O capitalismo no país das maravilhas*

Nos EUA, a segunda economia mais rica do mundo, o número de gente sem casa triplicou desde 1983, atingindo os 3,5 milhões. Há actualmente 15 milhões de crianças com fome. Destas, 1,5 milhões não tem casa. Na lista de países que melhor protegem as suas crianças, a UNICEF coloca os EUA abaixo da Grécia e apenas duas posições acima da Roménia.

A maior potência imperialista, que leva a guerra a todo o planeta, está também em guerra com os pobres do seu próprio país.

Num ano em que a cidade de Nova Iorque enfrenta o frio mais inclemente de várias décadas, o número de «sem-abrigo» na Grande Maçã também bateu o maior recorde de todos os tempos: 60 000 pessoas sem casa, metade das quais são crianças. E de acordo com um estudo publicado na semana passada pela Universidade de New Hampshire, o problema é à escala federal. Na segunda economia mais rica do mundo, o número de gente sem casa triplicou desde 1983 para 3,5 milhões. Curiosamente, desde essa mesma data, também triplicou para 18 milhões o número de casas sem gente.

O estudo concluiu que de geração para geração cada vez é mais difícil sair da pobreza. Na «terra das oportunidades», a pobreza das famílias de classe trabalhadora tem uma tendência consistente para perpetuar-se e crescer nas gerações vindouras, criando um ciclo vicioso e cada vez mais difícil de inverter. Ou, como demonstra o testemunho recolhido pela investigadora e jornalista Tiffany Willis: «Uma vez, eu precisava de lápis-de-cor para um trabalho. A minha professora disse-me que se eu não os trouxesse levava um zero. Disse-lhe que não tinha, mas ela respondeu-me que eu tinha de tratar disso. No caminho para a escola, a minha mãe entrou no supermercado e pediu-me para esperar à porta. Eu não percebi, porque ela tinha dito que não tinha dinheiro. Quando saiu, levava com ela os meus lápis-de-cor, mas não estavam dentro de um saco de plástico, estavam escondidos dentro da blusa. Acho que os roubou. Ela estava a chorar.» Segundo os autores do estudo, a percentagem de crianças sem-abrigo que conclui o ensino secundário situa-se nos 20 por cento. No reverso da medalha, observa o estudo, cresce a tendência para que os filhos dos muito ricos ultrapassem a fortuna dos pais.

O que dizem as crianças sem tecto dos EUA

Há actualmente 15 milhões de crianças com fome nos EUA. Destas, 1,5 milhões não tem casa. Com efeito, na lista de países que melhor protegem as suas crianças, a UNICEF coloca os EUA abaixo da Grécia e apenas duas posições acima da Roménia. Poderíamos acreditar que a colossal dimensão deste crime, que constitui uma continuada violação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e que, para além do mais, decorre num país rico, seria alvo de severas atenções mediáticas e de consensuais admoestações internacionais. Mas a pobreza das crianças dos EUA é invisível. Na verdade, é exactamente essa a estratégia de um número crescente de estados: varrer a miséria extrema para debaixo do tapete. No Arizona proíbem a mendicidade; em Boston instalam a chamada «arquitectura hostil», que impede as pessoas de repousarem nos espaços públicos; no Colorado, o Estado oferece bilhetes de autocarro aos sem-abrigo, para que vão e não voltem; em Hollywood, a cidade está a comprar às organizações de caridade os imóveis onde funcionam os abrigos nocturnos… para poder demoli-los; no Alasca, o Representante Don Young foi mais longe e sugeriu «alcateias de lobos» para acabar com o problema.

São as regras do jogo do capitalismo em todo o seu brutal esplendor: privatizar a produção de riqueza e socializar a produção prejuízos, pelo que os resultados económicos negativos que se sucedem em catadupa nos EUA fazem adivinhar que a escala e a gravidade da miséria extrema irão continuar a agudizar-se, acentuando cada vez mais as contradições mais abjectas e anti-humanas do capitalismo. Neste jogo viciado, a falta de habitação, de emprego e de comida não são infortúnios, são jogadas de classe. As cartas do capitalismo estão há muito tempo à vista: desvalorização do trabalho; guerra infinita; miséria. Não basta virar o jogo, é preciso virar a mesa.

*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2155, 19.03.2015

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