Agitação popular e ódio de classe

João Vilela

No limite, o chamado “fator subjetivo” pode ser resumido em duas coisas simples:  formação teórica e consciência da própria força. A falta de condições subjetivas numa fase em que as condições objetivas tornam o socialismo a única saída para os problemas da humanidade (a não ser nas cabeças onde a ilusão mecânica do etapismo continua a pesar) é de se explicar por estes dois motivos:   não foi feito um devido trabalho de esclarecimento, não foram organizadas forças que permitam aspirar à vitória sobre a burguesia. Como as duas coisas são uma e a mesma, posto que – como sabemos desde as “Teses Sobre Feuerbach” de Marx – o proletariado colhe ensinamentos na praxis revolucionária e não sentado à mesa de uma sala de formação, e a praxis revolucionária só é possível com proletariado mobilizado para ela, os problemas do fator subjetivo resolvem-se a montante com agitação, a jusante com organização proletária, e em todo este processo com o papel insubstituível dos comunistas.

A questão da agitação coloca problemas difíceis de superar: como arrancar do torpor o gigante adormecido que é o proletariado? Como fazê-lo sentir a descarga de energia, o tremor eletrizante, a vontade irreprimível de agarrar o seu destino nas mãos com firmeza, e o guiar pelo caminho dos seus interesses, fazendo voar à estalada (ou da forma que for preciso) qualquer um que se meta no seu caminho? Não há, responderiam os habituais cultores da banalidade, nenhuma receita culinária sobre como trilhar esse caminho. Mas há exemplos da nossa vida quotidiana, que interpretados à luz da experiência histórica do movimento operário, nos auxiliam a compreender o que desata este torpor.

O autor destas linhas teve o seu baptismo de fogo na participação em algo parecido com a organização da luta de massas enquanto organizador dos chamados “movimentos inorgânicos” que fervilharam entre 2011 e 2013. Naturalmente, fala em nome da sua experiência pessoal e sem ser porta-voz de mais ninguém. Mas não julga estar a forçar demasiado a nota se disser que o que movia os que se reuniram, os que colaram cartazes, os que distribuíram documentos, os que pegaram em faixas, em megafones, em pancartas, em cartões improvisados para estampar as suas causas, era um profundo sentimento de raiva. De exaspero. Da cólera profunda de alguém a quem mentiram, a quem faltaram ao prometido, a quem garantiram uma vida e lha roubaram depois. Essa raiva crescia nos dentes, nascia nos dedos. Era a raiva dos pais que eles traziam, e dos avós já velhos, e dos que lutavam há muito, e foram à escadaria da Igreja de Stº Ildefonso dizer-nos que não era para isto que tinham feito o 25 de Abril. O que unia toda aquela massa de gente era um sincero e mordido ódio de classe.

A burguesia pode cobrir de açúcar a exploração com que nos fustiga. Pode dizer que sofremos agora e depois passa, a seguir melhora, um dia, algures, se aguentarmos firmemente e mantivermos a fé, vamos chegar ao Paraíso e ter leite e mel para toda a vida. Só precisamos de fazer currículo, começar por baixo, tirar positivos das adversidades, agarrar as oportunidades (só o uso desta palavra dava um tratado…), já agora baixar a bolinha e perceber quem manda aqui. A crosta bruta pode soterrar a chama, pode amolecer uns quantos, pode garantir um, dois, seis, dez anos em que se trabalha no shopping “porque não é vergonha nenhuma”, ou se está a recibo porque “o que é preciso é ter trabalho”. Lá dentro, onde vivem as aspirações e os anseios, onde se fazem as contas ao salário uma semana depois de o receber, onde as angústias fervilham e o pavor da escassez não é narcotizado com discursos motivacionais, lá dentro está o fundo essencial e sadio da alma trabalhadora. A chama da ideia é esse fundo. E ela consome a crosta bruta, com a violência de um incêndio infernal, quando a organizam e lhe mostram que há uma saída e força para a conquistar.

O dever dos revolucionários é alimentar esse fundo de rejeição, de revolta, de raiva, de um desejo de quebrar correntes e ser livre. Alimentá-lo mostrando ao trabalhador que não está sozinho. Alimentá-lo garantindo-lhe que outros lutarão com ele. Espalhando por todo o lado os sinais, as evidências, os compromissos da sua organização de classe com o seu futuro. Inscrevendo em cada parede, em cada documento, em cada cartaz, em toda e qualquer forma de intervenção, que ela transporta consigo o selo da resistência popular.

Quando o proletariado entende a força da organização, acorre a ela. Quando lá chega é integrado na luta. Aprende nela. E cada vez mais unido com os seus irmãos de infortúnio, com outros trabalhadores, faz-se parte do músculo da sua classe. Vence com ela.

Agitar este ódio de classe que vem de dentro, que vem do fundo, que vem das noites mal dormidas, das mãos na cabeça a ver a conta da luz, a conta dos remédios ou do hospital, este ódio de ter o filho sem emprego, esta raiva de ver o pai velho e sem nada, este é o dever fundamental de cada um de nós, em cada dia. Fazer do ódio de classe um instinto de cada trabalhador. E da resistência popular uma reação coletiva e natural.

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