Estado e Eugenia no Brasil
Por Rômulo Caires
A segunda metade do século XIX foi marcada pela emergência e consolidação de uma série de Estados Nacionais ao redor do mundo. A Era do Capital trouxe em seu seio múltiplas confrontações, uma verdadeira guerra de classes, que garantiu a vitória e construção da hegemonia burguesa. Consolidou-se também toda uma série de concepções que buscavam justificar e naturalizar a dominação capitalista sobre o mundo do trabalho. Noções como a de povo ou também a de cidadão ideal foram mobilizadas para delimitar as dimensões de pertencimento e enquadramento populacional. Nesse contexto, surge a eugenia ou a “ciência dos bem nascidos”, sendo o Brasil o locus privilegiado de sua ação.
A eugenia, mesmo que não nomeada diretamente, constituiu-se como aquisição perene das classes dominantes brasileiras, fixando-se como momento fundamental do sistema de dominação aqui operante. Criada pelo alemão Francis Galton nos anos de 1860, tinha como seu mote principal estabelecer medidas de “aperfeiçoamento racial” e formas de prevenir a “degeneração da espécie”. Antes de aprofundarmos na compreensão da eugenia, cabe notar o contexto histórico de sua gênese.
A Alemanha formava-se como Estado-Nação a partir da hegemonia da Prússia, num esquema de “revolução pelo alto” que subordinava os setores plebeus ao domínio militarista e expansionista prussiano. Para alcançar aqueles Estados no qual o capitalismo se desenvolvia amplamente, como também para adentrar na disputa imperialista pela repartição do mundo, a Alemanha apoiou-se na conciliação das classes latifundiárias com os setores emergentes da burguesia, suplantando o campesinato e operariado nascentes a partir da violência e da exploração. É nessa sociedade que a eugenia surge e tem inscrita em si as motivações bélicas do extermínio e da supremacia.
Nesse período, o Brasil já tinha passado pelo processo de Independência e consolidava sua unidade nacional. Com particularidades que serão melhor descritas a seguir, o processo de “modernização” da sociedade brasileira desenvolve-se de forma similar à “via prussiana”, na qual os setores burgueses em ascensão apoiam-se nos antigos setores latifundiários e operam “pelo alto” as transformações exigidas pelos novos marcos do mercado mundial e divisão internacional do trabalho. Porém, diferente da Alemanha, tivemos na América Portuguesa e posteriormente Brasil quase quatro séculos de escravidão negra, fato que condicionou enormemente as determinações materiais da nova sociedade.
Num contexto histórico no qual o expansionismo imperialista necessitava da produção de marcas distintivas para inferiorizar os povos subjugados, emergiam teorias como o darwinismo social, o relativismo cultural, a poligenia e a eugenia como armas de guerra contra as perspectivas de liberdade e igualdade radicais encarnadas pelas lutas operário-camponesas. No Brasil, assim como por exemplo nos EUA, tais teorias foram introduzidas e tiveram enorme prestígio, pois garantiam a naturalização do “lugar do negro” na sociedade e a conformação de “raças inferiores” que poderiam ser dizimadas.
Pensemos na situação vivenciada pelas classes dominantes no Brasil na passagem da Monarquia à República. Muitos diagnósticos apontavam para o “atraso” brasileiro e identificavam nas características de seu povo as marcas de inferioridade que explicavam tal atraso. Os sinais de “degeneração” eram explícitos, apontavam estes diagnósticos, e a via para suplantar as marcas de inferioridade racial do povo brasileiro seria a promoção do que ficou conhecida como “ideologia do branqueamento”. Além do Estado brasileiro ter investido enormes montas para estimular a vinda de imigrantes brancos europeus, construiu todo um arcabouçou ideológico para transformar o negro de “bom escravo” em “mal cidadão”.
Não será possível desenvolver neste texto toda a gama de teorias e concepções mobilizadas pela “ideologia do branqueamento”. Focaremos na análise da eugenia, pois acreditamos que nela encontramos os traços mais típicos da ideologia do branqueamento no Brasil. Como expusemos anteriormente, a eugenia foi criada por Galton, teve enorme repercussão nos EUA e chega ao Brasil principalmente pelas mãos do médico Renato Kewl. A pretensão da eugenia era, dentre outros aspectos, racionalizar a imigração, e para isso formulou estigmas e marcadores fenotípicos para garantir a chegada das raças mais “puras” e sem as marcas da “degeneração”.
Tinha também o objetivo de prevenir e findar a delinquência e para isso se sustentou em conceitos como o de “criminalidade étnica” cunhada por Nina Rodrigues para catalogar “fatores de risco” para o crime. Ao analisar as consequências das postulações de Direito Penal propostas pelo médico de origem maranhense e que se introduziram profundamente na estrutura estatal brasileira, observamos como na verdade o conceito de “criminoso” é uma espécie de a-priori que condiciona fundamentalmente as práticas da polícia e da justiça brasileira. Pois, são justamente os “degenerados” aqueles que se farão visíveis e serão destino da violência estatal.
A eugenia também influenciou enormemente as políticas de reforma urbana nas grandes cidades brasileiras. Também chamada de higienismo, tal perspectiva visava desde o início “embelezar” as ruas e estabelecimentos urbanos a partir da expulsão e extermínio daqueles considerados indesejáveis. Muito mais do que uma prática preocupada com a saúde das amplas massas populares do país, as políticas higienistas viraram braço estatal para a limpeza étnica e promoção do arbítrio contra as pessoas negras, pobres e indígenas. Expulsas de suas terras originais, impedidas pela concentração fundiária de estabelecer mecanismos de auto-gestão, tais populações também não serão bem vindas na paisagem urbana brasileira.
Se após a derrota nazista na Segunda Guerra a eugenia e demais teorias fundamentadas no racismo científico perderam credibilidade em nível mundial, podemos perceber a continuação da eugenia por outras vias a partir de uma série de metamorfoses. Se não temos mais médicos falando em “degeneração”, temos a construção de políticas de saúde e de segurança pública completamente afins dos ideais eugênicos. Pensemos na Guerra às Drogas e nas formas como os EUA generalizaram a produção do medo e militarização da vida cotidiana nas grandes cidades ao redor do globo, fato que contribui diretamente com o encarceramento em massa e extermínio das populações não-brancas.
No Brasil, por exemplo, a Lei das Drogas de 2006 não diferencia claramente o traficante do usuário, deixando livre margem para a ação dos pressupostos da “criminalidade étnica” formulados por Nina Rodrigues. Nessa via, o julgamento não se dará primordialmente pelo fato jurídico, mas, será condicionado pelas ideias de quem seja o “criminoso” em nosso país. Vemos também, a partir do recrudescimento das políticas manicomiais, como os ideais eugênicos operam promovendo o internamento compulsório dos “degenerados” das mal chamadas cracolândias espalhadas pelo território nacional. Não podemos esquecer ainda da manutenção de políticas de esterilização forçada que atinge mulheres negras e pobres, seja por ações diretas, seja por completa omissão do Estado em relação a autênticas medidas de planejamento familiar.
Dessa forma, podemos concluir que, se a eugenia nasce e se desenvolve em um contexto histórico específico de expansão global das relações sociais capitalistas, incidindo principalmente nos países de extração colonial, ela se torna momento fundamental da construção ideológica das classes dominantes e arma sempre à disposição nos momentos de crise social. O retorno de políticas indiretamente influenciadas pela eugenia ou até explicitamente eugênicas nos aponta para a ligação estrutural da política eugênica com a reprodução da ordem do capital. Não superaremos uma enquanto perdurar a outra.