MÁRIO ALVES, A DIGNIDADE DE UM REVOLUCIONÁRIO

Eram necessárias medidas para estancar o problema e garantir a compartimentação da estrutura organizativa do partido. Mário Alves lembrou que havia a alternativa de pontos para os dois.

No outro dia, Bruno estava lá e nada dos companheiros chegarem. Mário Alves surgiu do meio do povo e disse mais uma vez que também não aparecera ninguém no ponto marcado com ele. A cisma no pernambucano aumentou. Ainda assim, o jornalista lembrou que ele tinha uma última alternativa, um ponto de recuperação que era acionado quando todos os outros furavam. Seria no outro dia, 16 de janeiro, e entregou a Bruno Maranhão um documento que denunciava aulas práticas de tortura numa prisão de Linhares, em Minas Gerais. A denúncia era muito importante e grave: os irmãos Pezzuti relatavam que um oficial das forças armadas norte-americanas estava ensinando a policiais brasileiros novos métodos de interrogatório em aulas práticas com tortura em prisioneiros políticos. Segundo Bruno Maranhão, o tal oficial foi identificado mais tarde como sendo Dan Mitrione, seqüestrado posteriormente pelos Tupamaros, no Uruguai. Na época, a ditadura militar uruguaia recusou-se a negociar com o grupo guerrilheiro e Dan Mitrione foi justiçado. Bruno ficou com a tarefa de encaminhar a denúncia a um companheiro que ia viajar à Paris para que fosse amplamente divulgada. Saíram caminhando e retomaram a conversa da noite anterior. Mário pediu para entrar numa lanchonete porque precisava beber leite, dieta para consolidar o tratamento da úlcera que tinha curado com a alimentação macrobiótica receitada por Dilma.

Conversaram mais algum tempo e Bruno combinou de reencontrar Mário Alves, dois dias depois, em 17 de janeiro. Despediram-se na estação de Cascadura.

Mais tarde, quando Mário Alves voltou para casa, Dilma também cismou. Afinal, pela segunda vez consecutiva o marido saía avisando que ficaria fora por alguns dias e retornava horas depois porque o encontro não se realizara. A mulher não era militante do PCBR e o marido, por medida de segurança, não conversava os assuntos internos do partido. Neste dia, no entanto, ele falou sobre as divergências no partido.

Por isso insistia em cobrir todas as alternativas de ponto, inclusive a última, no dia seguinte. A reunião do Comitê Central era muito importante e ele, o principal dirigente, não poderia faltar.

Aquela noite de espera também foi a última que Dilma e Mário ficaram juntos.

O dia amanheceu e permaneceu calorento naquele 16 de janeiro de 1970. Mário Alves vestia camisa de mangas curtas quando saiu de casa para cobrir o derradeiro ponto de sua vida. Como em “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso estava sem lenço, sem documento, nada nos bolsos ou nas mãos. No local e hora marcada a fúria do inimigo, na tocaia, o alcançou. No quartel do Exército, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, os torturadores agitaram-se, comemoraram e disseram uns aos outros que era preciso avisar ao coronel Alcyone Portela, na época comandante do DOI-CODI que acabara de ser inaugurado no Rio de Janeiro e funcionava naquele quartel. “O preso é calado, franzino e não agüentará muito tempo”, imaginavam os militares.

“Não se enganem”, avisou o chefe de todos eles: “trata-se de comunista convicto, o mais perigoso e bem preparado dos intelectuais subversivos do antigo partidão, aquele que enfrentou Prestes, fundou um partido revolucionário e é um dos líderes da rebelião que quer derrubar o governo pelas armas. Será preciso dobrá-lo, desmoralizá-lo”. Não conseguiram.

Na sala de interrogatório, Mário enfrentou o inimigo. Durante oito horas seguidas foi espancado com cassetetes de borracha, pendurado que nem morcego no pau-de-arara, recebeu choques elétricos em todas as partes do corpo e foi afogado na masmorra da brutalidade. Aquele homem de físico débil, que começou suas andanças ainda menino e escolheu seu próprio destino, não cedia e conseguia dominar até seu instinto animal de conservação. Embora amarrado, completamente imobilizado e à mercê de seus carrascos, Mário aceitava o combate e desafiava a morte que se anunciava.

Naquela noite, que varou pela madrugada do dia seguinte, os presos da cela que ficava ao lado da câmara de tortura ouviram tudo no espaço vazio deixado pela meia parede. Estavam ali, sem conseguir dormir, o advogado Raimundo José Barros Teixeira Mendes, o tenente da Revolução de 1930 Augusto Henrique Maria D’Aurrelli, o líder operário Manoel João da Silva e Antônio Carlos Carvalho, eleito posteriormente vereador pelo MDB carioca. Também torturados, eram testemunhas, para o futuro, do horror que Mário Alves passava. Raimundo Teixeira Mendes não se conteve: subiu na cama de beliche que ficava junto ao teto e pela fresta viu o jornalista pendurado no pau-de-arara.

