“Cracolândia”: muito dinheiro por trás da truculência
Surge o projeto, elitista e segregador, por trás da ação brutal contra dependentes químicos, moradores e comerciantes da Luz, no centro de São Paulo
Por João Sette Whitaker, no Cidades Para Que(m)?
Terminada a operação de higiene social na Cracolândia, com todo o autoritarismo e a violência que caracterizam o prefeito e o governador de São Paulo, percebe-se que há algo mais em jogo do que “apenas” uma operação midiática para supostamente acabar com o fluxo de drogas que ocorria naquela área.
O fim do Programa De Braços Abertos, sabe-se, não foi para dar lugar a uma alternativa de política pública. Nem o prefeito nem ninguém de seu governo está preocupado com o destino dos dependentes químicos que ali se encontravam. Querem que sumam, desapareçam, ou talvez morram, como deixa entender a ação de demolição de um prédio com gente dentro. Sim, com gente dentro. E o prefeito, revivendo um caricato Jânio Quadros fora de época, achou por bem associar-se a essa imagem de desrespeito à vida subindo ele próprio em cima de uma escavadeira. Ao mesmo tempo, entrou na justiça solicitando o direito de internar compulsoriamente os dependentes químicos em “casas de recuperação”. Coisas já vistas em um período muito sombrio da história da humanidade.
Mas há incautos, ou não, que aplaudem. Acreditam realmente que é assim que se faz o atendimento público a uma das faces do problema das drogas. Uma das faces, sim, porque para os abastados o tráfico de drogas entregues a domicílio continua muito bem. Trata-se aqui do lado trágico da questão: o dos abandonados, dos dependentes desconectados da sociedade, da vida familiar, dos pobres a quem já não se dava lugar na nossa sociedade. Esta faceta da questão, que enseja enorme esforço social, humanitário, de saúde pública, como fazia o De Braços Abertos, é mais fácil tratar pelo viés do extermínio.
Por sorte, ao menos um promotor do Ministério Público da Saúde encarou esse escândalo e já se manifestou. Estranho o silêncio de grande parte do MP, se comparado ao esmero com que fiscalizavam até mesmo a forma de publicação da agenda do prefeito anterior. Pois bem, vale informar que o que parece vir daqui pra frente na região deve, ou deveria, dar-lhes bastante material de trabalho.
Pois a “ação antidrogas” é uma parte só dessa história, como vão revelando os fatos que se seguiram à bárbara ação policial inicial. No dia seguinte, as máquinas da prefeitura começaram a demolição de prédios na área da “Cracolândia”. O prefeito publicou um decreto, dia 19 de maio, declarando a área “de utilidade pública”, permitindo que imóveis sejam “desapropriados judicialmente ou adquiridos mediante acordo” para “implantação de equipamento público”. Embora isso não lhe dê direito de ir destruindo prédios por aí, parece que o prefeito valeu-se dele para iniciar um novo processo, não mais de higiene social, mas de intervenção urbanística mesmo: a demolição do quarteirão inteiro. Vale observar que, para retirar as pessoas à força, o prefeito teria que ter a emissão na posse expedida por algum juiz, dentro de um processo desapropriatório, o que é impossível ter ocorrido em menos de uma semana. Por sorte, hoje, a valente Defensoria Pública de São Paulo conseguiu que a justiça suspendesse as demolições.
Para contornar a lei, usa-se um velho expediente do autoritarismo: encontrar alguma irregularidade no imóvel que justifique uma ação de interdição (mesmo se é sabido que na cidade há shopping centers inteiros em situação irregular, sem sofrer nada do tipo). As reportagens na grande mídia, mostrando que bares formais foram fechados com justificativas pífias como a falta de extintores, evidenciam o uso desses velhos métodos autoritários para a retomada desse território da cidade. A construção midiática promovida pelo governo e obviamente assim aceita pelos jornalões é a de que ali todo mundo é bandido. Então, trabalhadores honestos que tinham lá seu comércio se viram sob ameaça policial tendo que tirar em duas horas tudo que tivessem porque as autoridades iam murar o bar. Afinal, “é tudo bandido”.
