempo, desenvolvimento social (KLIKSBERG, 2001, p.113).
Assim, esses “críticos” do neoliberalismo apresentaram uma proposta mais branda. A questão não era somente ente mais mercado e menos Estado, diziam eles. Havia um terceiro setor26 imprescindível: a sociedade civil organizada. Seus postulados foram muito próximos da leitura do novo trabalhismo britânico e, portanto, se encaixavam com o que queria Bresser Pereira para o Brasil, pois justificaram os problemas brasileiros no formato do Estado e no declínio cívico – descritos pelo guru da Terceira Via.
Anthony Giddens (o guru), fundador do que ficou conhecido como Terceira Via, argumentava que houve um declínio cívico nas últimas décadas do século XX causado, principalmente, pela atuação desproporcional do Welfare State. Segundo ele, nesse período, os direitos sociais ficaram acima das responsabilidades (deveres). Essa teria sido a principal causa do declínio cívico que, segundo seus ideólogos, pôde ser constatado pelo aumento do vandalismo e da criminalidade, assim como pela perda do sentimento de responsabilidade. Conforme expressa Anthony Giddens:
O declínio cívico27 é real e visível em muitos setores das sociedades contemporâneas, não uma mera invenção de políticos conservadores. Ele é visto no enfraquecimento do senso de solidariedade em algumas comunidades locais e áreas urbanas, nos elevados níveis de criminalidade e na dissolução de casamentos e famílias. […] Não podemos lançar a culpa da erosão da civilidade sobre o Welfare State, ou supor que é possível revertê-la deixando a sociedade civil por sua própria conta. O governo pode e deve desempenhar um importante papel na renovação da cultura cívica (GIDDENS, 2001, p.89, grifo nosso).
Tendo em vista a nova exigência de fortalecer os laços de solidariedade e renovar a cultura cívica, o Estado precisaria formar então um novo tipo de cidadão, não tutelado e que fosse capaz de se responsabilizar por seus problemas sociais. As diversas teorias passam a enfatizar a necessidade de mudar o padrão de sociabilidade, ou seja, o padrão de comportamento dos cidadãos perante a nova realidade. Isto se deve à necessidade de reforçar a participação dos cidadãos28, tendo em vista que a causa dos principais problemas foi delegada ao declínio cívico, ou seja, à falta de participação:
O equilíbrio entre indivíduo e coletivo foi distorcido. Valores importantes para os cidadãos, como conquista pessoal e sucesso, espirito empreendedor, responsabilidade pessoal e espírito comunitário foram muitas vezes subordinados a proteções sociais universais […] Muitas vezes os direitos foram elevados acima das responsabilidades, mas a responsabilidade do indivíduo para com sua família, bairro e sociedade não pode ser descarregada no Estado. Se o conceito de obrigação mútua é esquecido, o resultado é um declínio no espírito comunitário, falta de responsabilidade para com os bairros, crime e vandalismo crescente e um sistema legal incapaz (BLAIR; SCHROEDER, 1999, p.2).
Com isto retira-se, portanto, a explicação da causa dos problemas sociais da própria base social e a transfere aos próprios indivíduos, como se estes problemas ocorressem em consequência da ausência dos valores humanos e do suposto declínio cívico, fundado por um declínio moral.
Neste ínterim, a classe trabalhadora foi convidada a ser mais solidária, a resolver os problemas na sua comunidade, no seu bairro, a partir das associações comunitárias, religiosas, movimentos sociais (negros, mulheres, ecológicos, etc.) enquanto se orquestrava um afastamento e sucateamento das ações do estado em relação a nossa questão social, isto é, ao pauperismo próprio do nosso capitalismo.
Uma miséria que tem razão de ser não mais na falta de condições e produção de riqueza – que tiveram sociedades anteriores de baixo desenvolvimento das forças produtivas – mas na acumulação privada dela29. A miséria do mundo é tratada como um problema de caráter moral, são as pessoas que não ajudam as demais. Assim, respostas fáceis para a solução do pauperismo foram construídas:
[…] programas convencionais de socorro à pobreza devem ser substituídos por abordagens centradas na comunidade, que permitam uma participação mais democrática além de serem mais eficazes. A formação de comunidades enfatiza as redes de apoio, o espírito de iniciativa e o culto do capital social como meio de gerar renovação econômica em bairros de baixa renda (GIDDENS, 2001, p.120, grifo nosso).
Termos como democracia, cidadania, participação, igualdade, voluntariado, solidariedade passaram a ser cada vez mais utilizados pelos intelectuais, grupos, movimentos, identificados com a reprodução do capital, mas que se colocam como representantes dos mais valiosos sentimentos de paz e combate à pobreza. Os antigos significados dessas categorias, estabelecidos a partir das lutas da classe trabalhadora ao longo dos séculos, são reconstruídos de acordo com os interesses pró-sistêmicos. Não foi, neste caso, uma novidade na história. As palavras de ordem dos movimentos de contestação à ordem e seus intelectuais foram sendo paulatinamente adaptados e acomodados a reprodução do capitalismo. Como diz Brecht, em um de seus poemas: “o inimigo distorceu muitas de nossas palavras, até ficarem irreconhecíveis”.
A adesão a essas formas de solidariedade, autonomia e liberdade implica necessariamente a incorporação de todo o ideário político afinado com as necessidades da lógica capitalista contemporânea. Em outras palavras, por detrás do discurso que defende a liberdade individual, por meio da imagem do cidadão responsável e solidário, é evidente a defesa da liberdade plena para o capital, que muitas vezes, pode ser impedida pela ação do Estado. Trata-se de que, para a reprodução do capital na atualidade, torna-se necessário, manter e, quando possível, ampliar a liberdade de mercado estabelecida pela teoria liberal clássica, alcançando os setores que podem ser rentáveis e que estão sob tutela do Estado. Construir, portanto, novas avenidas para o capital. Tanto que:
O objetivo de retirar o Estado (e o capital) da responsabilidade de intervenção na ‘questão social’ e de transferi-los para a esfera do ‘terceiro setor’ não ocorre por motivos de eficiência (como se as ONGs fossem naturalmente mais eficientes que o Estado), nem apenas por razões financeiras: reduzir os custos necessários para sustentar esta função estatal. O motivo é fundamentalmente político-ideológico: retirar e esvaziar a dimensão de direito universal do cidadão quanto a políticas sociais (estatais) de qualidade; criar uma cultura de auto-culpa pelas mazelas que afetam a população, e de auto-ajuda e ajuda mútua para seu enfrentamento (MONTAÑO, 2010, p.23, grifo meu).
