O artista tem que acabar (Seu Edgar)
Um ensaio para os artistas de esquerda, por Rafael Ayres – Coletivo Cultural Vianinha – São Paulo
Sou muito mais guerrilheiro que MC (com todo respeito) – Don L
Em 2018, durante uma oficina de fotografia abstrata, o professor disse algo mais ou menos assim sobre arte: se vocês querem fazer arte, então procurem um emprego em outra área. Só assim vocês conseguirão se dedicar ao seu processo artístico sem as interferências do dia-a-dia, como se sustentar. O que na época pareceu uma forte defesa da produção artística “pura”, fora da correria do capitalismo, para a livre expressão, hoje me parece pura bobagem. Explico: ao retirar a produção artística das amarras da relação capitalista, para que ela se expresse livremente, na verdade você está retirando a produção artística da própria realidade em que vivemos; subordinar a arte ao nosso tempo livre – e chamar de hobby – significa aceitar o domínio capitalista na produção artística.
A arte é produzida dentro do nosso sistema. É ilusão achar que há alguma outra forma de produzir arte (feita aqui uma ressalva que me refiro a pessoa que produz arte como a pessoa que vive dentro do sistema capitalista, em ambiente citadino na maioria dos casos). Até porque arte é resultante do trabalho humano; produzir arte é um trabalho como outro qualquer. Arte e trabalho possuem uma natureza criadora comum (1) – no caso, nós. Entender a produção artística dentro do signo do capitalismo é entender que os modos de produção capitalista interferem diretamente no fazer artístico. Contudo, arte não é meramente um reflexo desse sistema; este tipo de análise – que enxerga a produção cultural como reflexo de uma sociedade e dos seus meios de produção – é pobre, incompleta, elimina a criatividade e engessa todo um fazer para se adequar em algum academicismo inútil (2).
A produção artística pode estar à margem da indústria (3) – seja por uma exclusão dessa própria indústria, que não enxerga valor de troca no produto produzido, excluindo e marginalizando a produção, tanto quanto por uma falta de estruturação da própria indústria em um determinado local; e também completamente cooptada por uma indústria cultural (como a produção cinematográfica da Marvel / Disney). E há toda uma escala de variações e contradições entre esses dois pólos – como exemplos, o potencial contra hegemônico do samba, do hip-hop, do funk na música; pixo nas artes visuais; entre outros – onde o fazer artístico deve ser analisado e compreendido. O ponto, neste ensaio, é entender que a arte, vendida como a liberdade do ser humano (qual “liberdade”, veremos mais para frente), o pote de ouro para além da exploração do homem pelo homem, também e subjugada é explorada tal como os outros tipos de trabalho são dentro do capitalismo.
Retomando a tese do início do texto, querer fazer uma arte “fora do sistema” é somente conformar-se com o próprio capitalismo, tentando inutilmente manter-se fora dele. É irresponsável. É uma expressão individualista, alienada, cindida da sociedade, operando, portanto, a própria mistificação do trabalho dentro da arte – operação cultuada e motivada pela burguesia. Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, já havia percebido essa questão:
“Acredito que isso ocorreu à maioria de nós. A realidade sufocante que se vive lá fora (…) é deixada de lado com o teatro. A minha irresponsabilidade – que fatalmente se chocaria com a minha sobrevivência (exceção feita aos Baby Pignatari) – poderia continuar a ser exercida – remunerada. A irresponsabilidade cultural, emocional, digamos assim, poderia continuar a ser exercida – porque agora ela me sustenta economicamente. É característico em todo meio artístico a repulsa por todos os problemas da realidade. Os artistas criam outra realidade… E transformam as suas verdades inclusive como motor social de primeira importância. (…) O artista parte para outra realidade e ali consegue de certo modo justificar sua existência – através da liberdade de ação que encontra – sem pensar que ela é exercida em termos de perpetuação da mesma realidade de selos e firmas reconhecidas. O artista, no seu teatro, pode continuar a ser o herói imaculado – pode continuar a ser o Flávio Rangel – jogando violentamente na cara do público a sua mesquinhez”. (4)
Não podemos fugir da realidade colocada anteriormente: arte é resultante do trabalho humano. Aliás, fazer arte dá muito trabalho. Deixo aqui as palavras do camarada Thiago Cervan, inspirado em Marx:
