Pela sindicalização da Arqueologia no Brasil!

Foto: Agnelo Queiroz

Thandryus Augusto, arqueólogo e membro do Coletivo LGBT do Rio de Janeiro.

Foi apenas em abril de 2018 que a profissão de arqueólogo e arqueóloga foi regulamentada no Brasil, a partir da Lei 13.653. Tal processo levou mais de 30 anos, uma vez que foi iniciado pela Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) na III Reunião Científica realizada em 1985. Essa reunião, marcadamente política, foi “o momento que a comunidade se afirma como tal e reconhece a própria existência, propondo-se pela primeira vez a discutir, de modo abrangente, o próprio destino, o papel da arqueologia e do arqueólogo, as deficiências da legislação em vigor e a interferência do Poder Público na atividade científica” (FERNANDES, 2007, p. 52).

Infelizmente, pouco se avançou desde 1985, e mesmo a regulamentação não representou grandes melhoras na profissão e nem na defesa do patrimônio arqueológico do país. Ao contrário, vemos que a SAB, apesar de ter protagonizado importantes discussões sobre licenciamento e ter sido fundamental para o estabelecimento de instruções normativas junto ao IPHAN, recuou do seu papel trabalhista de organização de classe, cristalizando-se cada vez mais como uma organização puramente científica e que muitas vezes se abstém de ter posições políticas mais contundentes. Vemos isso na sua postura diante das ameaças proferidas por Luciano Hang em 2019 contra arqueólogas que faziam monitoramento arqueológico em um de seus empreendimentos (SOCIEDADE DE ARQUEOLOGIA BRASILEIRA, 2019). O que vemos é que, ao invés de termos uma organização orgânica e representativa com primazia no debate sobre a profissão e sobre o patrimônio arqueológico, temos uma organização que se coloca muitas vezes aquém dos interesses de classe e foge das responsabilidades políticas que deveria ter, embora algumas gestões excelentes sejam pontos fora da curva no seu histórico.

Ao que tudo indica, no entanto, as discussões sobre a sindicalização da Arqueologia avançam de forma espontânea em redes sociais e de mensageria. Esse texto tem como objetivo mostrar, justamente, a importância desta organização de classe não apenas para trabalhadores e trabalhadoras diretamente envolvidas, como também para a própria sociedade brasileira. Faremos isso em duas frentes: inicialmente, falaremos sobre o que é Arqueologia e qual a sua importância, e então mostraremos como funciona a profissão no Brasil.

O que é Arqueologia?

Já foi falado antes da importância de comunistas estudarem Arqueologia (DENARDO, 2022), mas vale a pena trazer alguns pontos sobre esta questão. Inicialmente, é importante trazer a seguinte reflexão: ao contrário do que se pensa, Arqueologia não é uma ciência que se volte necessariamente para o estudo do passado, mas sim do próprio presente. Como isto ocorre?

A discussão para isso vem da formação da própria Arqueologia enquanto ciência, ou melhor dizendo, da conceitualização do seu principal objeto de estudo, a cultura material. Por cultura material, podemos entender todo “segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos” (MENESES, 1983). Em outras palavras, cultura material é tudo aquilo que é resultado do trabalho humano, de forma que a própria Arqueologia (enquanto ciência ocidental) é, então, primeiramente, uma ciência voltada para o estudo do trabalho (no sentido estritamente marxista, isto é, de toda apreensão do meio físico pelo ser humano), ou da história do trabalho. Gordon Childe, um dos principais nomes da Arqueologia do século 20, expõe a relação com o marxismo ao discutir como a história das ferramentas possuem uma relação intrínseca com a economia e organização social: segundo ele, “no longo período pelo qual os arqueólogos puderam seguir a história das ferramentas, a humanidade mudou não apenas suas ferramentas mas também o jeito de viver (sua economia), e consequentemente a forma que a sociedade estava organizada para a cooperação” (O’CONNEL, 2022).

A aproximação com o marxismo, muitas vezes perdida nas discussões teóricas da Arqueologia contemporânea, não é casual. De fato, o termo cultura material foi utilizado pela primeira vez na Akademia Istorii Material’noi Kul’turv (Academia de História da Cultura Material), criada por Lênin em 1919. Tal instituto museológico tinha como objetivo estudar, através dos objetos, os diferentes modos de produção de diferentes sociedades (BUCAILLE e PESEZ, 1989; PESEZ, 1998). Vale lembrar que as coleções privadas passaram a compor o acervo dos museus públicos, muito por conta do esforço heroico de Lunacharsky durante a Revolução Bolchevique de 1917 de proteger tal patrimônio artístico, histórico, arquitetônico e arqueológico (MARIÁTEGUI, 2011).