Em vista disso, a questão da cidadania é importante no projeto desta nova intelectualidade neoliberal, porque ela possibilita formar o cidadão e a sociedade civil responsável, a partir da perspectiva da comunidade cívica, extremamente funcional ao capital contemporâneo. Nas palavras de Montaño (2002, p.63):
Com o ‘terceiro setor’30 tornado instrumento da estratégia neoliberal, este assume a função de transformar o padrão de respostas às sequelas da ‘questão social’, constitutivo de direito universal, sob responsabilidade prioritária do Estado, em atividades localizadas e de auto-responsabilidade dos sujeitos portadores das carências; atividades desenvolvidas por voluntários ou implementadas em organizações sem garantia de permanência, sem direito. Transfere-se, como vimos, o sistema de solidariedade universal em solidariedade individual.
Desenvolve-se juntamente com o novo padrão de sociabilidade neoliberal da Terceira Via, enquanto forma de administrar o capitalismo, um novo padrão de resposta às expressões do pauperismo, no qual o próprio pauperizado deve dar conta de responder a tais expressões:
O que era de responsabilidade do conjunto da sociedade passa a ser de (auto) responsabilidade dos próprios sujeitos afetados pela ‘questão social’; o que era sustentado pelo princípio da solidariedade universal passa a ser sustentado pela solidariedade individual, micro; o que era desenvolvido pelo aparelho do Estado passa agora a ser implementado no espaço local, o que era constitutivo de direito passa a ser atividade voluntária, fortuita, concessão, filantropia (MONTAÑO, 2002, p.63).
Como assevera Montaño, a resposta social à supostamente nova questão social tende a ser transferida para o âmbito imediato e individual, cabendo ao indivíduo agir por si mesmo com vistas a responder aos problemas sociais. É assim que, no que concerne ao novo trato desse pauperismo próprio do capitalismo, a orientação das políticas sociais estatais é alterada de forma significativa. Por um lado, elas continuam sendo retiradas paulatinamente da órbita do Estado, sendo privatizadas, transferidas para o mercado. Por outro, elas passam também a ser alocadas na sociedade civil, que assume a responsabilidade pelas demandas sociais. Grosso modo, transfere-se para a sociedade civil a iniciativa de responder as expressões da questão social, mediante práticas voluntárias, filantrópicas e caritativas, de ajuda mútua ou autoajuda.
Ter clareza disso é importante, tendo em vista que para nós a solidariedade não pode assumir um caráter estritamente assistencialista, pois além da importante tarefa de ajudar na sobrevivência imediata de nossa classe, é preciso também contribuir com a crítica da sociedade que cria e torna necessárias tais ações de caridade, que escondem políticas capitalistas que pioram a situação de nossa classe. Como diz Lukács “na vida cotidiana, os fenômenos frequentemente ocultam a essência do seu próprio ser em lugar de iluminá-la” (LUKÁCS, 2012, p.294, grifo meu). Por isso, é preciso atuar junto às comunidades, contribuindo no processo de formação política e se contrapondo à formação humana posta pelo capital. Não formamos cidadãos31, formamos camaradas. Para isso, é inexorável a construção da solidariedade de classe e a crítica da solidariedade do capital.
A solidariedade pode, portanto, ser cooptada e usada como slogan para piorar ainda mais a condição dos trabalhadores, como o canto da sereia. Aquilo que convencionalmente se entende por solidariedade (burguesa) é a caridade, uma relação vertical que como dizia Eduardo Galeano “não perturba a injustiça. Só se propõe a disfarçá-la”. Seu significado é transformado e disseminado por meio das escolas, documentos de organizações mundiais, programas de televisão, projetos sociais de solidariedade como amigos da escola, escola da cidadania, Igrejas, das universidades, etc. que tornaram-se a concepção hegemônica de solidariedade. São esses aparelhos privados de hegemonia que difundem a concepção de solidariedade do capital.
Não podemos esquecer que é a solidariedade que é aclamada nas relações de trabalho, com o objetivo de se produzir relações trabalhistas mais produtivas de capital32. Todo o processo de modificações nas relações de trabalho, daquilo que se convencionou chamar de acumulação flexível, exigiu a formação de um trabalhador de novo tipo, polivalente, que precisa também ser participativo, solidário no trabalho em equipe, responsável pelas resoluções dos problemas da empresa e, principalmente, conformado com a lógica social capitalista.
A solidariedade burguesa se dá nesses limites intransponíveis. É um valor que coexiste com princípios contraditórios, uma vez que o mesmo sujeito que faz caridade, defende políticas de austeridade, participa ou financia partidos que defendem a reforma trabalhista, reforma da previdência, a privatização do SUS e das Universidades. Nas guerras, a solidariedade é slogan para mandar os jovens à morte, nas lutas em defesa dos interesses das burguesias imperialistas.
A solidariedade, portanto, não é uma categoria abstrata, pelo contrário, ela possui concretude histórica e tem relação direta com as lutas de classes. Ela nem sempre contribuirá com o desenvolvimento da humanidade. Em alguns casos, ela colabora com a reprodução das desumanidades criadas pelos seres humanos – as alienações. A solidariedade, diz Erik Olin Wright em seu “Como ser anticapitalista no século XXI?”, pode aumentar a capacidade de lutas coletivas tanto de uma Ku Klux Klan quanto de movimentos pelos direitos civis.
