Quem é a classe trabalhadora brasileira?
“Woman Washing Clothes”, de Charles Alston. Imagem extraída da capa do livro A classe trabalhadora, de Marcelo Badaró Mattos (Boitempo, 2019).
A construção da ideia de mercado de trabalho no Brasil ainda se afirma como um instrumento de classe da ordem do capital que tergiversa sobre a exata definição da classe trabalhadora brasileira.
BLOG DA BOITEMPO
Por Sofia Manzano
Um dos maiores problemas para a compreensão da realidade é a propositada confusão entre termos e conceitos presentes, não só nos meios de comunicação, mas também em trabalhos acadêmicos e científicos. Assim, dados que aparecem na mídia sobre emprego, desemprego, classe trabalhadora etc., por mais que correspondam às pesquisas dos institutos como IBGE e DIEESE, carecem de análise cuidadosa para se chegar mais próximo do que realmente ocorre com a população brasileira, principalmente a parcela dessa população que é a responsável pela produção da riqueza, ou seja, a classe trabalhadora.
O primeiro conceito que se deve salientar é o de classe trabalhadora. Historicamente todos os seres humanos desenvolvem certas atividades que podemos denominar de trabalho para produzirem sua existência. No entanto, desde que a sociedade se dividiu em diferentes classes sociais e, mais especificamente, no capitalismo, quando uma classe social se apropriou dos meios de produção, o conjunto da população que não possui a propriedade privada desses meios de produção é obrigada a vender sua força de trabalho para poder sobreviver.
Assim, já se colocam duas questões fundamentais para a compreensão das informações sobre as relações de trabalho e a classe trabalhadora. A primeira é definição de classe trabalhadora. Para uma abordagem que se pretende científica, classe trabalhadora é formada por todos aqueles que dependem da venda de sua força de trabalho para sobreviver. As estatísticas oficiais sobre trabalho apresentam uma confusão a esse respeito uma vez que dividem a população na força de trabalho entre ocupados e desocupados, quando tratam das questões relativas ao trabalho.
Até 2012, esse conjunto de pessoas era denominado de População Economicamente Ativa (PEA), do que se podia aferir que faziam parte todos aqueles que, de alguma forma, estavam participando da atividade econômica, tanto vendendo sua força de trabalho (os trabalhadores) quanto comprando essa força de trabalho (os empregadores); além daqueles que “trabalhavam” de alguma forma, mesmo que em ajuda aos membros da família, com ou sem remuneração. A partir da implantação da PNAD contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), mesmo sendo um avanço na coleta e divulgação de dados da sociedade brasileira, mudou-se a nomenclatura, de População economicamente ativa para População na força de trabalho. É importante salientar que a mudança na nomenclatura seguiu a orientação da Organização Internacional do Trabalho que, em sua Conferência de 2013, estabeleceu novas metodologias e diretrizes para as pesquisas nessa área.
Em economia, assim como em diversas outras áreas do conhecimento, mudanças de nome são utilizadas muitas vezes com objetivo ideológico – não para desvelar uma verdade, mas para encobri-la. Esse é mais um exemplo.
Assim, a população na força de trabalho é composta por ocupados e desocupados. Ocorre que entre os ocupados estão incluídos os empregadores. Ou seja, os patrões, portanto proprietários dos meios de produção, que aparecem junto com os reais trabalhadores. Para o IBGE, “a pessoa ocupada é classificada em: empregado, trabalhador doméstico, trabalhador por conta própria, empregador, trabalhador auxiliar familiar.”
Além disso, as pesquisas consideram a população ocupada como “o conjunto de pessoas de 14 anos ou mais de idade que, na semana de referência, trabalhou pelo menos uma hora completa de trabalho, remunerado em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios (moradia, alimentação, roupas, treinamento, etc.), ou em trabalho sem remuneração direta em ajuda à atividade econômica de membro do domicílio ou parente que reside em outro domicílio, ou, ainda, as que tinham trabalho remunerado do qual estavam temporariamente afastadas nessa semana por motivo de férias, licença, falta, greve, etc.”