O torturado recusava-se a dar qualquer informação aos inquisidores. Mesmo quando o inquiriam afirmativamente sobre seu verdadeiro nome e a função que exercia de secretário-geral, dirigente máximo do PCBR, Mário confirmava, sarcástico: “vocês já sabem”. Naquele dia daquela noite o guerreiro aplicou ele mesmo as regras que havia escrito no segundo semestre de 1969 sobre o comportamento que o militante deve ter diante da polícia, dos torturadores e dos juizes:

“Quando um revolucionário se acha em poder do inimigo enfrenta uma das situações mais duras de sua vida. É o momento que põe à prova sua firmeza ideológica, suas qualidades morais, sua dignidade pessoal… É preciso ter profunda convicção revolucionária, confiança na causa que defende e disposição para enfrentar todos os sacrifícios… O medo surge quando o prisioneiro se sente sozinho, isolado e impotente diante do inimigo… Mas o revolucionário consciente nunca se sente só… Sabe que além dos muros do cárcere estão seus companheiros, está o povo que luta… Ele se sente parte dessa grande força que há de vencer o regime de exploração e opressão. Dessa compreensão retira energia para enfrentar com coragem seus algozes”.

Mário Alves nunca foi levado diante do juiz. Não houve tempo para isso. Naquele dia daquela noite de horror o guerreiro do sem medo, humano, sentiu dor e um gemido ecoou pelas celas do quartel da rua Barão de Mesquita. Mas de nada adiantaram todos os métodos de tortura aplicados. Negava-se a responder às perguntas sobre seus companheiros e sua organização. Tentaram pressioná-lo pelo lado familiar e falavam no paradeiro da menina Lúcia: “Nós já sabemos que ela está em Minas Gerais”, disse o interrogador. “Então vão buscá-la”, respondeu Mário Alves em tom de desafio.

Os ratos de porrete e pêlo cor de oliva queriam, sobretudo que ele revelasse o endereço de seu aparelho, de sua residência, onde estava Dilma. Nesse instante Vila silenciou. O segredo era só seu, lhe pertencia.

Naquele final de noite e início de seu derradeiro dia, Mário Alves de Souza Vieira foi sentenciado na câmara do horror.

Impotentes para quebrar a vontade daquele homem franzino, mas determinado, os carrascos pegaram o cassetete de madeira dentado com estrias de aço e sangraram por dentro o revolucionário. Mário Alves foi empalado e teve os intestinos perfurados.

No suplício medieval do empalamento, Eduardo II, da Inglaterra, urrou como um animal. Mário lutou quando os ratos roeram as entranhas dele. Gritou, gemeu e depois calou para sempre.

O dia 17 de janeiro de 1970 amanheceu mais cedo para os presos da cela ao lado.

Três deles – Manoel João, Augusto Henrique e Antônio Carlos – foram escolhidos para limpar a sala de tortura. No chão banhado em sangue, e também em coragem, restava o corpo de Mário Alves.

Ainda vivia moribundo, cheio de hematomas, sangrando pelo nariz e pela boca. Arquejava e não se mexia. Balbuciou pedindo água que não conseguiu beber.

Antes dos policiais retirarem o jornalista da sala, Manuel e Augusto o reconheceram.

Outro preso, José Carlos Brandão Monteiro, posteriormente deputado do PDT, foi levado por engano à cela naquela manhã do dia 17 de janeiro e também viu Mário Alves caído no chão, ensangüentado. Depois, os soldados rasos que serviam no quartel comentaram que Mário Alves havia morrido.

A reunião do Comitê Central do PCBR nunca se realizou. Entre os dias 12 a 20 de janeiro daquele ano, a maior parte da direção do partido foi presa. As quedas começaram depois que Salatiel Teixeira Rolim, ex-dirigente nacional e um dos fundadores do PCBR foi preso dentro de um cinema da Baixada Fluminense durante uma batida policial e entregue ao quartel do Exército, na rua Barão de Mesquita.

Fazia meses que Salatiel não mantinha contato com o partido. No livro “Combate nas Trevas”, Jacob Gorender relata o que aconteceu: “Por norma de segurança clandestina, os aparelhos que ele conhecia precisavam ser desativados, o que não se fez devido à evidente negligência. Depois de muito torturado, Salatiel abriu a localização de aparelhos do PCBR e também dos dois sítios comprados no Paraná. A partir de 12 de janeiro começaram as prisões que arrastaram Apolônio, Miguel Batista e outros membros da direção”…) “Nas semanas seguintes, novas quedas no Rio. Prisões de René de Carvalho (também da direção nacional) e de Álvaro Caldas. Crivado de balas num apartamento de Copacabana, morte do marujo Marco Antônio. Salatiel conhecia ligações em São Paulo e aí as prisões começaram no dia 16”.

