A Universidade no Brasil e a Greve de 2012
Filiação: Professor Adjunto de História da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e presidente do SINDUFAP (Sindicato dos Docentes da UNIFAP).
Resumo: A universidade vem sofrendo transformações cada vez mais agudas nos últimos anos. No Brasil, os quatro meses de greve das universidades federais em 2012 desvelaram uma problemática preocupante entre o governo e o ensino superior como um todo. A negociação pelo novo plano de carreira dos docentes e a forma com que essa luta foi travada ressalta a transformação do papel da pesquisa e do ensino superior no bojo da reestruturação produtiva e da crise estrutural do emprego. Refletir sobre isso é o objetivo deste artigo.
Palavras chaves: universidade, greve, política.
Abstract: The university has suffer transformations more and more acute in recent years. In Brazil, the four-month strike of federal universities in 2012 demonstrated a concern set of problems between government and the higher education as a whole. The negotiation for the new professors’ career and the way that this fight was fought point out the transformation of the role to research and higher education in the essence of the productive restructuring and the structural crisis ofemployment. The purpose of this article is reflecting about this.
Key words: university, strike, politic.
1) Introdução:
Entre 17 de maio e 17 de setembro de 2012 a Universidade Federal no Brasil protagonizou a maior greve de sua história. Das 59 unidades, 57 estiveram paralisadas por grande parte desse período, sendo que algumas ainda seguiram na greve outubro adentro. Em torno de cem mil professores cruzaram os braços, recebendo significativo apoio de funcionários técnicos administrativos e alunos. Os primeiros também decretaram greve no mês seguinte, e os segundos construíram um comando nacional em Brasília, apoiando os professores e reivindicando demandas próprias.
A pauta da greve centrou-se, basicamente, em duas grandes reivindicações: reestruturação da carreira e melhores condições de trabalho. Não obstante, com o desenrolar do movimento outras questões emergiram, desde mudanças paliativas até o questionamento do sistema como um todo. A polifonia das assembleias e a multiplicidade dos agentes – professores de todas as áreas do conhecimento, – foram características marcantes de uma situação que extrapolou os muros da instituição e afetou vários segmentos sociais, proporcionando as condições para o desencadeamento das greves dos demais ramos do funcionalismo público. Os relatos das situações locais levaram a categoria a tomar ciência da precariedade e da problemática da educação superior no momento atual da história.
A meu juízo, as contradições da universidade no Brasil potencializaram-se nos últimos tempos. Já nos anos 1990, com a chamada interiorização dos campi, diversas universidades federais foram abertas em cidades que não a comportavam, em que o número de professores e funcionários não acompanhou a necessidade advinda do fluxo de alunos. Nos anos 2000, o REUNI (Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) seguiu uma lógica semelhante, contribuindo para o limite das tensões e sendo decisivo na opção dos professores pela greve. É notável que essas duas expansões ditas acima agiram no sentido de piorar as condições de ensino, com um aumento quantitativo concomitante a baixa qualitativa, provada por todos os estudos competentes sobre o tema. A universidade pública vem recebendo mais alunos não obstante em direção ao colapso, com déficit de professores, laboratórios, infra-estrutura e até materiais básicos de limpeza. A essência aqui sugere a maneira secular das elites brasileiras encararem os serviços sociais, popularizando-os sempre com seu rebaixamento, no escopo de que se é para o povo pode (e deve) ser de pouca qualidade, pois para a população de baixa renda isso bastaria. (CHAUI, 2001, p.34).
A reflexão que se segue é fruto de minha atuação no movimento como presidente de uma seção sindical, e de como essa atuação gerou percepções a respeito do caráter mais amplo da universidade. Embora tenha intentado trabalhar sobre o tema de um ponto de vista global, meu texto se prende imediatamente as condições da universidade federal através da perspectiva histórica, elemento central do ramo do conhecimento ao qual estou inserido.