Nós, comunistas, devemos tomar nossa posição e não aceitarmos para nós a solidariedade burguesa. Para nós – como será discutido mais a frente – a solidariedade de classe tem esse significado: compromisso com a nossa classe hoje e com nosso projeto político, de não só remediar, mas acusar o inimigo e as causas da nossa miséria. Já dizia Brecht: não queremos só o remendo, queremos o casaco inteiro.
4. Solidariedade, para os comunistas
Eu não acredito em caridade, eu acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima pra baixo. Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas.
Eduardo Galeano
Mas como nós, comunistas, pensamos a solidariedade? O conceito de solidariedade para o movimento comunista se refere ao compromisso com os interesses e necessidades de todos aqueles que compõem as frações da classe trabalhadora. Tratar dessa categoria se refere a práxis política que carrega a máxima de Marx “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades” e também do “servir ao povo de todo coração”, usada por Mao Zedong (1893-1976) e pelos Panteras Negras (1966-1982).
A luta dos socialistas tem como o objetivo construir uma sociedade onde os seres humanos tenham as condições de vida dadas por uma relação social não mais alienada e coisificada, na qual as necessidades atendidas são, na verdade, as necessidades da lógica do capital, do mercado, ou da chamada “sociedade civil”, etc.
Os comunistas lutam por uma sociedade na qual a própria ideia de solidariedade – caracterizada principalmente pela caridade – não precise existir, onde as relações humanas não careçam de ações caridosas. As doações de cestas básicas não podem ser romantizadas, pois não são expressão da nossa humanidade, pelo contrário, são expressões da nossa desumanização. Uma sociedade onde seres humanos precisam viver de doações para sobreviver precisa deixar de existir.
Contudo, a luta pela emancipação humana não nos pode cegar perante as injustiças e as necessidades que nossa classe sofre e sente em seu cotidiano. Não podemos projetar o futuro, sacrificando o presente33.
Por isso que a categoria de solidariedade é tão cara aos comunistas e reflete um amplo conjunto de contradições da nossa sociedade. E, por tal motivo, colocamos a frente dela nossa trincheira, nossa barricada. Mesmo na ordem do capital, é preciso contribuir com as necessidades de nossa classe, seja em sua luta por terra, pão, casa, ou qualquer outro elemento da máxima comunista: “segundo suas necessidades”.
5. Socialismo e solidariedade na história
A principal virtude dos camaradas é a solidariedade
Camarada – Jodi Dean
Vários poderiam ser os exemplos da relação entre solidariedade e o movimento comunista. Nomes como o de Apolônio de Carvalho, que travou lutas históricas contra o fascismo em várias partes do mundo; dos militantes da Aliança Nacional Libertadora e outras organizações que não mediram esforços para tirar seus camaradas da prisão e tortura. Porém, me deterei a apenas três casos devido aos limites desse texto e por terem uma história importante para a brigada Solidária em Maringá: o papel dos comunistas na luta antirracista durante o século XX, a relação dos Panteras Negras com a comunidade negra estadunidense e, por fim, a história de Osvaldão.
5.1. Coisa de comunista
Eu me lembro de que, quando eu escrevi esse ensaio, eu pensava no “criminosos” como substituto de “comunista” na era da “lei e ordem”. Eu pensava nessa nova figura discursiva do criminoso, que absorveu muito do discurso do inimigo comunista […] o racismo foi um ingrediente significativo nas campanhas anticomunistas. Considerando que Martin Luther King foi repetidamente descrito pelos adversários como comunista, e não por ser na verdade mesmo do partido comunista, mas porque se presume que a causa da Igualdade racial era uma criação comunista. O anticomunismo possibilitou a resistência ao direito civis uma miríade de formas e vice-versa; o racismo possibilitou o alastramento do anticomunismo. Em outras palavras, o racismo tem desempenhado um papel decisivo na produção ideológica do comunista, do criminoso, do terrorista
Angela Davis34
Um dos maiores exemplos de solidariedade de classe do movimento comunista foi o seu apoio as lutas antirracistas e as batalhas de libertação nacional, mesmo quando isso era tido como algo negativo no seio do movimento operário. O movimento sindical não aceitava nos EUA (e em outros países) trabalhadores negros. Estes precisavam construir seus próprios instrumentos de luta.
Contudo, a III Internacional Comunista (1919-1943) tinha como uma das 21 condições de ingresso (para partidos comunistas interessados) que houvesse um combate ao racismo, ao colonialismo e que cada partido se preocupasse com o recrutamento de trabalhadores negros. É daí, do conjunto dessa história aqui resumida, que o movimento supremacista dos EUA tirou o ataque ideológico aos militantes brancos antirracistas como sendo “bolcheviques” – comunistas.
Em “Filhos do ódio”, filme de Barry Alexander Brown e que tem Spike Le como um dos produtores executivos, conta-se a história de Bob Zellner, um jovem branco que contribuiu com as lutas pelos direitos civis nos EUA na década de 1960. Ele atuou no chamado “Verão da liberdade” (Freedom Summer), uma campanha de viagem ao Mississipi com o objetivo de lutar, dentre outras coisas, pelo direito ao voto da população negra na era Jim Crow35.
Apesar de ser um jovem branco, universitário, Bob foi atacado e quase assassinado como sendo “comunista”, pois todo aquele que apoiava a luta antirracista era chamado de duas coisas: comunista ou “amante de negros” (nigger lovers). Ainda no começo do filme, quando um grupo de estudantes é repudiado e expulso da faculdade por apenas assistirem a uma reunião de membros do Comitê Coordenador Estudantil Não Violento (SNCC), do qual Rosa Parks era o principal nome, o problema aparece da seguinte forma: “vocês foram influenciados pelos comunistas”.
