O Agronegócio e a Fome: a real relação por trás da falsa promessa

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Por Alexandre Mask, via Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia

No terceiro artigo da série “O Agro é GUERRA, o Agro é MORTE, o Agro é FOME”1, analisaremos, de forma sucinta, a relação entre Agronegócio e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Demonstraremos como a existência do Agrobiz2 inviabiliza o combate à fome, sendo um agente direto de reprodução das desigualdades sociais. Por sua vez, causador de insegurança alimentar grave e doenças como obesidade, ligadas ao baixo valor nutricional dos alimentos de má qualidade que produz, sob o epíteto de “comida”. Este texto não carrega a intenção de esgotar o debate acerca do tema, mas de trazer importantes reflexões para nos auxiliarem na compreensão da nossa conjuntura atual. Para tanto, dividiremos o tema proposto em três partes, uma em cada edição subsequente à partir desta: i) Modernização Agrícola; ii) Reprodução da Fome; iii) Segurança Alimentar e Nutricional. Neste texto, trataremos da parte I.

A constituição e o estabelecimento do Agronegócio forjaram-se, principalmente, sob a ideia de que o crescimento populacional seria incompatível com a produção camponesa tradicional de alimentos e para atender a demanda dos novos bilhões de habitantes do planeta, acompanhando seu crescimento, seria necessária a modernização dos métodos de produção agrícola que conduziria o mundo para a erradicação da fome e da insegurança alimentar (LONDRES, 2011). Nos artigos anteriores, trouxemos elementos que demonstram a verdadeira razão da então chamada modernização agrícola, através da mecanização da agricultura, utilização de sementes transgênicas e monocultivos à base de fertilizantes e agrotóxicos.

No início de junho de 2022, uma pesquisa realizada pela Rede PENSSAN3 revelou que mais de 33 milhões de pessoas não tinham o que comer e quase 60% da população brasileira apresentava algum grau de insegurança alimentar. Por outro lado, as exportações brasileiras do Agronegócio batem seguidos recordes de faturamento, crescimentos de até 30%, com montantes na casa dos R$ 80 bilhões de dólares. Em conversão direta na data de escrita desse artigo, esse valor representa aproximadamente R$ 440 bilhões de reais.

Antes de seguirmos nossa investigação, vamos trazer algumas questões referentes à ética ambientalista para conduzir nossas reflexões acerca do que se conhece como biotecnologia4:

“Podemos alterar a estrutura genética de todos os seres vivos em nome da utilidade e do ganho econômico? Existe um respeito pela vida ou todas as formas de vida, incluindo o homem, devem ser vistas como simples bens no novo mercado da biotecnologia? A manipulação genética de todos os seres vivos é uma herança acessível para todos ou é propriedade privada de algumas corporações? Quem deu a algumas empresas o direito e o monopólio sobre diversos grupos de organismos? Os biotecnologistas acreditam ser os mestres da natureza?. É essa uma ilusão surgida a partir da arrogância científica e da economia convencional, que ignora a complexidade dos processos ecológicos? É possível minimizar as considerações éticas, reduzir os riscos ambientais e ao mesmo tempo manter os benefícios? (…) Quem se beneficia da biotecnologia? Quem perde com ela? Quais são as conseqüências [sic.] ambientais e de saúde pública? Quais tem sido as alternativas propostas? A biotecnologia é uma resposta a quais necessidades? De que forma a biotecnologia afeta o que está sendo produzido, como é produzido, por quem e para quê? Quais são os objetivos sociais e os critérios éticos que orientam as pesquisas? Que objetivos sociais e agronômicos atinge a Biotecnologia?”5

Modernização da agricultura para que e para quem?

Dentre diversos autores, podemos encontrar uma miríade de conceitos de modernização. Como fio condutor neste artigo, adotaremos as duas concepções a seguir: segundo Graziano Neto, a modernização da agricultura é “o processo de transformação capitalista da agricultura, que ocorre vinculado às transformações gerais da economia brasileira recente” (GRAZIANO NETO, 1985 apud TEIXEIRA, 2005, p. 22); para Brum seus principais motivos são: “elevação da produtividade do trabalho visando o aumento do lucro; redução dos custos unitários de produção para vencer a concorrência; necessidade de superar os conflitos entre capital e o latifúndio, visto que a modernização levantou a questão da renda da terra; possibilitar a implantação do complexo agroindustrial no país” (BRUM, 1988 apud TEIXEIRA, 2005, p. 23).