2) Contexto:
Como se sabe, as condições do trabalhado assalariado estão piorando ao menos desde os anos 1970, década em que ganhou força a chamada reestruturação produtiva e formas mais flexíveis de acumulação do capital, com destaque do setor financeiro em detrimento da indústria. [1] No Brasil, os docentes das universidades públicas lograram construir uma organização crítica e combativa na entrada dos anos 1980, o que certamente retardou ou amenizou a tendência negativa. Com a constituição de 1988 facultando o sindicato dos funcionários públicos, o ANDES-SN (Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior – Sindicato Nacional) reforçou-se enquanto legítimo defensor do segmento, órgão de luta por onde militaram e militam os melhores quadros da inteligência brasileira.
Ocorre que a carreira do profissional do ensino superior foi sendo a todo momento atacada, não só com a defasagem salarial senão com a intensificação do trabalho. Nos anos 1980 era comum o docente que dispunha de tempo para a pesquisa, viagens e poder aquisitivo condizente a um trabalhador qualificado, facultando o consumo de bens duráveis e de luxo, como automóveis e residências de boa qualidade. Quadro que se transformou sensivelmente com o passar dos anos. Elementos como a retribuição por titulação e as gratificações, que chegam a compor quantia superior ao salário base são sintomas disso, além da criação de novas classes dentro da mesma carreira, fraturando a lógica unitária e vilipendiando os aposentados. Hoje, o docente trabalha mais e ganha menos, a maioria endividada nos empréstimos consignados e sem condições de manutenção do padrão de vida de outrora.
A rigor, os níveis de professor auxiliar, assistente, adjunto, associado e titular são anacrônicos, na medida em que todos esses estão igualmente vinculados a pesquisa, ensino e extensão. Sua existência remonta ao fim do regime de cátedra, uma exigência elitista de alguns professores que não se conformaram com a possível equidade subjetiva. Ainda a respeito da carreira, outra armadilha se configurou na falta de lógica, como professor quarenta horas não receber o dobro do professor vinte horas, a insignificante diferença nos steps e o baixíssimo piso inicial, hoje em torno de R$800,00 -, tudo isso, em suma, colaborando para a não atratividade das melhores cabeças para a docência e a perda, sempre do lado dos professores, de ganhos que adviriam com uma equalização da malha remuneratória e suas respectivas configurações. O salário do professor universitário relativamente está nas últimas posições do funcionalismo público brasileiro.
Igualmente, numa lente mais ampla de análise, por toda a década de 1990 e 2000 a classe trabalhadora brasileira foi sendo acuada, sobretudo o funcionalismo público, no bojo da chamada reforma do Estado. Em 2010, final do governo Lula e início de Dilma Roussef, finalmente a carreira do professor federal entrou na “bola da vez”, isto é, o que estava sendo destruído lentamente passaria a ser de uma tacada só. Há que se ressaltar as vitórias governamentais nas negociações com as demais carreiras, em que uma a uma foram e/ou estão sendo destroçadas em suas virtudes e enquadradas nas novas formas de gerenciamento da força de trabalho. Tanto Fernando Henrique Cardoso quanto Lula venceram quase todos os grandes embates com os sindicatos autônomos, através do enfrentamento aberto ou da cooptação pura e simples. A virada da CUT (Central Única dos Trabalhadores) de defesa do trabalho para parceira governista na administração do capitalismo brasileiro foi sintomática disso tudo.
Por seu turno, o ANDES – SN se desligou da CUT em 2006 e reforçou sua atuação dentro da CSP – CONLUTAS (Central Sindical e Popular – Confederação das Lutas), se mostrando referência no país para o sindicalismo crítico e autônomo. Em sua digna luta pela educação, esteve sempre ciente das dificuldades e igualmente da impossibilidade de abandonar a resistência à ofensiva do capital no setor, buscando elaborar projetos alternativos.
Em agosto de 2010 o governo marcou as primeiras reuniões com o sindicato nacional para tratar da carreira. Antes disso, porém, é mister um breve e, forçoso admitir, superficial detour sobre o papel configurado historicamente pela universidade no Brasil.
3) A Universidade no Brasil no século XX:
No Brasil a universidade se caracterizou por ser uma instituição de criação hipertardia. Se na América hispânica existiu desde o século XVI, a rigor a América portuguesa só desfrutou uma digna de nome no século XX. Após perder a batalha militar contra o governo Vargas, em 1932, a elite cafeicultora e empresarial paulista intentou uma vitória no plano cultural, acumulando fundos e invertendo na criação da USP (Universidade de São Paulo) em 1934. No contraponto, o governo federal criou a Universidade do Brasil, concretizada em 1937 no Rio de Janeiro (MENDONÇA, 2000, p. 135).