“A arte não nasce do talento individual, não brota espontaneamente da mente de seres iluminados. É antes produto de seu tempo, e só pode ser compreendida em seu contexto histórico determinado. Como afirmam Marx e Engels em A Ideologia Alemã: ‘A concentração exclusiva do talento artístico em alguns indivíduos e, com isso, a sua permanente asfixia em meio às grandes massas é consequência da divisão do trabalho’. Enquanto uns sobrevivem cantando e recebendo milhões, outros constroem prédios com o suor de seu rosto. E outras pessoas não conseguem nem se vender enquanto força de trabalho, não fazem nem mais parte do exército industrial de reserva. Temos um processo de desindustrialização concomitante com as novas formas de explorar o trabalho que gerou um contingente de ‘inempregáveis’. A arte, tal como hoje a conhecemos, só pode existir graças ao acúmulo de riqueza proporcionada pela massa de trabalhadores anônimos que vendem sua força de trabalho para conseguirem garantir minimamente sua reprodução. Essa divisão entre quem somente vive ‘pensando’ e quem ‘executa’ é o que proporciona a ‘concentração exclusiva de talento em alguns indivíduos’ – a divisão trabalho”. (5)
Tentar escapar disto é pura alienação. Dizer que é fruto de inspiração, ou alguma característica sobrenatural à arte é jogar as regras do capital, achando-se fora do sistema por alguma questão estúpida de superioridade moral – a genialidade, uma vocação, um dom divino? É querer sentir-se fora de um sistema que oprime a grande maioria da população mundial, numa tentativa estapafúrdia de fugir da exploração e também da responsabilidade de lutar contra essa exploração. Afinal, como bem colocou Sérgio Ferro:
“o trabalho livre (trabalho realizado pelos artistas) merece respeito. Como ele é privilégio de seres superiores, – os gênios -, por tabela fica demonstrado que os que trabalham subordinados são naturalmente inferiores. […] Que desafogo para os exploradores descobrir que sua violência obedece aos planos celestes que enxertaram a necessidade da submissão no ser mesmo da maioria.” (6)
Basicamente o que Sérgio Ferro está colocando é o trabalho pretensamente livre dos artistas só pode existir porque existe o trabalho subordinado e alienado da grande maioria da sociedade. Mistificando o próprio trabalho artístico para apresentar a obra de arte como algo diferente do trabalho (ou seja, o artista que não quer ser visto como trabalhador subordinado), o que ocorre, de fato, é o reforço (ainda que involuntário) da estrutura que oprime a todos os trabalhadores e trabalhadoras. Portanto,
como que um artista pode combater o autoritarismo e o fascismo de nosso tempo, se o ilustre artista se coloca acima do céu e da terra, respondendo um chamado de deus?
Mais uma vez: antes do artista, somos trabalhadores – e me permito discordar do Vianinha. (7) Produzir arte é um trabalho, e como tal, precisamos nos reconhecer enquanto trabalhadores. Trabalhadores de uma categoria que ainda não se reconhece completamente como tal. Em sentido estrito (o da produção, seja ela alienada ou não), há diferenças na forma em que trabalhamos – em que pese essa diferença vem diminuindo, na minha visão. O nosso trabalho, diferentemente da maioria da classe trabalhadora, ainda não é alienado (em sua maioria – há de se pensar na produção do audiovisual que ocorre grande divisão do trabalho). Temos controle do processo (ainda). Esperam de nós a “originalidade”, a criatividade. O escultor, em tese, ainda pode esculpir o que quiser. O compositor compõe livremente. Mas a perversidade da exploração é a ilusão de termos o controle da nossa produção e do nosso tempo (já viu a dificuldade de conseguir vender nossa arte? De conseguir financiamento? De conseguir que paguem decentemente por um show?). A ilusão de uma liberdade? Que liberdade é essa? Lenin já a define muito bem:
“Em segundo lugar, senhores individualistas burgueses, devemos dizer-vos que os vossos discursos sobre a liberdade absoluta não passam de hipocrisia. Numa sociedade baseada no poder do dinheiro, numa sociedade em que as massas dos trabalhadores vivem na miséria e em que um punhado de ricos vive como parasitas não pode haver “liberdade” real e efetiva. É livre em relação à sua editora burguesa, senhor escritor? Ao seu público burguês, que lhe exige pornografia em romances e quadros, a prostituição, sob a forma de “complemento” da “sagrada” arte cênica? Esta liberdade absoluta é uma frase burguesa ou anarquista (porque, como concepção do mundo, o anarquismo é o burguesismo voltado do avesso). Não se pode viver na sociedade e ser livre em relação à sociedade. A liberdade do escritor, do artista, da atriz burgueses é apenas uma dependência mascarada (ou que hipocritamente se mascara) do saco do dinheiro, do suborno, da situação de viver por conta de alguém.” (8)
