A Dosimetria da Correlação de Forças

Leonardo Silva Andrada – militante do PCB de Minas Gerais
Terça-feira, 25 de novembro de 2025, foi um dia digno de registro. Foram conduzidos à carceragem, para o cumprimento de suas penas por tentativa de golpe de Estado, um almirante, três generais e um capitão da reserva do Exército. Um foi comandante da Marinha, outro comandante do Exército; os outros dois generais foram ministros de Estado e o capitão da reserva, presidente da República. Em primeiro lugar, é de se marcar o dia em que oficiais das Forças Armadas arcaram com as consequências de atos danosos à vida pública, incluídas no pacote as reiteradas tentativas golpistas.
Com o privilégio que construiu em 1870 sobre as ruínas do Paraguai e sacramentou no golpe do Campo de Santana, o oficialato sempre fez e aconteceu, sem experimentar consequência justa; os amotinados do 8 de janeiro se fiavam em um ancestral costume de se portar como Poder Moderador da República. A mesma República que nasceu de golpe que um Marechal executou da porta de sua casa, assumindo a presidência que ocuparia por dois anos, ao cabo dos quais tentou novo golpe, mantendo o cargo por mais vinte dias. Ainda em novembro de 1891, o vice-presidente articula com oficiais da Marinha o levante que a historiografia denomina a Primeira Revolta da Armada, exigindo a renúncia de Deodoro da Fonseca. A Constituição vigente estabelecia que, não tendo transcorrido dois anos de mandato, a falta do presidente exigiria novas eleições, mas Floriano Peixoto não tinha intenção de abrir mão do posto em razão de filigranas jurídicas. O primeiro vice golpista da nossa trajetória republicana articulou marechais, almirantes e oligarcas em favor de sua manutenção na função, e ainda enfrentaria uma Segunda Revolta da Armada, antes de entregar o cargo a um civil. Contávamos o terceiro pronunciamento militar em quatro anos de República.
Os dois mandatos seguintes transcorreram sem abalos que viessem da caserna mas, transcorrida uma década desde o último entrevero, parte da tropa considerou que estava em tempo de calar baionetas. Aproveitando a insatisfação que a história das lutas populares no Brasil registra como Revolta da Vacina, um convescote na Escola Militar da Praia Vermelha se alça à categoria de golpe de Estado, desbaratado poucos quarteirões adiante em um enfrentamento com tropas do governo. No ano zero da Revolução Mexicana, o mesmo da Proclamação da República em Portugal, três registros na consolidação da República Brasileira: outro capítulo na história das lutas populares, com a Revolta da Chibata; a frustrada Campanha Civilista de Rui Barbosa, e nova tentativa de golpe, resultando no bombardeio de Manaus e encerrando o ciclo de levantes militares da Primeira República.
O regime de oligarcas chega a termo com outro golpe e, mesmo que capitaneado pelo estancieiro gaudério, não transcorreu em vestes estritamente paisanas. O mais estridente testemunho da participação da corporação armada é o comando do Executivo Federal nos primeiros dez dias após a derrubada de Washington Luís, tocado por uma Junta Militar. Passados o Governo Provisório, o Governo Constitucional e o Estado Novo, os oficiais irrequietos adotavam outras preferências, depois da experiência da Força Expedicionária Brasileira e a impressão causada pelo vistoso exército estadunidense na Itália. A orientação ideológica que mais tarde preside a fundação da Escola Superior de Guerra, a formulação da doutrina de segurança Nacional e seus desdobramentos na vida pública brasileira já tinha escolhido lado na Guerra Fria, antes mesmo de seu início oficial. O Ministro da Guerra, figura de relevo nas articulações golpistas desse período em diante, encabeça a intervenção e depõe o presidente que, quinze anos antes, os militares ajudaram a impor. Se as FFAA remodelaram sua compreensão de nacionalismo, de modo que ele acolhesse uma postura subserviente aos interesses yankees, também Vargas reelabora sua orientação política quanto aos legítimos interesses da pátria.
