O romance histórico

Escrito em 1936-37, O romance histórico de György Lukács é considerado o trabalho mais significativo do filósofo nos anos de exílio na União Soviética. Publicado pela Boitempo Editorial, inédito em português, o livro traz textos preparatórios para uma “estética marxista”. Nele o filósofo húngaro amadurece os fundamentos da sua teoria dos gêneros literários com uma abordagem materialista da história da literatura moderna e investiga a natureza da interação entre o espírito histórico e a grande literatura: correntes, ramificações e pontos de confluência que, do ponto de vista da teoria, são característicos e imprescindíveis. “E isso apenas em relação à literatura burguesa; a mudança provocada pelo realismo socialista ultrapassa os limites de meu estudo”, delimita o autor.

O livro, que conta com apresentação de Arlenice Almeida da Silva e orelha de Carlos Eduardo Ornelas Berriel, mostra como a gênese e o desenvolvimento, a ascensão e o declínio do romance histórico são consequências necessárias das grandes convulsões sociais dos tempos modernos. “Estamos diante de um ensaio feito de deslocamentos e aproximações que entrelaçam literatura, experiência e figuração do tempo. Ele […], sobretudo, enuncia de lugar improvável uma crítica corajosa contra o pensamento socialista ortodoxo, dito vulgar”, afirma Arlenice.

Com esses estudos Lukács também pôde amadurecer sua teoria sobre o realismo, que para ele não corresponde a uma escola literária, mas sim a uma forma literária que reconstitui o homem na sua totalidade – o que seria particularmente perceptível na obra de Walter Scott, o “grande poeta da História”, que introduziu na literatura épica o retrato dos costumes e das circunstâncias dos acontecimentos, o caráter dramático da ação e, em estreita relação com isso, o novo e importante papel do diálogo no romance, como assinala o filósofo.

Em um capítulo especialmente dedicado à obra scottiana, Lukács sublinha o surgimento do romance histórico na Inglaterra como resultado do despertar da sensibilidade para a história, a consciência do desenvolvimento histórico, em meio às enormes convulsões políticas e sociais das décadas anteriores à revolução burguesa. Nesse contexto, afirma ele, Walter Scott permanece muito fortemente ligado às camadas da sociedade arruinadas pelo rápido desenvolvimento do capitalismo, mas sempre procurando um “caminho do meio” entre os extremos em luta: não fazia parte nem dos entusiastas do desenvolvimento nem de seus apaixonados contestadores. Paradoxalmente, como reforça o filósofo, a grandeza de Scott reside em seu conservadorismo, ao esforçar-se para demonstrar sua realidade histórica pela figuração ficcional das grandes crises da história inglesa. Seus personagens não possuem a profundidade psicológica das figuras humanas individuais, mas o autor é capaz de dar vida humana a tipos sociais históricos com concisão e univocidade, o que se aplica a seus “heróis medianos” insuperáveis no modo realista da “classe média” inglesa. Lukács cita o comentário do crítico russo Vissarion Belinski sobre o caráter épico do romance de Scott, a totalidade histórica presente na figuração e nas personagens coadjuvantes, que em sua maioria é mais interessante e importante que o herói mediano principal. Diz Belinski:

É assim que deve ser em uma obra de caráter puramente épico, em que a personagem principal serve somente de centro em torno do qual os acontecimentos se desdobram e no qual ela se deixa descrever apenas por traços gerais que merecem nossa simpatia humana, pois o herói da epopeia é a própria vida, e não o homem. Na epopeia, o homem é, por assim dizer, submetido ao acontecimento; este, com sua grandeza e importância, encobre a personalidade humana, desvia nossa atenção do homem pela própria diversidade e quantidade de suas imagens, bem como pelo interesse que despertam.

Na obra, além de elucidar aspectos essenciais da obra de Walter Scott – para Lukács, jamais alcançados em sua grandeza por outro escritor –, o filósofo analisa o papel de outros grandes nomes do romance histórico, como Balzac, Stendhal, Goethe, Púchkin, Gógol, Górki e Tolstói.