Pode-se afirmar que Portugal, no decorrer de três séculos de colonização na América, instalou locais de ensino parecidos com universidades, como os colégios dos jesuítas. Todavia, instituição de fato nos moldes foi a Universidade de Coimbra, onde a elite portuguesa nascida no Brasil poderia realizar seus estudos e socializar-se enquanto futura classe dirigente. Se na Europa a universidade moderna teve sua gênese enquanto um projeto da burguesia contra o antigo regime, aqui não passou de instrumento conservador em luta contra as novas forças sociais, tendo no período imperial predominado as escolas e faculdades profissionalizantes. (MENDONÇA, 2000, p. 134). Mesmo a Universidade do Brasil em seus primórdios não respirou ares de rebeldia e posições anti -status quo, embora mais complexa e protagonistas de certos debates. A USP, por seu turno, com vários professores estrangeiros e o diálogo com os chamados pioneiros da escola nova, cedo estabeleceu ares de centro de excelência. (MENDONÇA, 2000, p. 136.).
Esse contexto sofreu uma mudança significativa após a Segunda Guerra mundial. O ensino superior, ainda restrito a elite, protagonizou o chamado para a modernização do país, se voltando mais decididamente para a formação de quadros técnicos e encarando o problema do desenvolvimento econômico. No início dos anos 1950, o Estado brasileiro criou o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), proporcionando um salto qualitativo na instituição universitária. No segundo lustro dessa década, o nacional-desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek estimulou ainda mais o debate sobre os rumos da nação e as possibilidades de modernização. Aquela universidade dos anos 1930 já estava sobremaneira mudada, e a economia brasileira crescia a passos largos.
No início dos anos 1960 a universidade se envolveu com os problemas mais profundos da vida social. No clima das reformas de base e avanço do ideário socialista, ela respondeu com aumento da politização dos cursos e militância dos alunos. A criação da Universidade de Brasília demonstrou que setores da classe dirigente brasileira reconheciam a necessidade de um ensino superior de novo tipo, não só preocupado com o crescimento da atividade produtiva, senão com a distribuição de renda e o combate as dramáticas formas de injustiças sociais típicas da formação social brasileira. Com o golpe civil –militar de 1964, todo esse movimento se viu truncado e progressivamente combatido por novas forças que assumiram o poder.
A mais visível mudança na universidade foi o expurgo da reflexão política, militância e questionamento da ordem. Professores e alunos foram expulsos e afastados, e uma nova tecnocracia foi se tornando ainda mais forte no mundo acadêmico nacional. Em troca do apoio recebido da classe média, a ditadura reservou ao ensino superior um sentido de ascensão social para os filhos dessa classe, continuando a barragem de alunos pobres e valorizando a graduação como forma de qualificar mão de obra e lapidar a entrada no mercado de trabalho. Dessa época a solidificação do costume de usar o anel de formatura e pendurar o diploma na sala de estar da casa, elementos de distinção.
Mas o país seguiu fortemente o rumo da modernização conservadora, multiplicando sua população e seu parque industrial. Assim, o sistema de pós-graduação também passou a ser implantado e, a partir de 1968/69, a entrada cada vez mais forte do capital privado no setor universitário, ovo de serpente responsável atualmente por mais de 75% de todas as matrículas.
Com as transformações políticas e econômicas nos anos 1980, uma nova conjuntura se abriu. A universidade, que, grosso modo, havia sido treinamento para a elite, depois dínamo do desenvolvimento econômico, pedra angular da crítica social e formadora de mão de obra qualificada e dócil ao regime, teve que procurar se adequar aos novos rumos, e acredito que daí se estenda a conjuntura atual em que vivemos.
