Uma Nakba também na Cisjordânia ocupada

Mariam Barghouti [*]

As forças de ocupação israelenses e os colonos estão aterrorizando a população palestina da Cisjordânia a fim de expulsar e roubar as suas terras.

Durante o último mês e meio, os objetivos genocidas de Israel em Gaza tornaram-se cada vez mais evidentes. O exército israelense não só está massacrando civis, como também está bombardeando o enclave com o objetivo de destruir todas as infraestruturas civis necessárias à vida.

Hospitais, escolas, estações de tratamento de água, todas as fontes de eletricidade – incluindo painéis solares –, armazéns e explorações agrícolas foram visados. Isto tornou a Faixa de Gaza inabitável, obrigando os palestinos a sofrerem uma nova Nakba.

Mas não é só em Gaza que Israel espera livrar-se da população palestina. O desejo de Israel de fazer uma limpeza étnica estende-se à Cisjordânia ocupada, onde um plano semelhante está sendo implementado, embora de forma mais sub-reptícia.

 

Planos de anexação

Separar o genocídio contínuo em Gaza do contexto palestino mais vasto é negar que o alvo dos crimes israelenses não se limita ao movimento Hamas ou à Faixa de Gaza, mas à existência do povo palestino na Palestina histórica como um todo.

Não se trata de um medo imaginário dos palestinos, mas de uma realidade que até os fundadores do Estado israelense admitiram de modo constante e aberto.

“Não há outra maneira senão transferir os árabes daqui para os países vizinhos, e transferi-los todos, exceto talvez [os árabes de] Belém, Nazaré e a velha Jerusalém”, escreveu Joseph Weitz, o diretor do Fundo Nacional Judeu (FNJ), no seu diário em 1940.

“Não deve ser deixada de pé uma única aldeia, nem uma única tribo [beduína]. Só depois desta transferência é que o país poderá absorver milhões dos nossos irmãos e o problema judeu deixará de existir. Não há outra solução”, concluiu.

Em 1948 as milícias judaicas que levaram a cabo uma campanha de limpeza étnica maciça dos palestinos para criar Israel não assumiram o controle da Cisjordânia e de Gaza, não porque não quisessem, mas porque não tinham capacidade para o fazer.

A pressão internacional e os limites das suas próprias capacidades militares impediram-no de o fazer.

Estes territórios serviram também convenientemente de destino para os palestinos expulsos da costa mediterrânica, de cidades como Yaffa, Safad, Lydd e das aldeias circundantes, de que as milícias se tinham apoderado.

A guerra de 1967 deu a Israel a oportunidade de concretizar o seu objetivo de dominar toda a Palestina histórica. Ocupou Jerusalém Oriental, a Cisjordânia e Gaza, bem como a península egípcia do Sinai e os montes Golã sírios, que continuam ocupados até hoje.

Desde então, foram elaborados vários planos para anexar parte ou a totalidade da Cisjordânia e de Gaza, empurrando simultaneamente a população palestina para bantustões separados ou para a vizinha Jordânia e o Egito.

A construção de mais de 150 colonatos israelenses [totalmente ilegais à luz do direito internacional] e de 120 postos avançados em toda a Cisjordânia ocupada é uma política que decorre destes planos.

O mesmo aconteceu em Gaza até 2005, altura em que Israel desmantelou os seus colonatos e impôs um cerco ao território dois anos mais tarde.

Sob o pretexto de “proteger” os 700 mil colonos, Israel tem invadido cada vez mais terras palestinas, expulsando cada vez mais palestinos das suas comunidades e negando-lhes o acesso às suas terras, pastagens e olivais.

Esta situação tem prejudicado os meios de subsistência e a autossuficiência dos palestinos.

Também encorajou e incentivou os colonos a assediar, torturar e matar palestinos nas suas próprias terras. Estas medidas, combinadas com políticas destinadas a estrangular a economia palestina e a empurrar a maioria dos palestinos para um estado de precariedade constante, têm como objetivo final forçar a população palestina a partir “voluntariamente”.

Preparar a Nakba

No último ano, o governo israelense liderado por Benjamin Netanyahu intensificou estas políticas. Quando o Hamas lançou a sua ofensiva, em 7 de outubro, a situação na Cisjordânia ocupada já era intolerável há muito tempo.

O ano de 2023 estava destinado a ser o mais mortífero para os palestinos na Cisjordânia ocupada desde que as Nações Unidas começaram a contar as mortes em 2006.

Até 7 de outubro, as forças israelenses e os colonos haviam matado cerca de 248 palestinos, na sua maioria civis, incluindo pelo menos 45 crianças.

O exército israelense, em coordenação com as forças de segurança da Autoridade palestina (AP), levou a cabo ataques violentos e assassinatos em massa em toda a Cisjordânia, em especial nos distritos de Nablus, Jenin e Tulkarem, no norte do país.

O número de ataques de colonos a comunidades palestinas também explodiu, aumentando em escala e violência. Em fevereiro, os colonos levaram a cabo um progrom na cidade palestina de Huwara.

Em junho, o governo israelense e o seu ministro das Finanças, o [fascista] Bezalel Smotrich, anunciaram novas medidas para facilitar e acelerar a anexação de terras palestinas. Em julho, as expansões aprovadas dos colonatos israelenses atingiram níveis recordes.

A economia palestina, já à beira da catástrofe, sofreu ainda mais com a destruição de infraestruturas e com a restrição da liberdade de movimentos por parte das forças israelenses e dos colonos.

