Retrato estilhaçado de um guerrilheiro
Em entrevista ao Correio, o jornalista Mário Magalhães, autor de biografia vencedora do Prêmio Jabuti 2013, fala sobre a grandeza, as contradições e a contribuição de Carlos Marighella para a conquista de direitos no Brasil
Severino Francisco
Durante muitas décadas, o guerrilheiro Carlos Marighella foi um personagem em busca de um autor. Não é mais. O repórter Mário Magalhães, 49, dedicou 9 anos de sua vida (sendo cinco anos e nove meses de trabalho exclusivo) para reconstituir a trajetória aventurosa, apaixonada, acidentada e quixotesca de Marighella. A varredura da pesquisa incluiu entrevistas com 256 pessoas que passaram pela vida do mulato baiano e alcançou arquivos públicos e acervos pessoais. O resultado é um retrato estilhaçado, contraditório, dramático e vivo, registrado em Marighella — O guerrilheiro que incendiou o mundo (Ed. Cia das Letras), livro vencedor do Prêmio Jabuti de 2013 no gênero biografia.
Filho de um italiano e de uma mulata baiana, passional e estrategista, destemido e sentimental, disciplinado e anárquico, cultivador da poesia e autor de manuais sobre a luta armada, supostamente ateu e consagrado filho de Oxóssi em um terreiro de candomblé, Marighella foi deputado do Partido Comunista Brasileiro e líder da resistência clandestina ao longo de duas ditaduras. Permaneceu preso durante sete anos e meio dos 57 anos e 11 meses em que viveu.
Mesmo depois da redemocratização do país, Marighella permanece um personagem maldito e proscrito da história brasileira. Essa imagem sai abalada com esse livro, que restaura a dignidade humana e política do líder comunista. Magalhães mostra o enlace indivisível entre a vida do mulato baiano e as transformações vertigionosas pelas quais o Brasil e o mundo passaram durante o período de 1930 a 1960. Marighella é um dos protagonistas de lutas que levariam a conquistas essenciais dos cidadãos brasileiros: o 13º salário, o combate à mortalidade infantil, o direito de organização partidária e o direito ao divórcio. A farsa montada pelo regime militar para simular uma reação armada do guerrilheiro durante tocaia é desconstruída. Ele foi assassinado quando estava desarmado. Nesta entrevista, Mário Magalhães fala sobre as lutas, as contradições e o lugar de Marighella na história brasileira: “É legítimo amar ou odiar Marighella, mas é impossível ficar indiferente à sua vida fascinante”, sustenta Mário.
O que o fascinou em Carlos Mariguella para dedicar nove anos de sua vida em pesquisas e escrever um livro de mais de 700 páginas. Ele permanece um personagem maldito?
Marighella continua sendo um personagem maldito. Enquanto seu nome estiver barrado dos livros de história, essa condição persistirá. Não proponho que os manuais escolares o promovam ou condenem, mas que contem sua história. Omiti-la é crime de lesa-história e de desonestidade intelectual. Como costumo enfatizar, é legítimo amar ou odiar Marighella, mas é impossível ficar indiferente à sua vida fascinante. Foi ela que me seduziu a mergulhar na biografia, com dois motivos relevantes. A trajetória de Carlos Marighella (1911-69) me permitiu narrar quatro décadas frenéticas do Brasil e do mundo, dos anos 1930 aos 1960. E perfilar outros personagens espetaculares. No livro que escrevi, há dezenas de coadjuvantes e figurantes que merecem biografias específicas sobre eles.
Logo na capa, você faz uma aposta alta, chamando Marighella de “guerrilheiro que incendiou o mundo”. Até que ponto Marighella foi tão importante no imaginário da guerrilha em um plano internacional? Seria algo comparável ao impacto de Che Guevara?