Com todas as contradições e problemas de um governo que institucionalizou a modernização conservadora e avançou de forma autoritária o desenvolvimento capitalista internamente, ninguém tira de Getúlio sua capacidade de leitura da conjuntura, e nem sua notória perspicácia política. Desde os tensos momentos finais da ditadura estadonovista, foi atento na identificação da trilha para onde pendiam as frações burguesas, e como isso significava a opção preferencial pela UDN e suas conexões com o imperialismo. O Pai dos Pobres entendeu que só poderia encontrar apoio político entre seus “filhos”, aos quais se dirigia de forma direta, sem a intervenção problemática das instituições. Populista na forma, nacional-desenvolvimentista no conteúdo, a síntese do seu retorno à presidência, pelo voto, foi a fundação da Petrobras. A estatal do petróleo, no que significava de mais profundo para o desenvolvimento de um capitalismo nativo, era também emblema de uma orientação política que germinava no então terceiro mundo, cevada nos anos do pós-guerra, com expressões mais à esquerda ou mais à direita, a depender das condições da luta de classes em cada contexto. No ano seguinte, os franceses perdem a Indochina em Dien Bien Phu, e em dois anos, ocorreria a Conferência de Bandung; em três, a nacionalização do Canal de Suez e, antes do fim da década, os barbudos entram vitoriosos em La Habana. O processo de redefinição dos marcos de atuação do imperialismo, superando o neocolonialismo europeu através do controle financeiro via Wall Street, teve como contraparte dialética o surgimento de fissuras, a fermentação de movimentos de libertação nacional e projetos de desenvolvimento autóctone que poderiam emperrar as engrenagens azeitadas em Bretton Woods. O continente sob os auspícios da Doutrina Monroe não deveria oferecer eventos para essa lista, e os EUA estavam dispostos a brandir seu big stick como garantia.
Os primeiros acolhidos no zelo do Grande Irmão para impedir que o fantasma comunista assombrasse a América Latina foram os guatemaltecos, tomando o pioneirismo dos brasileiros por meros dois meses. Agosto de 1954, Palácio do Catete cercado por tropas e artilharia, é de se esperar que capachos reincidentes contestem a tentativa de golpe contra Vargas constando na longa lista de intervenções da casa Branca pelo mundo afora; mas, para Getúlio Vargas, as forças que o obrigaram a sair da vida para entrar na história não eram verdadeiramente ocultas. O tiro que deu no próprio peito adia o golpe por um decênio, período extremamente rico para a vida política, econômica e cultural do país. Enquanto o país se urbanizava e acelerava a industrialização lastreada na penetração maciça de capital estrangeiro, a vida associativa ganhava tração, projetos diversos se confrontavam medindo os erros e acertos táticos na estratégia da Revolução Brasileira, a expressão estética dava testemunho de vitalidade com Bossa Nova, Cinema Novo, literatura regionalista e arquitetura modernista. Concomitantemente a coalizão reacionária fermentava o golpismo, e o adiamento não significou, em absoluto, o evanescimento da conspiração ou a ausência de atividade. Se um golpe não se concretizou nesse intervalo, não foi por falta de tentativa.
Antes mesmo da posse de JK, uma movimentação de militares para impedir a sua efetivação só foi desbaratada pela intervenção de um contragolpe comandado por facção militar adversária. Durante seus cinquenta anos em cinco, Jacareacanga e Aragarças dão mostras do ímpeto golpista não debelado, mas ainda sem força que bastasse. Na renúncia do moralista de ocasião, a tentativa de impedir a posse de João Goulart não angariou oficiais suficientes para o conchavo, e o ensaio de sedição foi barrado pela rede da Legalidade comandada por Leonel Brizola. A dinâmica do período Jango tratou de polarizar a divisão de classes com a clareza que enunciará, mais tarde, o senador Porfírio Díaz no Terra em Transe de Glauber Rocha. As organizações para elaboração ideológica, propaganda e articulação política ligadas ao imperialismo e às frações burguesas associadas, foram eficientes na consolidação da linha golpista entre as FFAA, empacotadas no anticomunismo histriônico da guerra fria.