Trechos do livro

“O ‘herói’ do romance scottiano é sempre um gentleman inglês mediano, mais ou menos medíocre. Em geral, este possui certa inteligência prática, porém não excepcional, certa firmeza moral e honestidade que beiram o sacrifício, mas jamais alcançam o nível de uma paixão humana arrebatadora, de uma devoção entusiasmada a uma causa grandiosa. […] Essa escolha do herói foi muito atacada pela crítica posterior, por Taine, por exemplo; ela detectou aí um sintoma da mediocridade do próprio Walter Scott como ficcionista. A verdade é o exato contrário. Na construção desses heróis “medianos”, apenas corretos e nunca heroicos, expressa-se o extraordinário talento épico de Walter Scott, talento que marcou toda uma época, ainda que, do ponto de vista psicológico e biográfico, é muito provável que seus preconceitos pessoais, presos à pequena nobreza e ao conservadorismo, tenham desempenhado um grande papel na escolha desses heróis. O que se expressa aqui é sobretudo uma recusa e uma superação do romantismo, assim como um desenvolvimento oportuno das tradições literárias do realismo do período iluminista. […] Ele se esforça para figurar as lutas e as oposições da história por meio de homens que, em sua psicologia e em seu destino, permanecem sempre como representantes de correntes sociais e potências históricas. Scott estende esse modo de conceber aos processos de marginalização; considera-a sempre em sentido social, e não individual. Seu entendimento do problema do presente não é profundo o suficiente para resolver essa questão dos processos de marginalização. Por isso, ele se desvia da temática e conserva, em sua figuração, a grande objetividade histórica do épico legítimo.”

[…]

“De fato, Scott tornou-se um dos escritores mais populares e mais lidos de seu tempo, em escala mundial. A influência que exerceu sobre toda a literatura da Europa é incomensurável. Os escritores mais significativos desse período, de Púchkin a Balzac, encontraram novos caminhos em sua produção por meio desse novo tipo de figuração da história. Contudo, seria um erro acreditar que a grande onda de romances históricos na primeira metade do século XIX tenha evoluído de fato sobre os princípios scottianos. Já vimos que a concepção histórica do romantismo era diametralmente oposta à de Walter Scott. E é claro que, com isso, a caracterização das outras correntes do romance histórico está longe de se esgotar. Indicamos apenas duas correntes importantes: por um lado, o romantismo liberal, que em termos de visão de mundo e modo de figuração tem muito em comum com o solo original do romantismo, com a luta ideológica contra a Revolução Francesa, mas representa, sobre essa base contraditória e oscilante, a ideologia de um progresso moderado; por outro, escritores importantes – como Goethe e Stendhal – que conservaram muito da visão de mundo do século XVIII e cujo humanismo contém fortes elementos do Iluminismo.”

Sobre o autor

Nascido em 13 de abril de 1885 em Budapeste, Hungria, György Lukács é um dos mais influentes filósofos marxistas do século XX. Doutorou-se em Ciências Jurídicas e depois em Filosofia pela Universidade de Budapeste. No final de 1918, influenciado por Béla Kun, aderiu ao Partido Comunista e no ano seguinte foi designado Vice-Comissário do Povo para a Cultura e a Educação. Em 1930 mudou-se para Moscou, onde desenvolveu intensa atividade intelectual. O ano de 1945 foi marcado pelo retorno à Hungria, quando assumiu a cátedra de Estética e Filosofia da Cultura na Universidade de Budapeste. Estética, considerada sua obra mais completa, foi publicada em 1963 pela editora Luchterhand. Já seus estudos sobre a noção de ontologia em Marx, que resultariam oito anos depois na Ontologia do ser social, iniciaram-se em 1960. Faleceu em sua cidade natal, em 4 de junho de 1971. Do autor, a Boitempo já publicouProlegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível (2010) e O romance histórico (2011).

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