As demolições de casas e de estruturas de subsistência palestinas multiplicaram-se. Até 1º de outubro, mais de 750 edifícios haviam sido destruídos, desalojando mais de 1.100 palestinos.

Todos estes processos, destinados a expulsar os palestinos e a anexar suas terras, já estavam em curso antes de 7 de outubro. Israel aproveitou então a ofensiva do Hamas de 7 de outubro para os acelerar.

E enquanto até então se ouviam em público gritos de “morte aos árabes”, sobretudo em reuniões de colonos, depois de 7 de outubro a maioria dos israelenses sentiu-se à vontade para exprimir abertamente este sentimento entre si e com o resto do mundo.

Nos últimos 50 dias, Israel matou 249 palestinos na Cisjordânia, incluindo pelo menos 60 crianças. Os ataques israelenses a aldeias, cidades e campos de refugiados palestinos na Cisjordânia ocupada intensificaram-se em termos de escala, gravidade e utilização de armamento letal, incluindo espingardas automáticas, tanques e drones suicidas “Maoz”.

O número de palestinos detidos e colocados sob detenção administrativa – a versão oficial de Israel do rapto – atingiu um nível recorde. Desde 7 de outubro, pelo menos 3.260 palestinos foram detidos na Cisjordânia ocupada, muitos deles crianças. É provável que os 150 palestinos libertados até agora ao abrigo do acordo de troca de reféns voltem a ser detidos.

Multiplicaram-se os relatos e vídeos de abusos e torturas durante a detenção. Os palestinos são também regularmente perseguidos e espancados, mesmo nas suas próprias casas ou na rua.

Incentivados e armados pelas autoridades israelenses, os colonos israelenses tornaram-se ainda mais violentos. Intensificaram as expulsões forçadas das comunidades beduínas palestinas no sul, perto do vale do Jordão, e no centro, perto de Ramallah, deslocando mais de 1000 pessoas desde 7 de outubro.

Estas práticas tiveram também um impacto devastador na economia palestina.

O exército israelense bloqueou os principais postos de controle militar em toda a Cisjordânia ocupada, paralisando praticamente os transportes. Os trabalhadores diaristas têm tido dificuldade em ganhar a vida, enquanto as reservas de alimentos estão diminuindo e as importações retidas durante mais tempo nos portos israelenses.

O setor da saúde também está em crise, incapaz de lidar com o número cada vez maior de feridos e doentes. Para piorar a situação, o exército israelense começou também a cercar e a atacar hospitais na Cisjordânia.

Todas estas táticas servem para espalhar o medo e o desespero entre os palestinos, preparando-os, em última análise, para a anexação e a expulsão.

Eliminar a resistência

Atualmente, estamos assistindo à continuação da Nakba em Gaza e na Cisjordânia. O objetivo de Israel é expulsar os palestinos e tentar assimilar os sobreviventes, tal como tentou fazer com os palestinos de 1948.

Atualmente, estes sobreviventes têm cidadania israelense, mas são tratados como cidadãos de segunda classe e frequentemente expostos a práticas discriminatórias e violentas por parte dos cidadãos judeus-israelenses e das autoridades.

Perante esta catástrofe iminente, os palestinos da Cisjordânia são deixados à sua sorte.

A Autoridade palestina (AP) é o único ator palestino com acesso a armas, mas não fez nada para proteger os palestinos da violência israelense.

As forças de segurança da AP, com 10.500 efetivos, são treinadas pelos Estados Unidos e pela Jordânia para manter a ordem, não para enfrentar outra força armada.

Pior ainda, estas forças e unidades de inteligência têm ajudado diretamente Israel a atacar e a desmantelar todas as bolsas de resistência armada na Cisjordânia nos últimos anos.

Contrariamente ao que afirma a propaganda israelense, os jovens que decidiram pegar em armas – concentrados principalmente em Nablus e Jenin – não são membros do Hamas; alguns são membros da Fatah ou desertores das forças da Autoridade Palestina, mas muitos não têm qualquer filiação política.

Desde 7 de outubro, o exército israelense tem trabalhado para erradicar estes grupos de resistência, de modo a que a população civil da Cisjordânia fique totalmente impotente face à violência, à expropriação e à expulsão.

Mas enquanto Israel intensifica a violência, a resistência palestina está a emergir. Os palestinos não deixarão de lutar contra a ocupação e o apartheid simplesmente porque não têm meios para o fazer.

Ninguém quer viver no limite da sobrevivência, empurrado e mantido à beira do abismo por um regime estrangeiro.

O mínimo que o mundo pode fazer é cessar de andar de cabeça baixa perante a propaganda israelense e defender o direito dos palestinos a resistir contra seu colonizador e opressor na sua busca pela libertação.

Chegou o momento de reunir a coragem para falar e pôr fim à vontade genocida de Israel. É aqui que os livros de história nos oferecem a oportunidade de reconhecer que os estados de apartheid violentos baseados em massacres não são legítimos nem sustentáveis.

30 /Novembro/2023

[*] Escritora palestino-americana que vive em Ramallah. Os seus comentários políticos já foram publicados no International Business Times, no New York Times, no TRT-World e em outras publicações. É também a correspondente na Palestina do sítio web de notícias e análises Mondoweiss.

O original encontra-se em www.chroniquepalestine.com/une-nakba-se-deroule-aussi-en-cisjordanie-occupee/
Este artigo encontra-se em resistir.info