A crise dos mísseis ainda vívida na memória, era imperioso o cuidado com a defesa (eufemismo para controle) do hemisfério. Os documentos relativos à comunicação da embaixada estadunidense no Brasil, liberados depois de décadas, atestam: era de conhecimento dos encarregados que não havia uma ameaça comunista no horizonte brasileiro; mas era essa a propaganda eficiente para ativar o pânico que levaria água para o moinho do golpe. A 13 de março de 1964, uma multidão se aglomerava a apenas uma avenida atravessada de onde Deodoro da Fonseca avisou sobre a Proclamação da República. No palco, Goulart anuncia as Reformas de Base, adesão tardia ao pólo popular de um governo que tentara se equilibrar, tropegamente, entre os interesses incompatíveis do capital e do trabalho. Não havia mais espaço para conciliação e a opção pela classe trabalhadora não seria tolerada; a 1º de abril as tropas descidas de Juiz de Fora são bem sucedidas no golpe que passara dez anos em compasso de espera, tem início uma ditadura burgo-militar que atravessaria mais de duas décadas.
A disputa interna do bloco no poder não cessa com o assalto ao Estado – e nem suas conclusões pela via do golpe. O Ato Institucional nº 2 elimina as prometidas eleições que deveriam acontecer em 1965; o de número 5 fecha o Congresso, suspende o habeas corpus, cassa e caça brasileiros institucionalizando a selvageria. A “temperatura sufocante, o ar irrespirável” da previsão do tempo no Jornal do Brasil de 14 de dezembro de 1968 tornam supérfluos os golpes até 1974. A partir de então, as desavenças no condomínio reacionário abrem espaço para avanços da oposição, que é retorquida com o Pacote de Abril. Momento de “sístole”, na caracterização cardiológica que Golbery do Couto e Silva aplica a seu projeto de Distensão, operou intervenção institucional em sintonia com a nova orientação da “democracia forte”, regime convocado a substituir a ditadura que se desmontava por dentro. Comprovação decisiva de eficácia da tática foi a derrota da emenda Dante de Oliveira, em um Congresso que fez ouvidos moucos ao estrondoso movimento das Diretas Já!.
O palatável Tancredo Neves foi eleito indiretamente, mas como é imprescindível estar vivo para governar, assumiu seu vice. José Sarney foi empossado por decisão militar (e conivência civil), à medida em que o morto não chegou a assumir a presidência e um detalhe legal estabelecia realização de novas eleições. Nos períodos Collor e Fernando Henrique Cardoso os atores que costumam coordenar putsches se sentiram contemplados o suficiente para hibernar o antigo costume. O problema reaparece com Dilma Rousseff, execrada entre os fardados pelo gesto louvável de criar uma Comissão Nacional da Verdade dedicada a publicizar a violência de Estado nos 21 anos de arbítrio. Uma permanente tensão alimentada por cobranças dissimuladas, comemorações nos clubes do pijama e que finalmente perde o pudor com o veto ao habeas corpus de Lula, em ameaça nada velada ao Supremo Tribunal Federal através de rede social.
Este sumário de levantes castrenses registra uma longa tradição de intervenções que, frustradas ou consumadas, nunca foram devidamente cobradas – duradoura a ponto de um capitão rastaquera e indisciplinado contar com a certeza de gozar o mesmo benefício. De forma inédita, desta feita golpistas de muitas estrelas e seu pinscher aloprado foram condenados. Mesmo com todas as desavenças e disputas internas – como as que levaram à decisão de desmontar a ditadura por dentro – a coalizão dominante nunca chegou ao ponto de submeter a facção derrotada a juízo. O diferencial desse grupo atual, em relação a seus congêneres do passado, é que a extrema inépcia ofusca a compreensão de que os golpes não provêm de gestos de vontade militar. Se fossem dados ao estudo, poderiam conhecer melhor o teórico que abominam no discurso, consultando O 18 de Brumário, leitura que também interessa aos que ainda sentem dificuldade em assimilar como tamanha boçalidade pôde chegar ao comando da nação.
Um golpe de Estado e uma ditadura, no capitalismo, só se efetivam e se mantêm enquanto garantem o interesse burguês. São soluções de compromisso para contornar a crise de representação e hegemonia no bloco no poder. Da perspectiva dos militares envolvidos na conspiração, é preciso que estejam alinhados com o interesse de frações burguesas hegemônicas; o que já estava claro que não era o caso de Jair Bolsonaro, desde a primeira metade do mandato. Havia indícios consistentes de que o golpe que ele e sua base esperneavam, não passava de bravata. Os veículos de mídia corporativa, porta-vozes do poder econômico, eram hostis a suas manifestações. Para seu pesar, o indouto presidente foi incapaz de identificar a falta de apoio, como também não foi capaz de aprender muita coisa sobre a dinâmica da política em quase 40 anos de convívio com os pares. Expediente estéril esperar que ele e seu entorno leiam Maquiavel para entender a lógica do poder, das alianças, de amar ou ser temido, de fazer o mal de uma vez; mas da mera atenção ao que acontecia a seu redor nesses quase 40 anos, ele poderia ter apreendido que não se briga com todas as fontes de poder de uma só tacada. Bolsonaro, como os demais golpes frustrados da nossa história republicana, não tinham apoio decisivo dos grupos com capacidade de decisão.