Em outra das cenas do filme, membros da Ku Klux Klan que levavam Bob para a forca descobrem que ele não falava como comunista (sic!) e que era do Alabama, sulista e filho de pastor. Seus algozes ficaram espantados, pois ele era somente alguém como eles. Faz parte da Ideologia (é seu papel) construir a imagem do mau a ser combatido e, nesse caso, o inimigo da igualdade e perturbador da paz só poderia ser comunista36, pois aqueles que falavam sobre “mistura de raças” eram os bolcheviques.
Vários são os exemplos que dão referência e respaldo, histórias que demonstram essa relação de solidariedade do movimento comunistas com a luta “dos negros” – tornando-a uma luta dos comunistas. Poderia discutir aqui as histórias de John Reed e Sartre que por suas ações ajudaram a desenvolver a compreensão de que a luta antirracista era “coisa de comunista” – o primeiro sobre a luta antirracista nos EUA e o segundo sobre a revolução Argelina. Cito estes camaradas, mas poderiam ser tantos outros (e, inclusive, organizações políticas) como aqueles que fizeram no mundo todo campanha pelo Libertem Angela Davis (caso de György Lukács). Mas, apesar de tantos nomes, me deterei rapidamente apenas a um, pela magnitude de seu colete moral37: Fidel Castro.
O comandante cubano teve um papel de solidariedade fundamental aos seus camaradas negros que lutavam na África pela sua libertação. Exemplo disso é a “Operação Carlota”, que começou em 1975 e só teve fim em 1990. Ela fez parte de uma série de apoios militares que Cuba desenvolveu em Angola38, a pedido de Agostinho Neto. Várias batalhas, em que guerrilheiros cubanos deram a vida pela libertação de seus camaradas negros, ficaram marcadas na história. Por exemplo, as batalhas de “Cuito Cuanavale”, ocorrida entre 15 de novembro de 1987 a 23 de março de 1988.
Essa foi a batalha mais longa do continente africano após a Segunda Guerra Mundial. Ela aconteceu no sul de Angola, na região do Cuíto Cuanavale, uma província do Cuando-Cubango. Lá se confrontaram os exércitos de Angola (FAPLA/MPLA) e Cuba (FAR) contra a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e o exército da maior potência militar regional, a África do Sul. Essa, assim como outras lutas em território africano – realizadas com voluntários cubanos – ficaram marcadas na história, tanto por serem vitoriosas, quanto pelo auxílio do movimento comunista ter mudado os rumos da história.
A contribuição cubana se deu não só no que se refere a armamento e soldados. Financiamento e empréstimos, ciência e tecnologia, médicos, professores, técnicos, engenheiros, foram outras das contribuições realizadas não só com Angola, mas Burkina Faso. Thomas Sankara (1949-1987), líder de libertação da antiga Alto Volta (hoje Burkina Faso – Terra dos Homens íntegros) disse:
A cooperação entre Cuba e Burkina Faso atingiu um nível muito elevado e damos grande importância a isso porque podemos, dessa maneira, estar em contato com uma revolução irmã. Isso nos dá confiança; ninguém gosta de se sentir isolado. E para nós, poder contar com Cuba é um recurso importante. Quanto à cooperação econômica, temos muitos programas em áreas como a cana-de-açúcar, que é uma especialidade de Cuba, cerâmica e assim por diante. Por outro lado, especialistas cubanos realizaram estudos de diferentes setores: transporte ferroviário; a produção de dormentes para as linhas ferroviárias e elementos pré-fabricados para a construção de casas. Há também o setor social: saúde e educação. Muitos colaboradores cubanos realizam tarefas relacionadas à formação de quadros aqui. Nós também temos muitos estudantes em Cuba. Cuba está muito perto de nós hoje (SANKARA, 2019, p.426).
Angola, Guiné Bissau e Cabo Verde, Moçambique, Zimbábue e em muitos outros países tiveram apoio e solidariedade dos comunistas em suas lutas por um mundo em que fizessem sentido as necessidades humanas. As palavras que diversos líderes africanos depositaram sobre os ombros de Fidel Castro comprovam como os comunistas foram internacionalistas e antirracistas.
Desde os seus dias iniciais, a Revolução Cubana tem sido uma fonte de inspiração para todos os povos amantes da liberdade. O povo cubano ocupa um lugar especial no coração dos povos da África. Os internacionalistas cubanos fizeram uma contribuição à independência, à liberdade e à justiça na África que não tem paralelo pelos princípios e o desinteresse que a caracterizam. É muito o que podemos aprender de sua experiência. De modo particular nos comove a afirmação do vínculo histórico com o continente africano e seus povos. Seu invariável compromisso com a erradicação sistemática do racismo não tem paralelo. Somos conscientes da grande dívida que há com o povo de Cuba. Que outro país pode mostrar uma história de maior interesse do que a que Cuba demonstrou em suas relações com a África […]? Sem a derrota infligida em Cuito Cuanavale nossas organizações não teriam sido legalizadas! A derrota do exército racista em Cuito Cuanavale me deu a oportunidade de estar hoje aqui com vocês! Cuito Cuanavale é um marco na história da luta pela libertação da África austral!
Nelson Mandela39
5.2. Aprender com o Partido dos Panteras Negras
Reconhecemos que, a fim de trazer as pessoas para o nível de consciência necessário para elas, seria necessário servir aos seus interesses de sobrevivência desenvolvendo programas que ajudariam a atender suas necessidades diárias
Huey Newton
Outro caso, no qual a solidariedade comunista foi materializada, são as ações de solidariedade com a comunidade negra realizadas pelo Black Panther Party (BPP), conhecido como Partido dos Panteras Negras (1966-1982). A organização foi fundada nos Estados Unidos em 15 de outubro de 1966 e tinha sua base central na luta contra o racismo e seus efeitos mais imediatos, como a violência policial, encarceramento, discriminação, assédio e miséria da classe trabalhadora negra.