Não é possível comparar, porque Che Guevara foi comandante guerrilheiro de uma revolução vitoriosa e ministro de Estado. Mas, com sua morte, em 1967, a CIA norte-americana apontou Marighella como seu sucessor na inspiração de movimentos rebeldes na América Latina. Em todo o mundo, Marighella inspirou e ainda inspira movimentos contestatórios. Ele e sua organização armada foram ajudados por personalidades como o cineasta francês Jean-Luc Godard, seu colega italiano Luchino Visconti, o filósofo francês Jean-Paul Sartre e o pintor catalão Joan Miró. O jornal parisiense Le Monde chamava Marighella de “mulato hercúleo”. A revista Time, dos Estados Unidos, de “mulato de olhos verdes”, quando eram castanhos. Quando a Ação Libertadora Nacional, grupo guerrilheiro de Marighella, transmitiu mensagens pela Rádio Nacional paulista, em 1969, o New York Times dedicou enorme espaço ao fato. Até hoje os documentos escritos por Marighella são estudados nas academias militares da China e nas escolas de espiões nos EUA. Nas manifestações de junho, cartazes com o rosto e proclamações de Marighella apareceram por todo o Brasil. Excluindo artistas e desportistas, ele é um dos 10 brasileiros de maior projeção internacional do século 20. O silêncio sobre seu nome foi uma longeva herança da ditadura.
Um dos méritos do seu livro é mostrar que Marighella participou ativamente dos movimentos de reivindicação de direitos sociais e mudanças em quatro décadas cruciais para a história do Brasil do século 20. Que mudanças considera cruciais no país e qual o papel de Marighella nas conquistas de direitos sociais?
Na Constituinte de 1946, ele defendeu o divórcio e perdeu, mas no futuro esse direito seria conquistado. Batalhou pelo 13º salário e o derrotaram, porém mais tarde o benefício se tornou lei. Idem o direito de organização partidária. A luta contra a existência de ditaduras — ele viveu sob duas, o Estado Novo (1937-45) e o regime instaurado em 1964 — não foi em vão. Quando Marighella foi eleito deputado federal constituinte, em 1946, a mortalidade infantil em Salvador era de 250/1.000. Hoje deve estar em torno de 20/1.000.
Marighella, que se empenhou contra a miséria, é um perdedor?
Divirjo da ideia de que Marighella foi um perdedor. Embora o Brasil tenha melhorado desde o assassinato de Marighella, em 1969, eterniza-se nossa maior tragédia: a pornográfica desigualdade social. O meu livro mostra como Marighella e seus companheiros foram decisivos em muitos movimentos nos quais se mantiveram discretos. Foi ele quem pessoalmente orientou a célebre Greve dos 300 Mil, em São Paulo, em 1953. Partidários seus lideraram a maior greve operária de 1968, em Contagem (MG).
Que bandeiras do Partido Comunista Brasileiro, demonizado há 50 anos, foram incorporadas ao discurso político atual? Qual a contribuição do PCB para construção do Brasil moderno?
A principal foi a ideia de que os trabalhadores não são cidadãos de segunda classe, embora ainda sejam tratados como tal.
O Marighella que você revela no livro rompe com o figurino do comunista dogmático. Parece ser firme, mas com traços pouco ortodoxos, de espírito meio anárquico e hedonista baiano, durão e feminista. É o fato de ser baiano que explicaria essas nuances?
A Bahia foi fundamental em sua formação. Marighella se definia, em síntese, como “um mulato baiano”. É curioso que, embora à frente do seu tempo, dividindo o trabalho doméstico com a mulher, ele não se considerava feminista e condenava o feminismo como compreendido na década de 1940. Conto em detalhes no livro. Próximo da morte, Marighella entrou em colisão com governo cubano. Um dos motivos foi a recusa dos caribenhos em treinar mulheres brasileiras em guerrilha rural, distinção de gênero inaceitável para Marighella.
“Responda sempre com poesia”, diz Marighella para uma amiga. Desde os tempos de estudos secundários ele sempre exercitou a poesia. Qual a importância da poesia na vida de Marighella? Era só um versejar ou significava também uma visão de mundo?