É necessário lembrar que parte destes artistas possuem outras formas de renda para sobreviver além da sua própria produção – e é aqui a justificativa da diminuição das diferenças na forma do trabalho, afinal está cada vez mais impossível sobreviver somente da produção artística sem algum malabarismo: são professores, oficineiros, trabalham regularmente para alguma empresa, fazem trabalhos free lancer em áreas correlatas como a publicidade, são contratados – ou melhor – são precarizados com os famosos “Pjotinhas” – da indústria cultural (produtoras, emissoras de TV, estúdios, etc.) e outras formas de sobrevivência. Entendem-se como trabalhadores e artistas, sentem a exploração a que são submetidos; porém, em sua maioria, vislumbram a arte como uma tábua de salvação, uma válvula de escape (e é inegável que arte também tenha essa função – não estou negando esta possibilidade): seja na possibilidade de ganhar reconhecimento e fama em um futuro próximo ou então justamente como um refúgio temporário da opressão deste sistema. Mas para fugir da opressão deste sistema, você acaba tornando-se porta-voz do próprio sistema. (9) Você amansa. Você segue o que a gravadora sugere. Você submete-se ao último truque do algoritmo para manter as views, gerando milhares de visualizações para propaganda. E caso você chegue lá, famoso e bem recompensado financeiramente, finalmente acumulou dinheiro para estar livre de todas as amarras e produzir o que bem quiser. Porém, para manter essa grana (e a vida boa, por que não?) lá estará você, fazendo seu dinheiro render em aplicações financeiras e outros negócios paralelos que continuam a explorar a grande massa que continuou lá embaixo. Parabéns gênio. Aposto que Elon Musk quer ser seu amigo agora.
Isso num é sobre onde cê vem, é sobre onde cê quer chegar
E o que vai mudar pra quem vem de onde cê vem quando tiver lá
Rapper
Cê fez uma grana e num trouxe ninguém
Num fala que isso é hip-hop
(Fazia Sentido – Don L)
Este é um ensaio para os artistas de esquerda porque acredito que a pessoa que está lendo este texto tem uma preocupação genuína contra a exploração do homem pelo homem. Portanto, entende a provocação feita e pensa em alternativas. Surge uma boa e clássica pergunta da luta política, que devemos fazer sempre: o que fazer?
Reconhecermo-nos enquanto trabalhadores nos fortalece. As lutas dos trabalhadores são as nossas lutas – são as mesmas lutas, de formas distintas. E os outros trabalhadores hão de reconhecer as nossas lutas. Pois seremos iguais enquanto diferentes. Reconhecermo-nos enquanto trabalhadores nos coloca de volta na sociedade. Somos parte, não somos mais os comentadores de fora, produzindo a nosso bel-prazer a nossa análise crítica, tal qual um comentarista da luta de classes – que finge engajar-se na guerra, porém contenta-se, da retaguarda, com os aplausos dados pelos próprios pares.
Uma vez estando dentro da sociedade, aí sim podemos lutar as nossas lutas, lutar contra o fascismo, somar as nossas forças com o resto da massa trabalhadora. E tão importante quanto somar as forças, permitiremos assim que todos os trabalhadores também se identifiquem como potenciais artistas. A arte não pode jamais ser o resultado de um grupo seleto de “iluminados escolhidos”. A arte é de todas as pessoas trabalhadoras deste país, para todas as pessoas trabalhadoras deste país, e deve ser feita e experimentada por todas as pessoas trabalhadoras deste país. Essa compreensão de unidade na diferença trará entendimento a todos e fortalecerá todas as lutas nos diversos campos. A exploração dos burgueses recai sobre todos, em formatos diferentes. Somente a ação conjunta e coordenada dos trabalhadores derrubará este sistema.
É hora de descermos do palco. É hora de somar forças em busca do objetivo comum. Devemos produzir, sim, peças críticas a esse sistema, mas temos também o dever de nos inspirar nas lutas históricas dos trabalhadores. É hora de resgatarmos a nossa própria história. Resgatarmos nossa força enquanto categoria. Olhar para o passado, das lutas, lembrar-nos dos perseguidos, assassinados, torturados, refugiados políticos… É hora de resgatarmos nossa organização para além de uma luta por verba pública (migalhas). É hora de fortalecer a luta por políticas estruturantes que beneficiem toda a sociedade. É hora de criarmos o novo. De derrubarmos o antigo. A cultura é nossa. Não é da burguesia. Não é dos conservadores. É nossa. Nós a produzimos.
É hora de abandonarmos os artistas no céu para juntarmo-nos aos trabalhadores na terra.