A sua origem se dá com Huey Newton e Bobby Seale, na cidade de Oakland, no estado da Califórnia (onde havia em torno de 135.000 negros), com o objetivo central de criar um mecanismo para a auto-defesa. Tal desígnio estava claro em seu nome: Black Panther Party for Self-Defense (Partido Pantera Negra para Auto-defesa). As pessoas recrutadas constituíam aquelas camadas que mais eram afetadas e violentadas pela polícia.
No interior da organização eram debatidos os problemas de moradia, saúde, alimentação, educação e vários outros, que representavam a carência da comunidade negra e que eram determinados não só pela pobreza, mas pelo racismo. Há, segundo os Panteras, uma relação inexorável entre pobreza e racismo. Com o tempo, foram criados programas de sobrevivência, que buscavam alimentar a comunidade, com cafés da manhã para as crianças, doações de alimentos e roupas, serviços de saúde básicos, como ortodontia, médicos, entrega de cestas básicas, dentre outras formas de ajuda. Huey Newton defendia a ideia de que para elevar o nível de consciência das pessoas – tarefa do partido de vanguarda – era preciso também ajudar na sobrevivência delas, em suas necessidades diárias. Dizia ele que este era um programa de “sobrevivência pendente de revolução”. Ou seja, os programas de sobrevivência ajudavam a comunidade negra, porém, não eram a solução para seus problemas.
Os Black Panthers realizaram atividades de cafés da manhã para crianças, baseados principalmente na máxima de “amor as pessoas” – dando comida no prato e as defendendo com fuzil nas mãos – e na afirmação científica de que tais ações eram imprescindíveis, pois crianças que não tinham a possibilidade de tomar um café da manhã nutritivo, tinham problemas de atenção nas aulas e, assim, apresentavam menor desempenho educacional que as crianças brancas.
Solidariedade é, portanto, compromisso com a nossa classe. Compromisso com suas necessidades hoje e com nosso projeto de emancipação humana, que chamamos de comunismo.
5.3. Osvaldão
Ele sempre me falou que eles era problema de política né, eles era comunista né
Mangulão, camponês – filme Osvaldão
Líder da guerrilha do Araguaia, engenheiro e boxeador, Osvaldo costumava andar sem camisa e com uma 20mm nas mãos. Depois da chegada dos militares na região do Araguaia (mais de cinco mil fardados) em 1972, foi caçado e assassinado, durante a ditadura, em 1974 – junto a outros camaradas que ali estavam. Após ser morto, Osvaldo Orlando da Costa teve seu corpo pendurado por um helicóptero, que sobrevoou o Araguaia para mostrar que o grande líder estava morto – depois foi decapitado. Seu corpo, até onde se sabe, ainda não foi encontrado.
Militante comunista, Osvaldão viveu nove anos na região do Araguaia (1966-1974). Antes de assumir as atividades de luta armada na região, Osvaldão morou por lá e contribuiu com os moradores da região, tornando-se conhecido por ser um braço solidário da população, no garimpo de Itamirim, nos cuidados de saúde como aplicação de medicamentos, nas caças que fazia para os indígenas (suruí) da região ou nos demais auxílios no Araguaia, como relata uma moradora:
[…] nois gostava dele porque quando ele chegava lá em casa..o que nois tava precisando..assim..porque às vezes a gente tava precisando dum arroz…tava precisando duma farinha..tava precisando assim duma carne..dum sabão…tudo que…aí..o que ele tinha ele ajudava pra nois..se nois tivesse precisando de qualquer uma coisa ele tava pronto pra ajudar (fala descrita no filme Osvaldão)
No fatídico 01 de abril de 1964 – dia do golpe civil-militar de durou 21 anos – Osvaldão estava em um avião a caminho do Oriente. Na China ele realizou uma preparação de 6 meses aprendendo técnica de guerrilha. Na sua volta, teve como tarefa de seu partido – o PCdoB – escolher, junto a outros camaradas, um local onde as condições geográficas, sociais e políticas possibilitariam a formação guerrilheira. Foi então que a região do Araguaia, no Pará, foi escolhida.
Osvaldo conhecia tudo, todos e era conhecido. Sabia das trilhas e das necessidades do povo por qual ele lutava. Não por acaso, transformou-se em lenda, um ser mitológico. Como era muito difícil pegar o histórico camarada, as explicações iam da sua habilidade técnica e física às explicações mitológicas.
Reza a lenda da região, que ele tinha poder de se transformar em borboleta, pedra, dentre outros animais e objetos. Não só os moradores, mas até alguns militares começaram a acreditar nas lendas e a temer o negro de dois metros com armas nas mãos e que se transformava na natureza.
6. É preciso transformar o mundo
Qual deveria ser sua orientação num mundo em que não há alternativas ao capitalismo?
Anthony Giddens
Por solidariedade de classe compreendemos essa relação solidária com todos aqueles que pertencem40 à nossa classe, independentemente de terem consciência ou não desse fato. Esta relação tem dois objetivos: primeiro, contribuir com a sobrevivência da nossa classe e apontar os dilemas da classe trabalhadora só podem ter resolução com o fim da sociedade capitalista, pois a pobreza não é um defeito do funcionamento e sim resultado normal da sua lógica; segundo, aproximar as relações com a classe para contribuir com o desenvolvimento da consciência e de organização da mesma.
O trabalho dos Panteras fez com que a comunidade negra os enxergasse como seus representantes e aqueles que ajudavam com a sua sobrevivência. Isso fez com que o partido crescesse muito em suas sedes no país todo. Não só aqueles que eram assistidos pelos Panteras perceberam o papel do partido, mas também aqueles que acompanhavam a luta política mesmo não organizados: músicos, atores e cantoras. Diversos estudantes e celebridades se uniram aos Panteras, com doações e contribuições na compra de livros vendidos pela organização – a fim de ajudar nos custos. Muitos, de tal forma, se aproximaram da luta antirracista e comunista.