Especialmente na América Latina, a Arqueologia sempre se desenvolveu lado a lado com pressões de movimentos populares, até como forma de garantir a proteção do patrimônio arqueológico. Paulo Duarte, arqueólogo comunista, participou de uma ampla mobilização para a proteção dos sambaquis brasileiros desde a década de 40 (ALCÂNTARA, 2007). Paul Rivet, arqueólogo antifascista, chegou a ser perseguido politicamente na América do Sul por sua luta em defender a demarcação de terras indígenas. Discussões hoje consideradas avançadas no âmbito da Educação Patrimonial já haviam sido feitas por Bertha Lutz, militante do Partido Comunista Brasileiro, na década de 1930 (LUTZ, 2008).

É importantíssimo lembrar também do desenvolvimento da Arqueologia Social Latino Americana (ASLA) ainda na década de 1970, linha teórica que tem explicitamente o marxismo-leninismo como base teórica e que coloca como objetivo auxiliar na construção da Revolução Comunista, de “fazer ciência e ao mesmo tempo ajudar a construir uma sociedade justa” (VARGAS, 2007, p. 77). Nesta linha, a Arqueologia deve se converter em “arma de libertação” capaz de descobrir “as raízes históricas dos povos, ensinando a origem e o caráter de sua condição de explorados; é arma de libertação quando mostra a transitoriedade dos estados e das classes sociais, a transitoriedade das instituições e das pautas de conduta” (LUMBRERAS, 1981), além também de ser capaz de mobilizar a sociedade através do patrimônio arqueológico e sua defesa.

Esse movimento de aproximação política, no entanto, ganhou mais força no cenário global apenas a partir da década de 1980, nos Estados Unidos, como resultado de diversos movimentos contestatórios, como o movimento por direitos civis liderado por Martin Luther King e pelos Panteras Negras, a Revolta de Stonewall, movimentos feministas e finalmente por movimentos indígenas (FUNARI, 2020), especialmente o movimento que levou ao Ato de Proteção e Repatriação das Covas de Americanos Nativos (Native American Graves Protection and Repatriation Act – NAGPRA). É neste sentido que podemos falar que a Arqueologia também é uma ciência do presente, porque cada vez mais sua atuação, seus objetivos, se dão no presente e seus anseios e pressões sociais. O estudo das sociedades pretéritas é apenas o primeiro passo de um longo estudo que vai buscar compreender a relação do objeto com aquela sociedade a partir do trabalho e como este mesmo objeto pode se articular com o presente, como ele chegou até aqui, o porquê de ser estudado, etc.

Neste sentido, nas últimas décadas vimos um grande desenvolvimento da assim chamada Arqueologia Pública, ramo cada vez mais voltado para o estabelecimento da relação entre arqueólogas e arqueólogos e a comunidade que rodeia suas pesquisas, atendendo as demandas sociais e societárias, trabalhando para a defesa do patrimônio, gestão compartilhada e pesquisas que partam de organizações horizontais que garantam a construção cada vez mais democrática do conhecimento. Ao mesmo tempo, as pesquisas se voltam novamente para o seu lado político, buscando combater o preconceito religioso (principalmente às religiões de matrizes africanas e indígenas), o racismo, preconceitos de gênero e de sexualidade; cada vez mais, arqueólogas e arqueólogas se comprometem com a defesa de terras indígenas e quilombolas, defesa de direitos de pessoas ribeirinhas, bem como a manutenção de patrimônios locais que muitas vezes são alvo de destruição pelo poder público por conta de interesses privados de grandes empresários. É neste contexto, portanto, que vale a pena compreender como de fato funciona a profissão no Brasil.

Arqueologia no Brasil, exemplo de como a conciliação age em prol da burguesia.

A profissão no Brasil está intimamente relacionada com a própria legislação sobre o patrimônio arqueológico. Sem querer estender, um dos mais importantes marcos nesse sentido foi a criação da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atualmente Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN) em 1937. Embora tenha sido baseado no anteprojeto escrito por Mário de Andrade, embora o recém-criado instituto apresentava divergências profundas com a antiga proposta especialmente no que estava relacionada com as manifestações culturais populares.