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NOTAS:
(1) “foi Marx quem viu claramente a relação entre a arte e o trabalho através de sua natureza criadora comum e, consequentemente, concebeu este último não apenas como uma categoria econômica, mas como categoria filosófica ambivalente (fonte de riqueza e de miséria humanas). A concepção da arte como atividade que, ao prolongar o lado positivo do trabalho, evidencia a capacidade criadora do homem, permite ampliar suas fronteiras até o infinito (…). A função essencial da arte é ampliar e enriquecer, com suas criações, a realidade já humanizada pelo trabalho humano.” VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. As Ideias Estéticas de Marx. Rio de Janeiro, ed. Paz e Terra, 1968. p. 47
(2) “A arte, por seu turno, pode cumprir uma função cognoscitiva, a de refletir a essência do real; mas só pode cumprir esta função quando cria uma nova realidade, não mediante a cópia ou a imitação do já existente. Ou seja, os problemas cognoscitivos que o artista se coloca devem ser resolvidos artisticamente. Esquecer isto – isto é, reduzir a arte à ideologia ou a uma mera forma de conhecimento – é esquecer que a obra artística é, antes de mais nada, criação, manifestação do poder criador do homem.“ Idem. p.45
(3) “Uma cultura residual está normalmente a certa distância da cultura dominante efetiva, mas temos de reconhecer que, em atividades culturais reais, ela pode ser incorporada. Isso porque uma parte ou versão dela – especialmente se o resíduo for de alguma área importante do passado – terá de ser, em muitos casos, incorporada se a cultura dominante efetiva quiser ter significado nessas áreas, pois em certas áreas a cultura dominante não pode permitir muitas dessas práticas e experiências anteriores a ela sem pôr em risco seu domínio. Assim, as pressões são reais, mas alguns significados e práticas genuínos e residuais sobrevivem em alguns casos significativos.” WILLIAMS, Raymond. Base e Superestrutura na teoria cultural Marxista in Cultura e Materialismo. São Paulo, ed. Unesp , 2011 p. 56.
(4) VIANNA FILHO, Oduvaldo. Alienação e Irresponsabilidade in Teatro, Televisão e Política. São Paulo, ed. Brasiliense, 1983. p.55.
(5) CERVAN, Thiago. Artistas do Sertanejo Pop e a luta de classes. Maio de 2021. Disponível em https://pcb.org.br/portal2/27244
(6) FERRO, Sergio. Artes Plasticas e Trabalho Livre: de Durer a Velazquez. Såo Paulo, ed. 34, 2015. p. 16.
(7) “não gosto da expressão ‘antes de ser artista é um homem’. É ao contrário… antes de ser um homem, ele é um artista”. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Alienação e Irresponsabilidade in Teatro, Televisão e Política. São Paulo, ed. Brasiliense, 1983. p.58
(8) LENIN, Vladimir. A Organização do Partido e a Literatura do Partido in o Centralismo Democrático de Lenin, org. Gabriel Landi e Gabriel Lazzari. São Paulo, ed. Lavrapalavra, 2021. p. 215.
(9) “O Sujeito separado, vazio, individual, que assim procura encontrar-se protegendo seus rastros (deixo vestígios, logo existo), é cria do capital – é o oco que sobra o homem é separado de seus meios de trabalho. Ele surge de modo prematuro na arte: o artista tem que renegar seu savoir-faire artesanal: ‘doa’ sua força de trabalho ao mecenas em troca de seu ‘dom’ em espécie, a obra parte levando a mensagem do outro, do contradoador, mais que a sua própria. Sem que possa ser equiparado de modo ao operário, o artista fica no limbo.” FERRO, Sergio. Artes Plasticas e Trabalho Livre: de Durer a Velazquez. São Paulo, ed. 34. 2015. p. 131.
BIBLIOGRAFIA
LENIN, Vladimir. O Centralismo Democrático de Lenin, org. Gabriel Landi e Gabriel Lazzari. São Paulo, ed. Lavrapalavra, 2021
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. As Ideias Estéticas de Marx. Rio de Janeiro, ed. Paz e Terra, 1968.
FERRO, Sergio. Artes Plasticas e Trabalho Livre: de Durer a Velazquez. São Paulo, ed. 34. 2015.
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Teatro, Televisão e Política. São Paulo, ed. Brasiliense, 1983.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo, ed. Unesp , 2011
CERVAN, Thiago. Artistas do Sertanejo Pop e a luta de classes. Maio de 2021. Disponível em https://pcb.org.br/portal2/27244