Lênin e o Partido da Revolução

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Por Marcos Del Roio, via Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia

Organizações políticas do movimento operário surgiram na França já nos anos 30 do século XIX. Decerto a mais importante delas foi a Liga dos Justos, após o ingresso de Marx e Engels renomeada como Liga dos Comunistas, auto dissolvida em 1852. Na experiência da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1874), o internacionalismo predominou amplamente, mesmo com a diversidade das seções nacionais. O primeiro partido político moderno da classe operária foi a social-democracia alemã, um partido nacional que se fez uma forte organização, a qual inspirou a formação de vários outros partidos operários. No entanto, até a virada para o século XX não havia sido desenvolvida uma teoria do partido revolucionário.

Essa reflexão, inédita no marxismo, foi desenvolvida, em primeiro lugar, por Lenin, notadamente no opúsculo Que fazer?, redigido em 1902 por ocasião do II Congresso do POSDR – Partido Operário Social Democrata da Rússia. Esse texto aborda uma temática muito mais ampla do que a teoria da organização, que ocupou bastante espaço no debate da época, mas ainda hoje é dada muita importância. Que fazer? trata, ao mesmo tempo, de uma teoria do desenvolvimento da consciência política revolucionária, de uma teoria da ação política e de uma teoria dos intelectuais revolucionários.

É importante recordar que a teoria do partido de Lenin está vinculada a determinada realidade que era da Rússia feudal absolutista, com um Estado barbaramente repressor e que, ao mesmo tempo, conduzia a Rússia para o capitalismo. Em tal contexto, o Partido teria que atuar na ilegalidade e sob permanente perseguição policial. Nessa situação Lenin propunha que o Partido se organizasse em células clandestinas, que relatariam suas atividades e suas avaliações a uma instância superior que centralizaria as células regionais e uma instância nacional, que centralizaria as instâncias regionais. Recolhidas todas as informações e avaliações vindas da base, a instância central deveria construir uma síntese que anunciasse a posição do Partido. Todo o Partido seria informado pelas instâncias intermediárias, mas o conjunto da classe e da vida social do país saberia das posições deste por meio de um periódico da mais ampla difusão possível. Essa forma organizativa veio a ser chamada de centralismo democrático, através da qual o Partido seria uma organização democrática, centralizada na direção nacional.

Ainda sobre a questão da organização, havia uma discussão crucial a respeito de quem poderia ser considerado membro do Partido. Nessa concepção de Lenin, o membro teria que ser militante de uma célula, militante profissional e de tempo integral, clandestino e que contribuísse com as finanças da organização. Esse rigor era exigência das circunstâncias muito difíceis da luta revolucionária.

Qual seria o perfil desse militante? Teria que contar com preparo teórico ideológico para poder interpretar a realidade social em movimento e para educar outros militantes e as massas ainda não organizadas, entendendo que educar implica em organizar e desenvolver a consciência política da classe. Consciência política significa consciência do Estado, da necessidade de substituir o poder político da nobreza feudal e do Estado absolutista por uma democracia política, a qual, levada ao extremo, seria uma ditadura democrática do proletariado e do campesinato pobre. Significa, em outros termos, que o militante deve vincular teoria e prática revolucionária. Assim que deve ser um intelectual revolucionário empenhado na transformação radical da vida social e que atua na totalidade contraditória do real. A consciência de classe não se limita e não se desdobra diretamente das relações econômicas, mas advém da luta política de classes e da educação que o partido promove. A ação política está entrelaçada com a teoria política, e a teoria só se comprova se for capaz de sustentar a ação revolucionária.

Mais tarde, em luta travada entre 1908 e 1912, Lenin compreendeu que a clareza ideológica e o programa definem e organizam o partido na ação política que desenvolve. Quando a revolução eclodiu, em 1917, o Partido estava relativamente preparado para disputar, com outras forças políticas e ideológicas, a direção do movimento operário. O Partido se colocou no debate ideológico e em todas as lutas esteve ao lado da classe operária em defesa das reivindicações imediatas e oferecendo uma perspectiva histórica de fundação de um novo Estado a partir dos conselhos (sovietes) que os próprios operários haviam constituído como forma organizativa de democracia direta. A luta do Partido era por fazer com que as suas posições e programa preponderassem nos conselhos. Quando isso aconteceu, em novembro de 1917, fundou-se o Estado dos conselhos.

A guerra civil, desencadeada pelos exércitos czaristas restantes, com amplo apoio armado do imperialismo e mesmo de partidos que haviam se oposto ao projeto de poder conselhista, obrigou o partido a se militarizar e a organizar um exército de defesa da revolução. Quando a guerra civil terminou a situação da Rússia revolucionária era de catástrofe social e de isolamento internacional e seria a partir dessa realidade que o Partido de Lenin deveria atuar: sendo o Partido de governo e dirigente de um novo Estado, responsável pelo soerguimento econômico e cultural de todos os povos do que logo seria a URSS. A situação era tão dramática que foram tomadas medidas para neutralizar a oposição interna, mesmo as que viessem de algum impulso popular, e foram proibidas a existência de frações organizadas dentro do Partido. Nesse ponto é importante lembrar que o POSDR, desde 1902 havia evidenciado a existência de duas grandes tendências marxistas na Rússia: os bolcheviques (maioria), vitoriosos naquele II congresso, e os mencheviques (minoria). Só em 1912 ocorreu a separação completa entre essas frações. Em todo o decorrer da revolução, o partido bolchevique, agora já denominado Partido Comunista, contou com uma fração dita de “esquerda”. A decisão de suprir as tendências organizadas, em princípio, não significaria a supressão do debate democrático e da divergência dentro do Partido, seria apenas uma nova forma de organizar o centralismo democrático.

Nota-se então que o partido revolucionário, conforme Lenin concebeu, é um partido capaz de se adequar a diversas condições de luta: ilegal e perseguido pelas forças da ordem, na legalidade da democracia burguesa, na organização e direção das forças anticapitalistas, na construção de uma nova forma de poder baseada na democracia popular, com hegemonia da classe operária, uma classe concreta, real, não uma abstração teórica, que se identificaria no partido.

Marcos del Roio

Prof. de Ciências Políticas

UNESP – FFC

Autor de “Adeus Lenin? Práxis e Revolução”, Editora Lutas Anticapital, 2022.

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