De maneira sucinta, o patrimônio arqueológico brasileiro pertence à União, e portanto não pode ser comercializado, destruído, vandalizado, etc. Isso nunca impediu, no entanto, que a mesma União permitisse a destruição de sítios arqueológicos para favorecer latifundiários, empreiteiras, mineradoras… A destruição dos sítios arqueológicos sambaquieiros ao longo de todo século 20, a fim de extrair matéria-prima (cal), é um dos exemplos mais ilustrativos a respeito disso. A destruição do patrimônio arqueológico levou a uma campanha, realizada pelo IPHAN na década de 1960, nos mesmos moldes que a campanha do “petróleo é nosso”, mas sem conseguir grandes resultados (OLIVEIRA, 2019). Ao longo de décadas, a falta de necessidade de laudos arqueológicos fez com que milhares de sítios desaparecessem com a expansão da fronteira agrícola e avanço dos interesses capitalistas.

Isto pareceu mudar em 2006, com a Lei do Licenciamento Ambiental. Ali, pela primeira vez, foi estabelecido que um laudo era obrigatório em toda obra com mais de 1000 m². Até então, as legislações ou eram estaduais ou regionais (principalmente Minas Gerais, São Paulo e Paraná, e muito por pressões individuais de pessoas como Paulo Duarte, Igor Chmyz, Padre Schmidt, etc), ou então tinham escopo reduzido para certos tipos de sítios, lugares, mas sem estabelecer a necessidade do laudo de forma abrangente para todo território nacional. A partir de 2006 foi observado um verdadeiro boom na chamada Arqueologia de Salvamento ou Arqueologia de Contrato, isto é, trabalhos que não são realizados dentro do âmbito acadêmico e sim de contratos entre empresas. Este cenário foi ainda mais favorecido com o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) do governo petista. Foi neste período que também surgiram as duas maiores empresas de Arqueologia do país, ambas em São Paulo. Hoje, este ramo da Arqueologia corresponde a 98% das pesquisas realizadas no país.

Assim, a profissão funciona, de forma rápida, de acordo com o esquema abaixo:

O que de fato foi um avanço em relação à situação anterior rapidamente mostrou a insuficiência da proposta e seu completo esgotamento. Isso porque a Lei coloca na empresa contratante toda a liberdade para escolher qual empresa vai contratar e como o processo será gerido. Assim, as pesquisas sempre são feitas com base no que é mais barato, e há sempre a pressão por parte da empresa contratante de acabar o trabalho o mais rápido possível, muitas vezes em um tempo menor do que o necessário para a realização de uma pesquisa abrangente e que garanta de fato a proteção do patrimônio arqueológico. De fato, a Lei do Licenciamento Ambiental aprovada pelo governo Lula 1 foi uma grande conciliação que, rapidamente, favoreceu exclusivamente as empresas contratantes. E, como toda conciliação, não significou também nenhuma garantia, uma vez que os políticos orgânicos da burguesia todo ano atacam a mesma lei e tentam derrubar a obrigatoriedade do laudo arqueológico.

A falta de regulamentação do trabalho também significou que as condições de trabalho são precárias. Por exemplo, muitos/as profissionais trabalham dentro do esquema MEI, mesmo que a profissão não seja reconhecida pelo sistema MEI! Ou seja, para atuar como arqueólogo ou arqueóloga, é necessário criar uma empresa cuja descrição no banco de dados aponta atuar em outra área, geralmente relacionada ao ensino ou até mesmo tradução. Este é só o começo, uma vez que durante a atuação as/os profissionais precisam cumprir funções duplas de motorista para ganhar um único salário. Além disso, não há nenhuma garantia de riscos de saúde, bonificações por realizar pesquisas ou monitoramentos em áreas insalubres (como lixões), etc. A regulamentação da classe em 2018 não muda nada deste cenário.

A situação é ainda mais grave ao ler relatos anônimos de profissionais, que tiveram desde assinaturas fraudadas para serem demitidos, até aumentos acordados diretamente com a empresa contratante surrupiados por empresas de arqueologia. Os casos de assédio moral, ameaças de morte (especialmente com latifundiários), e até mesmo assédio sexual também são constantes, especialmente para profissionais mulheres e LGBT que felizmente compõem cada vez mais a classe.