Significava uma maneira de encarar a vida. Às vésperas da morte, Marighella se dedicava a compor paródias de sucessos de Roberto Carlos. Ele ficou famoso na Bahia não pela política, mas ao responder em versos rimados, aos 17 anos, uma prova de física, que eu publiquei na íntegra. Marighella foi profundamente influenciado por dois poetas da Bahia, Gregório de Matos e Castro Alves. Em 1965, lançou clandestinamente um livro de poesias. A maior parte era de versos eróticos, e não políticos. Aos 19 anos, concluiu assim um poema: “Andei como o diabo! Enfim… eis-me de novo aqui:/ quero ver se descubro se já me descobri”. Está tudo no livro.
Como disse o Renato Russo: a violência é fascinante. A partir de certo momento, Marighella tomou o caminho da violência como opção de transformação social. É algo que mancha a biografia dele e o coloca na condição de bandido? O que considera os altos e os baixos na trajetória de Marighella?
Não escrevi nem uma hagiografia, exaltando o protagonista do livro, nem um libelo contra ele. Também não tenho veleidades de juiz. Cumpro a missão do biógrafo: contei o que Marighella fez, disse e, na medida do possível, pensou. Ele tem grandes e pequenos momentos, como qualquer ser humano. Não exponho minha opinião sobre a luta armada contra a ditadura. Apenas registro que havia muitas formas legítimas de enfrentar o regime pós-1964, e a guerrilha era uma delas. Teólogos clássicos da Igreja já aceitavam, séculos atrás, o recurso à violência como instrumento para combater tiranias. Mas não julgo Marighella, não escrevo que ele foi herói ou bandido. Conto sua história, para que cada leitor a avalie conforme seus próprios valores. Papel de biógrafo não é fazer cabeça de leitor, mas contar histórias. Reconstituo a tortura pela qual o jovem Marighella passou por 21 dias em 1936. Não duvido que haja quem se identifique com os torturadores…
Há, no momento, uma discussão sobre a inviolabilidade da vida privada de pessoas públicas. No caso de Marighella, a vida privada e a vida pública se entrelaçam de maneira indivisível. Que prejuízos para a compreensão de Marighella e da história a que ele está ligado se houvesse cerceamento de pesquisa a aspectos da vida íntima do personagem?
O livro que eu escrevi não existiria. Marighella lutou apaixonadamente pela revolução social e amou e foi amado com igual intensidade. Como separar o revolucionário valente do homem passional?
O grupo Procure Saber afirmou que os biógrafos ganham rios de dinheiro com os livros que escrevem no Brasil. É verdade que vocês, biógrafos, são milionários? No seu caso específico, você ficou muito rico com o livro sobre Marighella?
Trabalhei nove anos na biografia. Nesse período, cinco anos e nove meses em regime de dedicação exclusiva. Somando tudo o que ganhei com a venda de exemplares e o que vou ganhar com os direitos de adaptação para o cinema, só receberei 15% dos salários de que abri mão por 69 meses, ao largar um ótimo emprego para cuidar do livro. Ou seja, de cada R$ 100, só vi a cor de R$ 15. Trocando em miúdos, escrever biografia é um suicídio financeiro.
O que diria aos ministros do STF que vão julgar o mérito da ação que pede a revisão do artigo do Código Civil que tem possibilitado a censura às biografias e a outras obras documentais envolvendo personagens da história brasileira? O direito à inviolabilidade da vida íntima deve se sobrepor ao direito da informação ou essa é uma falsa questão?
Todos os direitos, de privacidade e liberdade de expressão, estão garantidos pela Constituição Cidadã de 1988. Mas o que o direito à privacidade tem a ver com censura prévia? O Brasil é hoje a única grande democracia do planeta a censurar livros que ainda nem foram lançados. A lei é de 2002, mas ela expressa a sobrevivência da cultura obscurantista. Quem gosta de censura é ditadura. Espero que os ministros do STF e os congressistas consagrem a democracia, a liberdade de expressão e o direito à informação, abolindo a censura.
“Marighella continua sendo um personagem maldito. Enquanto seu nome estiver barrado dos livros de história, essa condição persistirá. Não proponho que os manuais escolares o promovam ou condenem, mas que contem sua história”