No caso de Osvaldão, moradores do Araguaia o apoiaram no combate aos militares, enquanto outros não41. Todavia, foi a proximidade dele no trabalho com moradores no garimpo ou na caça que fez com que ele ganhasse o prestígio de defensor da região, mesmo que nem todos os moradores tivessem clareza do que representava ser um comunista.
Esses exemplos históricos dão indicativos de qual é (ou deve ser) o papel das brigadas solidárias no Paraná. Sua função – enquanto uma brigada de solidariedade – é, portanto, desenvolver a solidariedade com a sua classe, articulada com as demais ações e lutas políticas que vão para além dos efeitos imediatos. Trata-se das lutas por direitos, greves, combate às opressões e outras tarefas (táticas) ligadas a estratégia da revolução brasileira. As brigadas são, nesse sentido, um aspecto de um amplo conjunto de ações políticas dos comunistas. Seus resultados, portanto, nem sempre serão visíveis, diretos ou quantitativos. Como no caso de Osvaldão, nem todos perceberam ou se aproximaram da causa.
A solidariedade de classe tem como objetivo último, portanto, o fim dessa sociedade e, assim, seu próprio fenecimento, que só pode ocorrer em definitivo na esfera da produção42 material da vida. Ela é um germe que se ergue dentro do modo de vida que se busca negar. A solidariedade bem-sucedida implica um processo que leve a um estado de coisas qualitativamente diferente. Portanto, ela não termina em si mesma. Ela só acaba se negando.
7. Referências:
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DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009
DEAN, Jean. Camarada: um ensaio sobre pertencimento político. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2021.p.70.
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GRENNE II. O legado dos Panteras Negras. Disponível em: https://jacobin.com.br/2019/09/o-legado-do-partido-dos-panteras-negras/ acesso em: 21.01.2022
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MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. 6º edição. São Paulo: Cortez, 2010.
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SANKARA, Thomas. Podemos contar com Cuba. Entrevista a Claude Hackin em 1987. In: MANOEL, Jones; FAZZIO, Gabriel Landi. Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. São Paulo, SP: autonomia literária, 2019.p.425-429.
TONET, I. A propósito de “Glosas críticas”.. São Paulo, 2010. (Prefácio). in: MARX, Karl. Críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social” – De um prussiano. São Paulo: Expressão Popular, 2010.p.7-40.
VISENTINI, Paulo Fagundes. As revoluções africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo, Ed. Unesp, 2012.
WRIGHT, Erik Olin. Como ser anticapitalista no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2012.
Notas:
1 Texto preparado para debate público e formação da militância ligada a Brigada Solidária Laudelina de Campos Melo, realizado em 13 de fevereiro de 2020 no Parque Alfredo Werner Nyffeler (vulgo Buracão) em Maringá/Paraná.
2 Militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira e do Partido Comunista Brasileiro, núcleo de Maringá.
3 Pelo menos no caso de Maringá, com apoio do MST (Escola Milton Santos de Agroecologia), Maringá Vegano e a contribuição de outros camaradas e amigos do partido.
4 A brigada em Maringá atua principalmente com um grupo de imigrantes haitianos, mas também outras pessoas que procuraram ajuda, como algumas famílias da cidade de Sarandi.
5 A Hidra, segundo a mitologia grega, era um monstro com corpo de serpente e muitas cabeças, que foi vencida por Hércules. Ela vivia em um Pântano na cidade de Lerna. A cada cabeça que Hércules arrancava, outras duas cresciam. O filho de Zeus só venceu o monstro colocando fogo e impedindo que as cabeças cortadas crescessem novamente.
6 Como diz Marx, as categorias exprimem, portanto, formas de modo de ser, determinações da existência.
7 Trato aqui como alienação o conjunto de objetivações que tornam-se obstáculos ao desenvolvimento humano. É a desumanidade criada pelo próprio ser social, como diz Lukács em a Ontologia do ser social. Para uma análise mais detalhada, no que se refere a essa categoria na relação dos seres humanos com a natureza, com o gênero humano e com a sua atividade produtiva, ver o livro “A teoria da alienação em Marx”, de István Mészáros.
8 Ver sobre isso o capítulo último da Ontologia de Lukács sobre o problema da alienação.
9 Solidariedade não é, portanto, um simples conceito, mas uma categoria da realidade. A solidariedade não é aquilo que penso, sinto ou imagino – não se trata aqui de como cada um vê, ou do óculos que se usa. Ela é uma forma de relação social demarcada e limitada pela momento histórico, ou seja, para compreendê-la “[…] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos” (MARX; ENGELS, 2009, p.30). Ou seja, parte-se do que a solidariedade é, ou tem sido nos últimos 500 anos.
10 Nas palavras de Marx e Engels: “Uma parte da burguesia deseja remediar os males sociais para assegurar a estabilidade da sociedade burguesa. Nela se contam economistas, filantropos, humanitários, melhoradores da situação das classes trabalhadoras, organizadores de caridade, protectores dos animais, fundadores de ligas anti-alcólicas, reformadores ocasionais dos mais variados” (MARX; ENGELS 1975, p.96, grifo meu). Assumindo uma postura remediadora de alguns males sociais, essa parcela da burguesia pretende despolitizar as lutas sociais de cunho revolucionário, colocando a ordem burguesa como natural e mitificando a existência das diferentes classes sociais. Essa questão será mencionada melhor no item “O canto da sereia: a solidariedade neoliberal”.
11 É necessário responder a ideia de essência e natureza humana, uma vez que a propriedade privada – dos meios de produção – é o elemento determinante da solidariedade na sociedade de classes, porque ela é o fundamento ontológico da miséria.