Outro problema gerado pela disposição atual é que, uma vez que as empresas contratantes pressionam de fato pelo serviço mais barato e mais curto, não existe de fato mais garantia da proteção do patrimônio arqueológico, e muitas vezes os laudos se tornam apenas uma burocracia pró-forma. Isto porque, mesmo que se encontrem vestígios, muitas vezes as empresas de Arqueologia são orientadas a prescrever que podem ser destruídos a fim de garantir contratos futuros com grandes contratantes, especialmente empreiteiras. Isso é agravado com a falta de profissionais no IPHAN, que normalmente conta com a média de dois (02) profissionais por estado para revisarem e darem o aval em todos os laudos arqueológicos recebidos.

O cenário é urgente e demanda a organização da categoria, até para podermos ser capazes de fazer pressão no legislativo de forma a garantir que a profissão tenha melhores condições de trabalho, o que só pode ser alcançado com a consequente diminuição da liberdade de escolha e de gestão do trabalho arqueológico das empresas contratantes, uma vez que as empresas de Arqueologia muitas vezes são intermediárias. Também é necessário que nos organizemos para defender nossa classe dos ataques que sofremos inclusive das próprias empresas de Arqueologias, várias delas geridas de fato por pessoas que não são arqueólogas.

Esse ano houve grandes avanços no processo de sindicalização, um sonho muitas vezes tido como distante. Mês passado houve a primeira assembleia oficial do SINDARQ – Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores de Arqueologia. É necessário que se avance cada vez mais, e, nesse cenário, é fundamental a participação de partidos marxistas-leninistas e revolucionários como o Partido Comunista Brasileiro para auxiliar a criação deste sindicato e mantê-lo como instrumento da luta anticapitalista. A Arqueologia no Brasil também é espaço de disputa política, especialmente ao lembrar que a nossa memória e o próprio passado são alvos da espoliação capitalista (BOSI, 1983).

Pela organização da classe!

Pela defesa do patrimônio arqueológico brasileiro!

Pela criação do SINDARQ – Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores de Arqueologia!

Bibliografia.

ALCÂNTARA, Aureli. Paulo Duarte entre sítios e trincheiras em defesa de sua dama – a Pré-História. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. 2007.

BÓSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras. 1983.

BUCAILLE, Richard; PESEZ, Jean Marie. Cultura material. In R. Betti (Ed.), Enciclopédia Einaudi 16 , 11–47. Lisboa, Potugal: Einaudi. 1989.

DENARDO, Thandryus Augusto Guerra Bacciotti. Por que comunistas deveriam estudar Arqueologia? Lavra Palavra, 2022. Disponível em: <https://lavrapalavra.com/2022/07/28/por-que-comunistas-deveriam-estudar-arqueologia/>

FERNANDES, Tatiana Costa. Vamos criar um sentimento?! Um olhar sobre a Arqueologia Pública no Brasil. Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. 2007.

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. A Arqueologia Pública na América Latina e seu contexto mundial. III Seminário Latino-Americano de Estudos de Cultura. “Contribuições das humanidades nos estudos da cultura latino-americana: transversalidades e travessias em tempos de pandemia”. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sa7_CZu4ftE>

LUMBRERAS, Luis Guillermo. La Arqueología como Ciencia Social. Lima: Editora Histar. 1981.

LUTZ, Bertha Maria Julia. A função educativa dos museus. Organizadores: Guilherme Gantois de Miranda, Maria José Veloso da Costa Santos, Silvia Ninita de Moura Estevão e Vitor Manoel Marques da Fonseca. Rio de Janeiro: Museu Nacional; Niterói: Muiraquitã. 2008.

MARIÁTEGUI, José Carlos. Defesa do marxismo, polêmica revolucionária e outros escritos. São Paulo: Boitempo. 2011.

MENESES, Ulpiano Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História, [S. l.], n. 115, p. 103-117, 1983.

OLIVEIRA, Cléo Alves Pinto de. Educação Patrimonial no IPHAN: análise de uma trajetória. Revista CPC, n. 27, Dossiê Educação Patrimonial. 2019.

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VARGAS, Iraida. La Arqueología Social: un paradigma alternativo al angloamericano. Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 8. 2007.