Nessa, o ideário socialista desapareceu do horizonte imediato, com a naturalização do modo de produção capitalista e da presença do Estado burguês enquanto gestor da vida social. Assim, se relativizou o papel de transmissão dos valores cívicos que a formação universitária chegou a possuir. Também com as dramáticas modificações tecnológicas e no gerenciamento da força de trabalho, o ensino superior se tornou desajeitado para a formação de mão de obra qualificada para o mercado. Com o término da fase econômica expansionista, o papel nesse sentido se mostrou defasado. Finalmente, com o neoliberalismo e o reordenamento do aparelho de Estado, novas injunções passaram a ser dominantes, como a presença do Banco Mundial na gestão do ensino, através de metas e projetos em troca de empréstimos aos governos. (LEHER, 1999.). O conceito onipresente para qualificar o ensino superior passou a ser o de “crise”, porque se trata, ao fim e ao cabo, de uma universidade construída no e para o capitalismo que parece não dar mais conta de sua missão.
4) A Negociação e a Greve:
Em agosto de 2010 oficializaram-se os debates entre os professores e o Estado brasileiro para a reforma da carreira. Numa seqüência de reuniões, o ANDES –SN expôs demoradamente e de forma inequívoca o que entendia ser uma carreira justa, lógica e qualificada, sistematizando idéias e conceitos elaborados por suas bases através dos grupos de trabalho. Os negociadores do governo, outrossim, reportaram entender a posição dos professores e anotar os dados, repassando aos superiores.
O problema começou a agudizar quando a administração federal insistiu nas reuniões sem caráter deliberativo, apenas expositivo. Espécie de oficina em que uma parte verbalizava e a outra observava, empurrando efetivas tomadas de posição para um futuro incerto. O governo que propunha a mudança na carreira parecia não ter a mínima pressa na concretização do objetivo, enquanto os docentes se irritavam cada vez mais com a lentidão e a falta de respeito com o acordado. O processo não andava e a burocracia de Estado respondia com postergação de datas, até que afiançou compromisso: em agosto de 2011 estaria pronto o projeto de lei da nova carreira dos professores federais, contendo reivindicações de ambos os lados.
Quando agosto de 2011 chegou, a tensão aflorou. O governo não obedeceu mais uma vez o combinado e se absteve do compromisso de apresentar a minuta estruturada da nova carreira. Assim, não restou alternativa ao ANDES – SN senão acenar com a greve. Frente a essa nova conjuntura, os negociadores do planalto pediram uma trégua e estabeleceram outra data para implantação da nova carreira: março de 2012. Depois de prolífico debate nas bases, com muitas seções sindicais se posicionando pela não aceitação desse repetido adiamento e, consequentemente, pela deflagração imediata do movimento paredista, a diretoria do ANDES –SN acatou a posição da maioria, que ainda era pela não paralisação das atividades. Assinou-se um acordo contemplando a nova data como limite.
Chegado março de 2012, novamente o governo descumpriu o acordado e o plano de carreira não deu sinais de vir a tona. Então os professores perderam a paciência e elaboraram uma estratégia de luta, de paralisações de advertência enquanto os negociadores do governo e a diretoria do ANDES – SN debatiam em Brasília o problema do impasse. Foram três reuniões em abril (13,19 e 25), em todas elas a administração Dilma tergiversando e apresentando mais do mesmo, ou seja, nenhum posicionamento concreto. Em 17 de maio, finda as reuniões e chegando ao limite da impostura oficial de combinar e não cumprir, cerca de trinta universidades deflagraram greve até o plano de carreira ser sancionado. No final desse mesmo mês mais de quarenta universidades engrossaram as fileiras, chegando a junho as quase sessenta. Contando com as instituições federais e CEFETs (Centros Federais de Educação Tecnológica) o número de estabelecimentos parados atingiu a casa da centena. Com os funcionários e alunos também em greve, o cenário se fechou como a maior greve educacional da história.
Mesmo nesse contexto, a classe dirigente brasileira não se posicionou publicamente e tentou ignorar o movimento. Entrementes, em Brasília marchas e manifestações conjuntas, e nos campi Brasil afora debates e mobilizações pintaram o país com a militância que há muito não se via. Novos professores recém contratados se uniram aos antigos, gente que havia se afastado da luta sindical retornou a ela, lugares em que sindicatos pelegos dominavam as associações docentes foram atropelados pelas bases mobilizadas, conquistando a greve a despeito das direções conservadoras.