12 A expressão “face mais humana” tem origem no livro de Bernardo Kliksberg, “Por uma economia de face mais humana”, editado pela UNESCO em 2003. Este livro é uma (suposta) crítica ao neoliberalismo. Todavia, em regra, tal lema defende os mesmos objetivos, mas por vias mais moderadas. Por exemplo, a ampla atuação humana nas resoluções dos conflitos e problemas sociais a partir da ideia de capital social.
13 Sobre isso, consultar: LUKÁCS, Gyorgy. A decadência ideológica e as condições gerais da pesquisa.1992 In: Paulo NETTO; COUTINHO, Carlos Nelson (orgs.) Lukács. 2.ed. São Paulo: Ática, 1992. pb.109-131.
14 Sobre essa característica da ciência burguesa, de atribuir os problemas da sociedade a outros motivos que não sua própria lógica, cabe ressaltar que a crítica se refere: “[…] à ciência social burguesa em seu conjunto. […] Pois, afinal, o que faz essa ciência senão atribuir os males sociais ora à imperfeição humana, ora à falta de recursos, a falha administrativas, à falta de vontade política, à insensibilidade do governo e/ou das classes dominantes, à indolência dos próprios pobres, à falta de educação, a políticas sociais equivocadas, à falta de assistência. Enfim, nenhuma novidade decisiva em relação a 400 anos atrás” (TONET, 2010, p.14).
15 Os neoliberais, apesar de terem sua concepção sobre o papel do Estado bem definida quanto a não intervenção das questões sociais, admitem algumas poucas ações em casos específicos. Por exemplo, as políticas “focalizadas” como políticas de cotas foram defendidas por vários deles. Ações políticas em casos de catástrofes naturais, dentre outras ações pontuais e fragmentadas.
16 É preciso ter claro uma relação decisiva: ao mesmo tempo que é necessário tencionar o Estado por políticas sociais, aumento salarial, etc. em última análise, só com a abolição do Estado (como condição essencial) será possível pôr fim a sociedade (e solidariedade) burguesa.
17 O cidadão “solidário” opera do ponto de vista da base material (forma de sociedade) que dá origem e reproduz as manifestações que ele denuncia e diz combater. É um personagem de Cervantes lutando em montes e vales contra moinhos de vento que ele acredita serem os monstros.
18 Apesar das diversas discordâncias com as posições de Wright (2010) – Como ser anticapitalista no século XXI? – seu texto tem uma contribuição importante a esse debate.
19 São os valores que fazem as pessoas assumirem posturas políticas em determinados assuntos. É por acreditar na democracia, solidariedade, ou liberdade que elas entram em grupos, igrejas ou partidos para lutar por aquilo que acreditam. Por isso, a radicalização dos valores é tarefa fundamental. É preciso contribuir com a passagem da consciência imediata da “liberdade” na perspectiva burguesa para a perspectiva revolucionária.
20 Como disse o poeta curitibano: “na luta de classes, todas as armas são boas: pedras, noite e poemas”.
21 Sobre isso Mauro Iasi é pontual: “hoje, como antes, a luta de classes se expressa também como uma luta entre valores, entre concepções de mundo, entre ideias sobre uma base material em constante mudança. A burguesia construiu sobre sua autonomia de classe uma autonomia histórica através de um conjunto de valores que desempenham o duplo papel de a diferenciar da ordem feudal ao mesmo tempo em que apresentavam seus interesses particulares como universais. O proletariado hoje ao mesmo tempo em que luta por sua autonomia de classe deve saber constituir um conjunto de valores que edifiquem uma visão de mundo que desempenhe o mesmo papel duplo, ou seja, garanta sua autonomia em relação à burguesia e apresente seus interesses de forma a conquistar o papel de “cabeça e coração” (IASI, 2002, p.32).
22 BLAIR, Tony; SCHROEDER, Gerhard. Europa: A Terceira Via / O novo centro. 1999.
23 Anthony Giddens, nascido em 1938, é o principal organizador da teoria política da Terceira Via. Ele foi assessor do ex-primeiro-Ministro inglês Tony Blair e passou a ocupar em 1996 o cargo de reitor da London School of Economics. O construto teórico da Terceira Via está organizado especialmente em três obras de Anthony Giddens: Para Além da Esquerda e da Direita: o futuro da política radical (1996), A Terceira Via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia (2001) e A Terceira Via e seus críticos (2001b).
24 Stiglitz atuou como professor e pesquisador em Oxford e Cambridge, na Inglaterra, e Princeton, Stanford e Columbia, nos Estados Unidos. Entre os anos de 1993 e 1997 ocupou o posto de chefe do conselho de assessores econômicos do governo Bill Clinton, na Presidência dos Estados Unidos. A partir de 1997, assumiu a cadeira de economista-chefe do Banco Mundial, de onde saiu em 2000, depois de criticar publicamente as políticas adotadas tanto pelo próprio banco quanto pelo Fundo Monetário Internacional. Ele discordava dos modelos neoliberais impostos aos países em desenvolvimento, que não consideravam prioritários os aspectos humanos. Além disso, foi prêmio Nobel de economia em 2001. Atuou no Banco mundial de 1997-2000. Escreveu um livro intitulado: A globalização e seus malefícios: a promessa não cumprida de benefícios globais.
25 Apesar de se dizerem opositores do neoliberalismo, compreendo que eles se distanciam apenas em algumas posições táticas, mantendo o núcleo duro do neoliberalismo intacto. Por isso, concordo com as análises de Martins (2009) que os enuncia como neoliberais de Terceira Via, ou social liberais como descreve Castelo (2013).
26 Conforme Montaño (2010, p.22) “[…] o que é chamado terceiro setor refere-se na verdade a um fenômeno real inserido na e produto da reestruturação do capital, pautado nos (ou funcional aos) princípios neoliberais: um novo padrão (nova modalidade, fundamento e responsabilidades) para a função social de respostas às sequelas da ‘questão social’, seguindo os valores da solidariedade voluntária e local, da auto-ajuda e da ajuda-mútua”.