Testemunhar militares conspiradores sofrendo consequências não é a única razão para júbilo. Um segundo motivo de satisfação com o trânsito em julgado, determinando o início do regime fechado dos personagens em questão, é um justo sentimento de desforra entre todos dentro do escopo de discriminação e violência vindos do campo que esses senhores representam, o ex-presidente como figura mais destacada. E não foram poucos os mirados pela truculência verbal e física que essas criaturas perpetraram ao longo dos anos. Mulheres, negros, LGBT, esquerdistas, artistas, intelectuais, indígenas, sem-terra, sem-teto, desempregados, é extensa a lista de qualificados como indignos por destoarem da visão estreita de cidadão de bem e, portanto, merecedores de todo tipo de diatribe, perseguição e fúria. Todos os que portassem algum traço divergente da estrita determinação que atende a perspectiva neofascista, seriam possíveis endereços de impropérios, chacota, ameaça, calúnia e brutalidade. Os pronunciamentos canhestros do ex-capitão, ao longo de toda sua carreira política, eram ao mesmo tempo identificação de alvo e instrução para ação, coordenando o comportamento de cardume que o séquito deveria adotar. Uma boa quantidade de pessoas eventualmente no radar dessa horda ficou apavorada com o resultado das eleições de 2018, em razão de um comportamento público desavergonhadamente preconceituoso e espalhafatosamente entusiasta da violência. Ninguém sabia exatamente como se portariam governo e apoiadores, mas havia motivação sólida para temer o pior.
Por fim, um grande contingente de festejadores da terça-feira extraordinária inclui amigos e familiares das vítimas da pandemia de COVID-19 e sobreviventes que experimentaram a angústia da contaminação em seus momentos mais críticos. Não há registro de outro líder nacional que tenha mobilizado sua base tão intensamente para boicotar orientações sanitárias de proteção da população, ao mesmo tempo em que tentava manter a operação da máquina pública em sentido contrário ao das medidas preventivas. Como se não bastasse, também foi caso isolado de administrador boicotando aquisição de vacinas enquanto o resto do mundo corria para adquiri-las, junto a uma campanha de desinformação via comunicação oficial do governo, pronunciamentos e entrevistas, desacreditando cada imunizante desenvolvido enquanto propagandeava tratamentos sem qualquer fundamento científico. Um dirigente que, em um momento de comoção global, quando as mortes diárias se contabilizavam na casa dos milhares em seu país, foi capaz de debochar dos doentes, promovendo o misto de estupidez insuperável e insensibilidade patológica que compõem sua personalidade desorientada.
Os celerados afinal foram para o cárcere. Não pelas forças que deveriam cobrar pelo deboche, o sarcasmo, a truculência e o preconceito violento; não por tudo que fizeram; mas ainda assim, pela primeira vez, figuras dessa extração vão sofrer alguma pena. Não é só histórico, posto que momentaneamente interfere na correlação de forças. Tira de cena uma liderança e alguns de seus mais destacados ajudantes de campo, na articulação prática do neofascismo local. Como consequência imediata, deixa uma legião desorientada e cria uma cunha no campo da direita. O espetáculo tétrico da disputa interna é encenado a céu aberto, com declarações diuturnas dos filhos do ex-presidente alvejando candidatos a candidato, com vistas a preservar o capital político amealhado nos últimos anos, arrimados por um bando de legisladores sem luz própria que depende da bizarrice animada para garantir sua reeleição. Os pretendentes à sucessão, por sua vez, lapidam cautelosamente as críticas à atuação da prole do condenado, calculando o quanto podem avançar no butim eleitoral sem melindrar uma base que se comporta como seita. Na última rodada da contenda, esposa e filhos do ex-duce entraram em rota de colisão na antecipação da estratégia eleitoral. É nesse contexto que se abre a oportunidade para intervenção política do campo popular, transformando o dissenso escancarado em oportunidade para um intenso trabalho de base, que esclareça o teor excludente, concentrador e violento da política que esse setor executa.