Seguiu, entretanto, a insistência do governo em não abrir negociações, ao ponto de finalmente ceder e reconhecer a pressão, agendando um encontro em 28 de maio, para dias antes desmarcá-lo sem explicações plausíveis. A época, o movimento paredista, bastante forte e na direção ascensional, raciocinou com as seguintes hipóteses: a) a presidência da república trabalhava com a suposição de aceitar algumas demandas, mas estava insegura com o desenrolar da crise econômica mundial, sem condições de tomar uma definição; b) a presidência da república tentava fortalecer o PROIFES (Federarão dos Professores), associação de docentes aliada ao governo e com pouquíssima representação na base (algo em torno de três mil num universo de cento e cinqüenta mil); c) a postergação era uma das táticas na estratégia de seguir destruindo a autonomia universitária, reforçando o ideário de que os professores deveriam deixar de lado estabilidade no trabalho e lógica cientifica em troca de flexibilidade na captação de recursos na iniciativa privada, com a chamada vida acadêmica voltada para a economia de mercado ao invés de produção e difusão do conhecimento. Daí a prática de vender a ideia de greve obsoleta e sem impacto em qualquer tipo de negociação. (LEHER, 2012).
Quanto mais a greve recrudescia, mais o governo tentava demonstrar indiferença, objetivando sedimentar o conjunto de conceitos de que o professor deveria se afastar da política e do sindicato e prestar serviço no mercado, complementando um salário propositalmente achatado ao concorrer nos editais e vender conhecimento para empresas, até a aposentadoria a um fundo privado de pensão (FUNPRESP).
Àquela altura se mostrava escandalosa a omissão do MEC e do Ministério do Trabalho no imbróglio, resultando na onipresença do Ministério do Planejamento e Gestão, escancarando assim o sentido tecnocrata e empresarial do staff do governo envolvido na disputa.
Após 57 dias de greve, enfim, o MPOG apresentou a proposta de carreira. Numa sexta feira 13, através do Jornal Nacional, o país pode se inteirar que os docentes, sobretudo aqueles “com doutorado”, receberiam reajuste de 45% em seus vencimentos, algo inédito e sobremaneira generoso por parte do Estado. Ocultou-se, dentre tantas outras coisas, que a pauta da greve não era salarial. Algumas horas antes das nove da noite, destarte, o ANDES-SN conheceu a íntegra da proposta, que ignorava todo o material crítico produzido pelos professores e debatido com o governo desde agosto de 2010. Tratava-se de um outro tipo de documento, com outros conceitos e práticas, que piorava todos os aspectos da carreira e criava novas distorções e barreiras para a progressão. O reajuste anunciado desconsiderava a inflação e escamoteava a desigualdade conforme as classes, muito mais para o professor titular, em torno de 8% do professorado universitário, e menos que a inflação para o especialista e mestre em momentos iniciantes, chamados auxiliares. Ou seja, para esses a questão salarial significava regressão e perda pura e simples.
No final de semana que se seguiu a proposta foi de adrenalina a mil no seio da greve, na medida em que as informações foram sendo divulgadas e o plano de carreira conhecido na íntegra pelas bases. Resumidamente, o plano continha as seguintes regressões:
a) Os professores reivindicavam uma carreira única para os docentes federais. O plano mantinha a divisão entre MS (Magistério Superior) e EBTT (Ensino Básico, Técnico e Tecnológico).
b) Os professores reivindicavam o desaparecimento da classe “professor titular” nos moldes atuais, nos quais o docente deve se demitir e ingressar numa nova carreira para integrar esse cargo. O governo mantinha o cargo criando duas formas de acesso, limitando a 20% do quadro efetivo da instituição federal de ensino.
c) Os professores reivindicavam 13 níveis na carreira, sem divisões de classes, com steps de 5% na passagem de cada nível. O governo mantinha a separação entre auxiliar, assistente, adjunto, associado e titular (oito anos em cada classe, com possibilidade de progressão a cada dois anos), empurrando maiores remunerações para o topo e defasando a base. gia de seguir destruindo a autonomia universitaria ra com o desenrolar da crise economica seguintes hip
d) Os professores reivindicavam uma ascensão equilibrada entre tempo de serviço, produção e titulação. O governo estabelecia o mínimo de 12 horas/aulas, e um score que se deveria atingir a cada interstício. Um mínimo de 70% de um ranking a ser elaborado pelo MEC em 180 dias, extinguindo a auto-avaliação docente nas comissões internas de cada universidade. O acesso a professor adjunto passaria a ser apenas para os docentes com doutorado, e a permanência, com qualquer titulação, três anos como professor auxiliar, até finalização do estágio probatório.