Mas o que estaria por trás dessa nova ação, agora de destruição física de vários quarteirões, a toque de caixa e sem mesmo retirar as pessoas de dentro? Quais interesses estariam escondidos pela cortina de fumaça da ação de higienização antidrogas?
O prefeito de São Paulo contratou “por notório saber”, isto é, sem processo público de contratação, os serviços de Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba, para realizar um projeto urbanístico para o centro de São Paulo. Curiosamente, o mesmo arquiteto havia proposto um pouco antes, em conjunto com o mercado imobiliário, um projeto para a região, na prática nada mais do que um monte de prédios de negócios envidraçados por cima de toda a histórica região da Luz. Uma típica ação de gentrificação e substituição do centro velho por um distrito de negócios altamente elitizado. Para além das fotos publicadas em seu site e na época replicadas com entusiasmo pela imprensa, ninguém sabe do que se trata. Qual o projeto oficial feito para a prefeitura? Aquele projeto, sintomaticamente chamado de Nova Luz (não é a primeira vez que se usa esse nome para projetos do tipo) não é sobre o quarteirão da “Cracolândia”, mas começa exatamente ao lado, como se vê na foto disponibilizada no site do arquiteto. Será que o que ele fez para a prefeitura foi ampliado para o quarteirão ao lado, e engloba agora a Cracolândia? Estaria aí a explicação da ação do prefeito?
É provável, já que em janeiro deste ano Dória anunciou oficialmente que estava solicitando ao mesmo Lerner um projeto específico para a Cracolândia, conforme anunciou à época o Estadão. Ao mesmo tempo, o governo e a prefeitura voltam a falar sobre a tal da PPP de habitação, que também ocorre na área, um modelo de produção de moradias que, pela matemática financeira que propõe, não atenderá os mais pobres. Tampouco aqueles que, sem ser viciados e muito menos traficantes, moravam e trabalhavam no quadrilátero agora destruído. Para os jovens estudantes de urbanismo, está ai uma aula prática do que é gentrificação promovida pelo Estado. Com qual interesse?
A gestão passada aprovou instrumentos para promover a requalificação urbanística de áreas da cidade, como o PIU – Projeto de Intervenção Urbana, que pressupunham processos de consulta pública e assembleias participativas para aprovação do projeto pelos moradores. Não se pretendia que as mudanças na cidade fossem isentas da influência e do poder do capital imobiliário, pois isso não seria, hoje, possível. Mas se propunha que esses processos fossem discutidos e socialmente construídos, sujeitos minimamente às pressões da sociedade e às demandas dos moradores. Projetos, enfim, que partem do pressuposto do direito de estadia de quem mora no lugar, alavancando as potencialidades existentes para a recuperação da área com um impacto social menor, e não projetos de gabinete que propõe a extinção de tudo que exista no território para a promoção imobiliária pura e simples.
Mas é essa abordagem elitizada que, infelizmente, parece estar se iniciando na Cracolândia. Um projeto de cidade que ninguém viu, exceto nas imagens de propaganda divulgadas na mídia subserviente e acrítica. Quem participou da escolha de Lerner para uma intervenção tão ambiciosa na cidade? Quem teve acesso ao projeto? Onde foi discutido? Para quem foi apresentado? Sempre bom lembrar que os serviços de Lerner, segundo o que se soube na imprensa, foram “generosamente” financiados pelo setor imobiliário. Trecho de reportagem da Gazeta do Povo dizia o seguinte: “a contratação de Lerner foi possível por meio de uma parceria da administração municipal com a iniciativa privada. A contratação será financiada pelo Sindicato da Habitação (Secovi-SP)”. Acho que não é preciso dizer mais nada. A “limpeza” da Cracolândia parece ganhar sentido.