Uma terra sem despejos?

O QUE A APROVAÇÃO DO PL “DESPEJO ZERO” EM PIRACICABA NOS ENSINA SOBRE O PODER POPULAR

PCB de Piracicaba

No dia 16/02 (quinta-feira), as comunidades em risco de despejo de Piracicaba foram vitoriosas e conseguiram, através da mobilização popular, derrubar o veto da prefeitura ao “Projeto de lei Despejo Zero”. Elaborado coletivamente, com o apoio técnico de advogados populares e arquitetos, debatido em assembleias e espaços de formação política, o projeto de lei é resultado de um trabalho de base consistente e comprometido com a construção do poder popular.

Após diversas mobilizações, nas quais as comunidades demandaram o compromisso dos vereadores com a pauta da luta por moradia, o projeto foi aprovado na câmara do município, por unanimidade, na sessão do dia 15 de dezembro de 2022. No entanto, o prefeito vetou o PL no início de janeiro deste ano, durante o período de recesso parlamentar, alegando que a lei incentivaria novas ocupações urbanas no município.

Na prática, o projeto impõe condicionantes para cumprimento das reintegrações de posse decretadas pelo judiciário. Responsabilizando o poder executivo pelo cumprimento de medidas sociais, que assegurem a dignidade das famílias afetadas. A partir do PL “Despejo Zero”, antes de realizar ações de despejo a prefeitura deverá: garantir habitação às famílias vulneráveis, sem ameaça de remoção; manter o acesso a serviços de comunicação, energia elétrica, água potável, saneamento e coleta de lixo; proteção contra intempéries climáticas ou ameaças à saúde e à vida; acesso aos meios de subsistência, inclusive acesso à terra, infraestrutura, fontes de renda e trabalho; privacidade, segurança e proteção contra violência.

O projeto deixa explícita a contradição entre os despejos e a garantia dos direitos fundamentais. Que existem de forma abstrata na letra da lei, mas não se efetivam na prática, devido às contradições impostas pelo capitalismo dependente, onde o acesso aos direitos necessários à uma vida digna são restritos a uma pequena parcela dos trabalhadores. Cumprir uma reintegração de posse significa, em sentido literal, despejar famílias que, por ausência do Estado e de outras possibilidades, encontraram uma alternativa através da auto-organização e da luta, para atenderem à necessidade inescapável de morar.

Afinal, as famílias trabalhadoras ocupam terrenos e prédios que servem à especulação imobiliária porque não têm condições de pagar os preços abusivos dos aluguéis ou comprar moradia própria. Ou seja, porque ocupar é a única alternativa possível para ter um teto onde dormir, quando os trabalhadores são expostos à extrema vulnerabilidade social. Situação que é agravada nos períodos de crise econômica, em que a burguesia promove demissões em massa e redução dos salários.

Em um cenário de desmonte de direitos, com a implementação de políticas antipopulares como Teto de Gastos, Reforma Trabalhista e Reforma da Previdência, a pandemia de COVID-19 levou à uma crise sanitária, social e política, sem precedentes. Nesse contexto, houve um acelerado aumento do número de pessoas vivendo em situação de rua e em ocupações urbanas. Segundo mapeamento da Campanha Nacional Despejo Zero, o Brasil conta hoje com mais de um milhão de pessoas ameaçadas de despejo, somente em Piracicaba são 2.152 pessoas na mesma situação . Em 2020, ano que se iniciou a pandemia, a população em situação de rua em Piracicaba aumentou em 23,7% . No âmbito da renda, houve aumento de 30% no número de famílias em situação de extrema pobreza em Piracicaba entre o final de 2019 e fevereiro de 2021, nesta data 13 mil famílias viviam com renda mensal de até R$ 89 por pessoa, de acordo com os dados do Cadastro Único (CadÚnico).

Diante da acirrada precarização das condições de vida em Piracicaba, diversas ocupações se estabeleceram e, desde o princípio, lidaram com a hostilidade do poder público. Contudo, com o apoio do partido, as comunidades responderam à altura, construindo uma jornada de lutas, que culminou na aprovação do PL 226/22.

Portanto, essa vitória, é resultado de um processo de organização popular que remonta a meados de 2020, quando o PCB deu início a um trabalho de base consistente na luta por moradia em Piracicaba. A advocacia popular teve um papel fundamental nas aproximações iniciais, haja vista, a imediata reação dos proprietários das áreas, que, desde aquele momento, ameaçava as comunidades de despejo.

Contudo, muito além do trabalho jurídico, a construção cotidiana da luta nas comunidades foi fundamentada nos princípios do trabalho de base, ou seja, formação política, avanço de consciência e organização das massas. A articulação constante com as lideranças, organização de assembléias periódicas e constituição de um espaço de formação política através da educação popular, foram os pilares que permitiram construir coletivamente, junto aos sujeitos de luta, as diversas mediações táticas necessárias ao avanço da luta, das comunidades em risco de Piracicaba.