e) Os professores reivindicavam a dedicação exclusiva. O governo criaria o D.E com retribuições por projetos institucionais e gratificações por consultorias, com regulamentações a serem estabelecidos pelo MEC em 180 dias, incentivando assim a diminuição do interesse do docente na vida acadêmica e aumento nas atividades empresariais, na esteira das PPPs (Parcerias Público Privadas).
f) Os professores reivindicavam “uma linha no contracheque”, constituída pelo salário base, em que o professor 20 horas receberia metade do 40 horas, enquanto o 40 horas D.E um terço a mais. O governo desestruturaria ainda mais a lógica remuneratória, por exemplo, com o assistente 2 recebendo apenas 20% a mais se D.E, o titular 40% e o auxiliar 54%, carente de explicação motivacional dessas variações percentuais, aparentemente aleatórias. O titular receberia na composição total de seus vencimentos apenas 38% de salário base, sendo o restante 62% de retribuições e gratificações. Se levada em conta a inflação 2010/2015 (calculada em 35,5% pelo DIEESE), os ganhos salariais seriam quase zero, variando de 5% para o titular e recuo de 9% para diversas classes abaixo do adjunto 4. A educação superior seguiria sem uma data base anual. [2]
g) Os professores reivindicavam a inclusão dos aposentados nos reajustes e reenquadramento nos níveis criados após a aposentadoria. O governo não tocaria sequer no assunto sobre os aposentados.
O movimento classificou a proposta como indecente. Defeituosa e desequilibrada, na sua lógica o avanço do produtivismo sem freio, barrando os atributos para a atividade da reflexão e demora do pensamento, detentoras de ritmos próprios. A nova carreira repousava no chamado “empreendedorismo” docente, fadado a um salário baixo para buscar a maior remuneração no mercado capitalista. Instigava o individualismo e a competitividade, claros atributos causadores de streese e depressão no meio acadêmico. Com efeito, rebaixava ainda mais a docência, vilipendiando toda a malha salarial e ignorando o ponto 2 da greve, melhores condições de trabalho.
Entre os dias 16 e 20 de julho todas as associações docentes em greve se reuniram em assembléias lotadas e, por unanimidade, rejeitaram a proposição. No dia 23 de julho, os negociadores do Estado apresentaram a mesma proposta com algumas correções secundárias e, alegando que o PROIFES assinara o acordo, deram por encerradas o contato com os grevistas. Doravante não houve mais nenhuma mesa de negociação.
Cabe aqui uma referência ao PROIFES. Toda a organização social em moldes democráticos permite a existência e atuação de tendências distintas no espectro ideológico. No ANDES-SN, existe uma camada de professores que pensam seu trabalho e sua condição como superiores e incomparáveis aos demais ramos do trabalho assalariado e do funcionalismo público. Reclamam que antes de serem trabalhadores “formam trabalhadores”, daí sua ojeriza pela luta sindical e apego a qualquer governo de turno. São favoráveis a “modernização da docência”, entendida como inserção cada vez maior do lucro como paradigma do trabalho docente. Esse grupo, originalmente uma tendência dentro do movimento, foi se afinando cada vez mais ao governo federal do PT, até estabelecerem fina sintonia com o PC do B em 2005, iniciando a tentativa de estabelecimento enquanto sindicato distinto do ANDES-SN.
A despeito de a lei trabalhista facultar um único sindicato por categoria, esse grupo conseguiu, através da estreita ligação com a classe dirigente petista, se firmar em alguns lugares e mesmo cassar a carta sindical de seções locais do ANDES-SN. Em outras palavras, é um braço do governo no movimento docente, ou segmento do movimento docente que tem no governo seu braço. O PROIFES é contra assembléias e democracia pela base, adotando a votação através da internet. Dessa forma, quando o governo desqualificou o ANDES-SN, que representa a classe e que não aceitou o acordo, e elegeu o PROIFES como seu único interlocutor, alardeando que a aceitação do acordo por esses significava a aceitação de toda a base, não só desrespeitou as regras da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e da própria Constituição, que proíbe o Estado de ditar de cima para baixo qual organização é representativa do todo e qual não é, como realizou a proeza de uma negociação dele com ele mesmo, dado o grau de imbricação entre a burocracia estatal e as lideranças do PROIFES.