27 Para Giddens, este declínio cívico é, especialmente, um declínio moral.
28 Uma comunidade de indivíduos autônomos seria autossuficiente e, portanto, não precisaria de uma intervenção estatal. A terceira Via buscou então forjar um determinado tipo de política para a criação da subjetividade de um cidadão deste tipo, por isso ela deixa que “os indivíduos e os grupos façam as coisas acontecerem, em vez de recebê-las já prontas” (GIDDENS, 2001b, p.321-322). Quando a classe trabalhadora falava em autonomia, os neoliberais destorceram e lhe deram precarização em forma de autonomia.
29 Ver sobre isso o item IV, da Lei geral da acumulação capitalista, no livro primeiro do Capital em que Marx debate o caráter antagônico da acumulação capitalista: “ela ocasiona uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital. Portanto, a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no polo oposto (MARX, 2013, p.721, grifo nosso).
30 Conforme Montaño (2010, p.22) “[…] o que é chamado terceiro setor refere-se na verdade a um fenômeno real inserido na e produto da reestruturação do capital, pautado nos (ou funcional aos) princípios neoliberais: um novo padrão (nova modalidade, fundamento e responsabilidades) para a função social de respostas às sequelas da ‘questão social’, seguindo os valores da solidariedade voluntária e local, da auto-ajuda e da ajuda-mútua”.
31 O cidadão é um voluntário da ordem burguesa, é um sujeito altruísta e colaborador que, ao invés de reivindicar direitos, realiza ações em benefícios de terceiros, da comunidade e do país sem se envolver com política. É aquele que preza pelo bem comum de maneira ativa e criativa, sem esperar a intervenção do aparelho de Estado para o enfrentamento dos problemas sociais. Este tipo de sujeito, solidário e voluntario, se constitui numa das mais importantes expressões da nova sociabilidade constituída com o neoliberalismo no Brasil.
32 A solidariedade nas relações de trabalho aumenta a produtividade e evitam problemas que influenciem na produção das mercadorias. Em seu estudo “racismo, machismo, capitalismo identitário: as estratégias das empresas para questões de gênero, raça e sexualidade” Pablo Polese dá indicativos de como tem sido lucrativo para as empresas prestar solidariedade as lutas anti-opressões, inclusive as incorporando, como fatores de crescimento e maior produtividade.
33
Expressão usada por Valério Arcary em seu texto sobre cotas raciais: ARCARY, Valério. Por que as cotas são uma proposta mais igualitarista que a equidade meritocrática? Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v.1, n.24, 2007, p.106-109.
34 Angela Davis comenta que, historicamente nos EUA, a luta pela igualdade racial era tida como “coisa de comunista” e que diversos nomes importantes da luta contra o racismo eram tachados de comunistas, de forma pejorativa, como tentativa de desqualificação ao melhor estilo do Macarthismo, tentando ligar antirracistas e comunistas a uma imagem de criminosos, subversivos e traidores da nação.
35 Assim como tratado no mais importante filme sobre essa história: “Mississipi em Chamas”, de Alan Parker, com Willem Dafoe.
36 O filme mostra como é preciso construir o imaginário de quem é o inimigo, como ele fala, se veste e – principalmente – com quem ele anda. Um branco que anda com negros só pode ser comunista. O que se comprova em outra cena, quando um representante do Estado fala sobre o aqueles que estão “destruindo a ordem” e a liberdade com manifestações, marchas e protestos: “Não são americanos brancos, e sim comunistas”.
37 Sobre a expressão “colete moral”, ver o documentário “Cuba e o Cameraman”, de Jon Alpert (2017). O documentário, exibido pela primeira vez no 74º Festival Internacional de Cinema de Veneza, conta que, em 1959, Fidel estava a caminho dos EUA e foi questionado sobre estar ou não usando seu colete a prova de balas. Instantaneamente, o comandante respondeu, abrindo a camiseta e com o peitoral à mostra sem proteção: “vou desembarcar assim em Nova York. Tenho um colete moral!”
38 Guerrilheiros Cubanos (mais de 200 mil) combateram em Angola, contra forças dos colonialistas da África do Sul. Em sua maioria voluntários (VISENTINI, 2012). Cuba ajudou Angola até mesmo após a vitória do MPLA: “Sem a intervenção da União Soviética e dos seus aliados nas lutas da África Austral, a libertação desta região seria provavelmente ainda mais retardada, em ao menos uma geração. As armas aperfeiçoadas utilizadas pelos africanos na África Austral – especialmente os mísseis solo‑ar empregados nas guerras do Zimbábue – provieram em geral de países socialistas. Quanto à intervenção das tropas cubanas na luta em defesa da soberania de Angola, tratou‑se aqui do maior apoio externo já prestado em uma guerra de libertação africana (MAZRUI, 2010, p.143, grifo meu).
39 Citado em: LAMRANI, Salim. Fidel Castro, internacionalista solidário. 2015. Disponível em: <http://www.sintesecubana.com.br/2015/04/fidel-castro-internacionalista-solidario.html?fbclid=IwAR1G3Rj5rPMpMzsTmpQhVjfD9ZRHQ0eKrJaTtZ06CYrxnaBVCfrY3BPwaxg>. Acesso em: 26 fev. 2020.
40 Solidariedade de classe pressupõe uma identidade ligada às relações sociais e a uma consciência – por parte dos militantes comunistas – de classe para si. É a nossa identidade que solidifica a identificação com a causa e dá sustentação às ações.
41 Mateiros, pessoas que sabiam os caminhos da mata, contribuíram com os militares na caça de Osvaldão. Alguns foram forçados, outros não.
42 Como dizem Marx e Engels na obra a Ideologia Alemã: “aquilo que eles [indivíduos] são coincide, portanto, com a sua produção, com o que produzem e também como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção” (MARX; ENGELS, 2009, p.25, grifo nosso).