Esse trabalho persistente e contínuo foi de grande importância para a unificação das comunidades em risco (Renascer, Vitória Pantanal e União), construção de diversas manifestações públicas, participações em audiências, sessões da Câmara, agitação nos jornais locais, composição da Campanha Nacional Despejo Zero e outras atividades culturais e políticas, principalmente na comunidade Renascer . Essa vasta experiência de trabalho precisa ser melhor estudada e divulgada para que possa servir como exemplo para novas atividades em diferentes locais do país.

Outro aspecto fundamental desse processo de luta é que o movimento de massas não se pautou na institucionalidade como um fim, contudo, tampouco se absteve de travar as batalhas necessárias nesse âmbito. Esse ponto é relevante, porque as massas se mobilizam, inicialmente, em torno de suas pautas específicas. Nesse sentido, o grande desafio de construir as lutas populares, desde as bases, é formular mediações que dialoguem com a consciência dos trabalhadores e possibilitem que se reconheçam enquanto sujeitos históricos. Para enfrentar esse desafio, é fundamental estar presente no dia a dia da classe, comprometido de forma genuína com seus dilemas e atento à conjuntura ampla.

No caso do PL, por exemplo, o contexto que abre precedente para utilização do projeto de lei enquanto mediação tática, são as decisões do Supremo Tribunal Federal durante e após a pandemia. A campanha Nacional Despejo Zero, composta por diversos movimentos sociais de luta pela terra e por moradia, pressionou a instância pela suspensão das reintegrações de posse durante a pandemia, vitória expressa na ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828.

Quando esse instrumento perde a vigência, devido ao fim da pandemia, é notório que embora questões sanitárias já não tenham a mesma urgência, o estado de caos social instaurado, está muito longe de ser superado. Por isso, diante da pressão dos movimentos sociais, o STF estabelece a necessidade de um regime de transição e encoraja os legisladores estaduais e municipais a elaborarem instrumentos legais para tal.

O cenário jurídico favorável permitiu a formulação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular, mas a aprovação e vitória em todos os espaços de disputa institucional teve como cerne o trabalho de massas prolongado e permanente, ou seja, a presença do PCB nas comunidades com regularidade mínima semanal.

No que se refere especificamente, à jornada de lutas em torno da aprovação do PL, é pertinente destacar algumas ações que foram de suma importância para essa trajetória, foram elas: manifestações na Câmara dos Municipal que resultaram na assinatura da Carta Compromisso com as comunidades ameaçadas de despejo por 16 vereadores, antes da proposição do PL, articulação de comissões das comunidades para ir aos gabinetes dos vereadores, cobrando ações práticas a partir dessa declaração de apoio, o que culminou no fato de que 11 desses vereadores foram proponentes do PL, participação na tribuna popular da câmara, agitação nas redes sociais próprias das comunidades e ampla utilização das mídias locais, jornais, entrevistas e podcasts.

Na primeira votação, antes do veto do prefeito, em 15 de dezembro de 2022, nova manifestação massiva foi realizada na Câmara, bem como cobrança direta aos vereadores por parte das comunidades, o resultado foi a aprovação por unanimidade do projeto. Após o veto do prefeito, a advocacia popular preparou a Contestação do Veto, que foi amplamente discutida nas comunidades, com os vereadores e também divulgada na imprensa.

Nessas condições de organização do Poder Popular, uma lei favorável aos trabalhadores foi aprovada mesmo sob a prefeitura de extrema-direita de Luciano Almeida (DEM), próximo a Bolsonaro, Tarcísio de Freitas e que tem promovido diversas políticas antipopulares em Piracicaba.

Não podemos ter a ilusão de que a aprovação do PL 226/2022 garante que os despejos não irão acontecer, nem que a prefeitura irá assegurar todas as medidas previstas ou que o prefeito não recorrerá judicialmente. Na democracia burguesa, diversos direitos são reconhecidos em lei, mas não são válidos na prática para grande parte da população trabalhadora.

Mas então, por que se mobilizar em torno de uma nova lei? Porque esse processo demonstrou, para o poder público, a força dos trabalhadores organizados e permitiu o inegável avanço no movimento de luta por moradia em Piracicaba, na medida em que as comunidades organizadas reconheceram o poder que têm de mudar a vida através da luta.

Portanto, representa uma vitória, cria melhores condições para adiar os despejos e fortalecer o que é central para arrancar da burguesia conquistas em prol da classe trabalhadora: a luta e organização do Poder Popular. É uma contribuição para avançar nas conquistas e demandas imediatas sem afastar um milímetro da organização dos trabalhadores enquanto classe na luta contra os proprietários de terra e dos meios de produção.

Todo o processo de construção da luta popular em torno do PL, desde sua elaboração até a derrubada do veto, constitui uma vitória para os trabalhadores das favelas de Piracicaba e pode, em um período no qual os partidos da esquerda se amoldam a essa forma política, nos relembra da potência do poder popular, não enquanto palavra de ordem, mas enquanto práxis política.