Todavia, a greve longe de terminar se fortaleceu. Aumentou a insatisfação e a energia dos grevistas, que a todo momento ocuparam Brasília em marchas e manifestações, reforçando a pressão sobre os parlamentares para entrarem na disputa para reabertura de negociações, o que na prática era uma abertura efetiva pois até então negociação de fato não havia senão a imposição pela parte do governo de um projeto de lei que em nada dialogava com o movimento docente. Nas IFES (Instituições Federais de Ensino), semanalmente intensificaram-se os atos, carreatas e todo tipo de atividade, pressionando também aos reitores que aderissem ao movimento.
O impasse estava estabelecido na medida em que a proposta era muito deletéria, logrando piorar uma situação já entendida como ruim, impedindo até mesmo os professores mais reacionários e no topo da carreira ou com uma situação financeira acima do nível da maioria de seus colegas que saíssem em sua defesa. Claro que houve votos em assembléia para saída da greve, mas com uma defesa tímida e dúbia sobre o ponto de pauta do movimento. Por outro lado, o governo se blindou e, alegando que a data limite para o envio do projeto ao legislativo era 31 de agosto, não atendeu os grevistas. Sequer abriu uma possibilidade coerente do ANDES –SN de flexibilizar sua proposta, porque não houve diálogo e o governo não sinalizou aonde poder-se-ia ou não atender o movimento, abrindo no mínimo uma vereda para o contraditório. Do poder central só descia uma mensagem: não aceitamos nenhum tipo de contribuição, esse é o nosso plano de universidade
Das bases uma multiplicidade de sugestões para o movimento em nível nacional radicalizar o processo, de greve de fome a atos de desobediência civil. Em agosto outras categorias do funcionalismo público federal também deflagraram greve, engendrando uma situação explosiva na conjuntura da luta de classes. Não obstante, o governo costurou acordos com cada setor, estabelecendo o percentual de 15,5% de reajuste a ser efetivado até 2015, uma mera reposição inflacionária, se essa permanecer no atual patamar. Na entrada do mês de setembro os professores se viram na fase descencional do movimento, com a saída da greve dos funcionários técnicos administrativos e a normalidade da maioria do setor público. Nas assembleias de base se tornou forte o numero de votos pelo fim da greve, embora incapaz de compor uma maioria simples.
Os docentes decidiram então pela suspensão unificada, elegendo a data de 17 de setembro. Pesou o natural desgaste de mais de cento e vinte dias de paralisação e a necessidade de uma mudança na forma de luta, uma vez que o plano de carreira saíra do executivo e iria tramitar no legislativo até o final desse ano. Depois de três anos de negociação e quatro meses da maior greve de sua história, os docentes saíam numa posição pior do que entraram. Não bastasse a inexistência de ganhos objetivos, as perdas eram acentuadas. Como se a montanha houvesse parido um rato.
5) O pós-greve:
Terminada a greve e retomado o calendário acadêmico, um compreensível fadiga se abateu nas associações docentes. As assembleias se esvaziaram e o clima do otimismo militante deu lugar a um pessimismo de expectativas. Tanto para aqueles que achavam que essa seria a última greve e se resolveriam todos os problemas da universidade, quanto para os mais lúcidos que sabiam do tamanho do desafio e apostavam na greve, todavia com a desconfiança pelo tamanho dos desafios a serem enfrentados.
Penso que a maneira do desenrolar do movimento e o comportamento governamental e da sociedade em geral sugerem elementos preocupantes para o futuro próximo. Pelo lado positivo, frente a envergadura da agitação política, o governo cedeu em vários aspectos ainda pouco publicizados: a diminuição no ritmo de abertura de novos cursos precarizados, o abrir mão do congelamento de dez anos que se propunham aos vencimentos dos servidores federais, o lançamento de novos concursos efetivos para docentes.