Esse processo de modernização integrou as cadeias de processamento e distribuição de alimentos, através de créditos públicos que viabilizaram a compra de maquinário e insumos agrícolas, tornando a agricultura familiar subordinada à agroindústria por conta dessa dependência, logo “os poucos agricultores empobrecidos que viessem a ter acesso à biotecnologia se tornariam perigosamente dependentes da aquisição anual de sementes transgênicas” (ALTIERI, 2012, p.40-58). Vale registrar que a venda de sementes transgênicas está diretamente ligada à venda de agrotóxicos, ambos fabricados pela mesma cadeia de grandes empresas do Agronegócio (Bayer, Syngenta, Basf, Monsanto, e outras). Após a concentração de benefícios nos agricultores mais ricos acelerar a distância entre esses e os camponeses mais pobres, aumentando a desigualdade rural, as formas de acesso à terra e aos recursos para os desfavorecidos foram drasticamente prejudicadas. A geração de renda foi dificultada, obrigando os camponeses tradicionais a venderem suas terras por preços muito abaixo do seu valor real e submeter-se ao trabalho assalariado, seja no campo, ou quando praticamente expulsos, migrando para cidade. Nesse sentido, com a expropriação forçada, parte dos agricultores tradicionais passaram a trabalhar para os agricultores mais ricos – ideologicamente influenciados por rendas ilusórias e alta produtividade -, e os demais migravam para as cidades, convertendo-se em cidadãos urbanos pobres, dada falta de oportunidade no campo.

Para compreendermos como a modernização agrícola torna-se um obstáculo ao combate à fome faz-se necessário entender como as relações de troca desigual estabeleceram-se no campo. As relações tradicionais antigas se dissolveram após a transformação de todas as coisas em mercadorias; a compra e venda através do contrato “livre” tomaram o lugar dos costumes e direitos históricos (ENGELS, 2019, p.79). A luta de classes no campo se materializa através da relação entre o agricultor familiar e os empresários do Agrobiz, mediada pelo sistema de produção agroecológico que disputa com o agronegócio justamente o camponês, que é a única fonte geradora de valor através do seu trabalho. Vejamos o que diziam Marx e Engels (2007):

“Os indivíduos singulares formam uma classe somente na medida em que têm de promover uma luta contra uma outra classe; de resto, eles mesmos se posicionam uns contra os outros, como inimigos, na concorrência. Por outro lado, a classe se autonomiza, por sua vez, em face dos indivíduos, de modo que estes encontram suas condições de vida predestinadas e recebem já pronta da classe a sua posição na vida e, com isso, seu desenvolvimento pessoal; são subsumidos a ela. É o mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos singulares à divisão do trabalho e ele só pode ser suprimido pela superação da propriedade privada e do próprio trabalho.” 6

Por um lado, a Agroecologia opera de forma antagônica ao sistema capitalista uma vez que prioriza equilibrar a relação metabólica entre os seres humanos e a natureza, oferecendo bases científicas para o desenvolvimento de sistemas produtivos sustentáveis sem a necessidade de uso de produtos agroquímicos. Por outro lado, a engenharia genética consiste em uma ciência reducionista que sobrevive à base de mitos solucionadores de problemas ambientais que não se sustentam (DELLA RIVA, 2020). No sistema capitalista, a agricultura familiar se subordina ao Capital, através da propriedade privada da terra e da divisão do trabalho. Com efeito, ocorre a concentração dos meios de produção do campo pelo capitalista, no caso, o grande empresário do Agronegócio, que gradativamente acumula mais poder de decisão no que e como produzir alimentos.