Entre outras pessoas, foram presos na capital paulista Aytan, Helenita, Valdizar, Sônia, Sérgio Sister e finalmente Gorender, no dia 20 de janeiro. Bruno Maranhão acrescenta outra informação: no aparelho onde aconteceria a reunião do Comitê Central, no Rio de Janeiro, também foi preso o motorista do partido que usava o nome de Jurandir e era uma das pessoas que conheciam o local, dia e horário do tal ponto de recuperação onde Mário Alves foi feito prisioneiro. Sob tortura Jurandir abriu o local. Bruno foi um dos poucos que escapou: cobriu o ponto que havia marcado com Mário Alves no dia 17 de janeiro, repetiu seis vezes, mas Vila nunca apareceu, mas também não entregou o encontro. Oito anos depois, quando Suzana, a mulher de Bruno deu à luz um menino, os pais decidiram chamá-lo de Mário, em homenagem a Vila.

Depois que Vila foi trucidado, Dilma assumiu a luta, percorreu as prisões da ditadura, bateu em todas as portas dos comandantes militares, que negavam a morte e até a prisão de Mário. Dilma e a filha Lúcia souberam logo que o tinham matado. Choraram. Enxugaram as lágrimas e continuaram valentes. Dilma escreveu para deputados, senadores, ministros de estado, juizes e diversas outras autoridades constituídas e denunciou o desaparecimento e assassinato do marido.

Processou o governo e com base nos depoimentos daqueles presos que estavam na cela ao lado da sala de tortura onde Mário foi empalado, a mulher conseguiu provar em juízo sua prisão e assassinato.

Em 21 de outubro de 1981, a juíza Tânia de Melo Heine, da Primeira Vara Federal, responsabilizou a União pelo seqüestro, tortura, morte e ocultação do cadáver do jornalista: “Mário Alves de Souza Vieira faleceu em conseqüência de maus tratos sofridos nas dependências do DOI-CODI”.

Foi o primeiro e único caso de reconhecimento na Justiça da prisão e morte de um “desaparecido político”. O corpo não foi localizado. Por conta disso, Dilma e Lúcia insistiram no direito de enterrar Mário Alves. Todos os anos, no dia 16 de janeiro, depositavam uma palma de flores na estátua de Tiradentes, em frente à Assembléia Legislativa do Rio Janeiro.

Os herdeiros da determinação de Mário Alves continuam buscando os restos mortais do jornalista. Em dezembro de 1987, o Tribunal Federal de Recursos confirmou a sentença da juíza Tânia Heine e responsabilizou a União pelo assassinato de Mário Alves nas dependências do DOICODI, no quartel da rua Barão de Mesquita. Mas não foi um carimbo final no seu dossiê. Em setembro de 1995, o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso enviou e aprovou no Congresso Nacional um projeto que reconhece a morte de 136 presos políticos desaparecidos durante o governo militar e estabelece uma indenização para os familiares. Mário Alves está na lista. Mas o governo não esclarece as circunstâncias das mortes, não diz nada sobre onde estão os restos mortais desses brasileiros e deixou de fora do projeto os nomes de outras pessoas reconhecidamente assassinadas nos tempos da ditadura.

Até hoje, os arquivos do CENIMAR, CIEX E CISA continuam secretos . Mas nós insistimos e repetimos o que escreveu Pablo Neruda no seu poema “Os inimigos”:

Por esses mortos, os nossos mortos,

peço castigo. Para os que salpicaram a

pátria de sangue, peço castigo. Para o

verdugo que ordenou esta morte, peço

castigo. Para o traidor que ascendeu

sobre o crime, peço castigo. Para o que

deu a ordem de agonia, peço castigo.

Para os que defenderam este crime,

peço castigo. Não quero que me dêem

a mão empapada de nosso sangue,

peço castigo. Não vos quero como

embaixadores, tampouco em casa

tranqüilos. Quero ver-vos aqui

julgados nesta praça, neste lugar.

Quero castigo!”

Quando isso finalmente acontecer, ouviremos emocionados os sinos da catedral em “Reqüiem”, a missa para os mortos, derradeira e inacabada composição de Amadeus Mozart e nos lembraremos da história contada em versos por outro guerreiro de outro tempo:

“Cheguei às cidades num período de desordens, quando aqui a fome reinava. Vim para o meio do povo quando imperava a revolta, e cresci com ela. Assim passou-se o tempo que me foi concedido nesta Terra (…) Mas vós, que renascereis do dilúvio no qual nós nos afogamos, pensai também, quando falardes de nossa fraqueza, na sombria época de que haveis escapado.

Nós caminhamos, mudando de país mais do que de sapatos, através da luta de classes, confundidos, quando havia apenas injustiça e não protesto. E ainda assim sabemos: o ódio, mesmo contra a degradação, contorce as feições. A ira, mesmo contra a injustiça, torna a voz áspera. Ah, nós que queríamos preparar o chão da amizade, não pudemos, nós mesmos, ser amigos. Mas, vós quando tudo estiver tão perfeito que o homem ajude o homem, lembrai-vos de tudo isto, quando pensardes em nós” (Bertold Brecht, “Aos que virão depois de nós”).

* OTTO FILGUEIRAS – jornalista e está preparando um livro sobre a organização de esquerda Ação Popular.

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