Nesse sentido, os professores saíram fortalecidos da contenda. Não assinaram o acordo, seu legítimo sindicato recompôs seu trabalho de base, aumentando o número de sindicalizados, trazendo para luta novos professores contratados via REUNI e/ou que jamais haviam militado, e solidificou sua presença na sociedade brasileira e no interior da CSP – CONLUTAS. Nos meios sindicais é clara a opinião de que sem o protagonismo do movimento docente não seria desencadeada a onda de greves do restante do serviço público nacional.
Por outro lado, o negativo, a greve desvelou ainda mais o papel subalterno e problemático que a universidade pública vivencia nessa segunda década do século XXI. O Brasil, país periférico do capitalismo mundial, não possui um projeto de crescimento auto-sustentado, pautado no incremento da indústria nacional e do mercado interno. Assim, a universidade vai deixando de ser investimento e passando a ser gasto, um peso morto, porque não comporta mais o papel de formadora de mão de obra qualificada. Quando necessária, essa mão de obra é treinada nas próprias empresas ou recrutadas em três ou quatro centro de excelência, gerando a superficialidade das demais espalhadas pelo país.
O ensino está cada vez mais a cargo da iniciativa privada, desaparecendo também o papel de fornecer prestígio social e ascensão. Mesmo a graduação na universidade pública passa pela sua maior crise, com cursos rebaixados que nem preparam o aluno para o trabalho e nem configuram o espaço para o conhecimento e a reflexão. A precariedade que se chegou o ensino fundamental e médio enfeixa o problema, na medida em que fornece uma gama de alunos que não sabem ler e escrever. A universidade, pública e privada, recebe mais discentes, entretanto com formação deveras precária. Com a contínua internacionalização da economia, a pesquisa e o conhecimento científico de ponta tendem a vir de fora, sendo a auto-produção, tida como cara, dispensada até certo ponto.
O endurecimento com que o governo lidou com os grevistas, ignorando as demandas e fechando as negociações, sugere sobremodo a dificuldade de barganha de um grupo social que não possui características necessárias para protagonizar transformações sociais em sentido amplo. Nós professores não esposamos um projeto de nova sociedade, dado a fragmentação ideológica, convivemos com a dificuldade de formação de consciência, pois trabalhamos isolados em salas de aula e gabinetes de pesquisa, competindo por publicações e editais, e não desfrutamos de um papel chave na produção dos bens necessários a vida, tecnicamente classificados como trabalhadores improdutivos. Assim dependemos muito de nossos aliados da classe trabalhadora, que no Brasil se encontra pessimamente remunerada e via de regra enxerga não sem certa razão no professor universitário um membro da elite muito mais que um parceiro de luta.
A universidade aparentemente se torna supérflua, e na lei de bronze da acumulação de capital o que não concorre para o lucro deixa de existir. O governo não precisou recorrer sequer ao corte de ponto, e ainda só pode contar com uma ajuda tímida da associação dos reitores (ANDIFES) se comparada a ocorrida em outras situações semelhantes. O professor que esteve de corpo e alma inserido na luta pode estar se considerando agora como no velho ditado, uma coisa tal que, com a qual ou sem a qual, o mundo permanece tal e qual.
Provavelmente viveremos anos de mais sucateamento e degradação da universidade enquanto a ordem competitiva se mantIVer como organizadora da vida social.
BIBLIOGRAFIA
LEHER, Roberto. Um novo senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo.Revista Outubro, São Paulo: vol. 1, n.3, p.19-30, 1999.
LEHER, Roberto. Circular divulgada pelo ANDES – SN em junho de 2012.
MENDONÇA, Ana Waleska. A Universidade no Brasil. Revista Brasileira de Educação, n. 14, 2000.
CHAUI, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Unesp, 2001.
[1] Tento ressaltar os chamados “trinta anos perversos”, de queda na taxa de emprego e intensificação da exploração do trabalho pelo capital. Porque na essência as condições do trabalho assalariado vão sempre piorar no capitalismo, senão absoluta ao menos relativamente, salvo raríssimas exceções.
[2] Esse cálculo salarial em virtude do governo já haver concedido um reajuste de 4% em 2011, incluído como futuro nessa conta. O último assim seria o de 2010.