Façamos um rápido exercício, necessário para compreendermos melhor as exposições desse texto. Como a troca de mercadorias é a base estrutural e estruturante do modo de produção capitalista, resgatemos mais algumas reflexões acerca do tema: o ato de produção é um ato de consumo. Quando nos alimentamos, consumimos o alimento, e ao mesmo tempo, produzimos nosso corpo. A produção é imediatamente consumo, e, o consumo é imediatamente produção, logo, sem produção não existe consumo e sem consumo não existe produção. O consumo e produção assumem um duplo caráter. Produção, distribuição, troca e consumo são dialeticamente partes constitutivas de uma totalidade (MARX, 2007, p. 246-247, 256-257).

Diante disso, torna-se mais perceptível como as relações de troca no campo são dialeticamente interligadas, e qualquer alternativa que não modifique essa estrutura relacional será incapaz de apresentar-se como meio consistente de substituição do modelo estabelecido desde a modernização agrícola, o Agronegócio. A superação dessa relação só pode ser viabilizada mediante a destruição da propriedade privada e do trabalho assalariado.

Outro elemento a ser considerado, não menos importante, é a apropriação e o apagamento dos conhecimentos tradicionais, responsáveis pela conservação e regeneração das florestas há milênios. Laboratórios de grandes empresas ligadas ao Agrobiz, em relações cada vez mais estreitas com o Estado, confrontam diretamente os saberes tradicionais com suas patentes (PORTO GONÇALVES, 2004, p. 3), servindo como estratégia de concentração dos meios de produção agrícolas e manutenção da dependência camponesa, conforme vimos mais acima.

Nesse ponto já podemos compreender como a dialética torna a produção e distribuição de alimentos indissociáveis no modo de produção capitalista, e entendemos a modernização agrícola como elemento central da agudização da luta de classes no campo. Na próxima edição, dando continuidade ao artigo, trataremos da Reprodução da Fome, aprofundando essas relações: por um lado, como a produção no campo é engendrada pelo padrão de consumo. Por outro lado, como este é determinado pela indústria da propaganda do Agronegócio. Portanto, o porquê a promessa da existência do Agrobiz de erradicar a fome é inviabilizada pela própria estrutura dos agronegócios.

“Ecologia sem luta de classes, é jardinagem” – Chico Mendes

Notas:

1 Recomendamos a leitura dos artigos anteriores, para uma melhor compreensão do debate corrente:

Pacote do Veneno: o Agro é GUERRA, o Agro é MORTE, o Agro é FOME

Agronegócios x Natureza: a síntese da morte e da devastação ambiental


2 O termo Agrobiz, utilizado em todos os artigos da série até aqui, é uma contração proposital dos termos Agronegócio e Agribiz (Agribusiness), para demonstrar a subserviência do Agro brasileiro ao imperialismo.

3 Ver em https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/.

4 De acordo com a ONU, “biotecnologia significa qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização específica” (ONU, Convenção de Biodiversidade 1992, Art. 2)

5 (ALTIERI, 1999, p.2-3).

6 (MARX; ENGELS; 2007, p.63).

Referências:

ALTIERI, M. A. Os mitos da biotecnologia agrícola: algumas questões éticas. 1999. Disponível em: http://www.greenpeace.com.br/transgenicos/pdf/mitos_biotecnologia.pdf.

______________. Agroecologia: as bases científicas para uma agricultura sustentável. 3a. ed. São Paulo: Expressão Popular, Rio de Janeiro: AS-PTA, 2012.

DALLA RIVA, Leura; De Marx ao MST: capitalismo financeirizado e forma jurídica como entraves à agroecologia. 2020. 112p.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2019.

LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: ANA -Articulação Nacional de Agroecologia / RBJA – Rede Brasileira de Justiça Ambiental, 2011.

MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

______________; ENGELS, Friedrich; A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã e seus representantes Feuerbach, B.Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846), São Paulo: Boitempo, 2007

PORTO GONÇALVES, C. W. Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais. Inthertesis, v.1, n. 1, 2004.

TEIXEIRA, J. C. Modernização da agricultura no Brasil: impactos econômicos, sociais e ambientais. Revista Eletrônica da Associação dos Geógrafos Brasileiros, Seção Três Lagoas , v. 1, n. 2, p. 21-42, 1 set. 2005.

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