Para uma atuação consistente é imprescindível que não se perca de vista, as condenações estão muito distantes de significar uma “comprovação da solidez de nossa jovem democracia”, como tem sido festejado por próceres do atual governo, lideranças da esquerda institucional e comentadores da política. O avanço, na Câmara, de projeto de lei para redução das penas impostas, atesta a ausência de uma escora popular politicamente forte. Se o tempo em cárcere que os líderes do golpe frustrado é moeda de troca para os interesses de camelôs legislativos, é porque sua definição não resultou de mudança na correlação da luta de classes, mas do balanço final entre acordos e desavenças intraelites. O pessimismo da razão compele ao reconhecimento: não estamos diante de consequências do avanço da luta popular; o principal coordenador desse processo foi um operador jurídico de frações burguesas querendo se livrar de funcionários incompetentes e incômodos e, entre outras coisas, serve para arrumar o campo político da direita e liberar caminho para estafeta mais diligente e confiável. O que testemunhamos, ainda que histórico e digno de entusiasmo circunscrito, não é, de forma alguma, consolidação democrática – a menos que aceitemos a versão liberal do significado de democracia, a mesma que se esforça, há mais de três séculos, para expurgar o demos de qualquer exercício da cracia.
Terça-feira, 25 de novembro, foi outro dia, mas eles ainda não estão pagando com juros. Água nova brotando para o campo popular, está dada a tarefa de saber aproveitar o evento para não permanecer eternamente sob controle das forças que sempre conduziram nossa modernização conservadora. A crise de hegemonia e de representatividade entres frações dominantes pode resultar, como solução para preservação das posições de mando, em alguma variedade de bonapartismo – incluídas aí expressões adaptadas de fascismo. Mas esse não é um desfecho prescrito, como se derivasse de automatismo histórico. Entre as saídas possíveis de qualquer crise, se impõe a que atende aos interesses do ator que finalmente se torna hegemônico, como consequência do confronto entre as forças.
A história de nosso capitalismo de bases coloniais oferece material para a interpretação das possibilidades de emergência e adensamento do movimento de massas, diante de uma estrutura que parece intransponível, sedimentada em cinco séculos de domínio. É justamente nesses momentos de contenda entre as frações dominantes que, bem aproveitadas, as cavilhas no bloco no poder proporcionam oportunidade para o avanço da organização das massas. Da mesma forma como a resultante bonapartista, também a alternativa popular depende da correta operação política capaz de fazer avançar seu programa. Para que se afirme, é indispensável a combinação entre uma pauta capaz de apreender o que são os pontos de interesse dessa massa e uma comunicação que apresente de forma cristalina por que essas bandeiras são suas. Dinâmica que só pode ser animada por um operador político atuando como o Moderno Príncipe que, intérprete fino da trajetória histórica da formação social em que pretende atuar, seja capaz de galvanizar a força do movimento para se constituir como o ator que se impõe aos fatos
A síntese política da resistência à ditadura burgo-militar se afirmou a partir de uma certa interpretação da formatação histórica de nossa nacionalidade, de como se consolidaram os problemas relacionados a essa via colonial de objetivação do capitalismo, do programa necessário para superar os problemas do sempre renovado atraso e, finalmente, da forma partido que deveria organizar a classe trabalhadora para a execução dos movimentos táticos que conformariam a estratégia vitoriosa. Tornado projeto e institucionalizado no exercício do poder, abdicou do seu ‘reformismo forte’ em favor de uma sujeição progressivamente entusiasmada ao modelo explorador e anticivilizatório do neoliberalismo, sob o mantra thatcherista de que “não há alternativa” e o salvo conduto místico da governabilidade. A insistência do campo democrático popular nesse roteiro desperdiça a oportunidade que a conjuntura oferta, ameaçando seriamente replicar, no Brasil de 2026, os exemplos de Argentina, Peru, Bolívia, Paraguai e demais testemunhos ao redor do mundo da decepção com o esvaziamento de sentido da esquerda institucional.