Daí também decorre a segunda questão fundamental para a compreensão da formação da classe trabalhadora que, sob o capitalismo, onde as mercadorias são produzidas para o mercado, deve vender sua força de trabalho no mercado, mais especificamente no mercado de trabalho. Ora, se as pesquisas oficiais consideram a População na força de trabalho como sendo a somatória da população ocupada e a população desocupada, coloca-se no mesmo grupo um conjunto tão heterogêneo de pessoas que, praticamente não se pode saber quem realmente é a classe trabalhadora, os desempregados, pessoas submetidas ao trabalho forçado disfarçado, enfim, pessoas que para sobreviver são submetidas às mais variadas formas de exploração.
Quadro I: Indicadores estruturais do mercado de trabalho (1000 pessoas) 2018
População em idade de trabalhar População na força de trabalho População ocupada População desocupada População subutilizada
169 251 104 971 92 333 12 638 27 845
Fonte: IBGE, 2019.
O quadro I aqui apresentado, extraído da Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira (2019), divulgada pelo IBGE, aponta que mais de 169 milhões de pessoas estão em “idade de trabalhar”, ou seja, possuem 14 anos ou mais. Dessas pessoas, cerca de 104 milhões, que fazem parte da força de trabalho, estão ocupadas (92,3 milhões de pessoas) e desocupadas (12,6 milhões de pessoas), vale dizer, exercem alguma atividade econômica – como acima ressaltado – ou estão oferecendo seu trabalho no mercado de trabalho (os desocupados compreende o “conjunto de pessoas de 14 anos ou mais de idade sem trabalho em ocupação na semana de referência que tomou alguma providência efetiva para consegui-lo no período de referência de 30 dias, e que estava disponível para assumi-lo na semana de referência. Consideram-se, também, como desocupados as pessoas sem trabalho na semana de referência que não tomaram providência efetiva para conseguir trabalho no período de 30 dias porque já haviam conseguido trabalho que iriam começar após a semana de referência.”). Semana de referência é a semana anterior à semana da entrevista.
A taxa de desemprego é calculada da seguinte forma: divide-se o número de desocupados pela população na força de trabalho, assim, de acordo com os últimos dados divulgados, a taxa de desemprego no Brasil é de 12%. No entanto, como se pode perceber, a partir das observações levantadas nesse artigo, que os empregadores fazem parte da força de trabalho, bem como pessoas que trabalharam apenas uma hora por dia, pessoas que trabalharam sem remuneração, ou em troca de moradia ou qualquer outra coisa, enfim, todas essas pessoas são consideradas ocupadas e fazem parte da força de trabalho, portanto, essa taxa de desemprego é muito inferior à realidade.
A população subutilizada, cujo montante é de mais de 27 milhões de pessoas, é composta por um conjunto heterogêneo que corresponde aos desocupados, aos subocupados por insuficiência de horas trabalhadas e a força de trabalho potencial.
De acordo com o IBGE, a população subocupada é composta por “pessoas que, na semana de referência, atendem as quatro condições: 1. Têm 14 anos ou mais de idade; 2. Trabalhavam habitualmente manos de 40 horas no seu único trabalho ou no conjunto de todos os seus trabalhos; 3. Gostariam de trabalhar mais horas que as habitualmente trabalhadas; 4. E estavam disponíveis para trabalhar mais horas no período de 30 dias, contados a partir do primeiro dia da semana de referência”.
A força de trabalho potencial pode ser comparada à antiga classificação de desempregados por desalento, uma vez que é composta pelo “conjunto de pessoas de 14 anos ou mais de idade que não estavam ocupadas nem desocupadas na semana de referência [ou seja, não faziam parte da PEA, ou, segundo a nova nomenclatura, da população na força de trabalho], mas que possuíam um potencial para se transformarem em força de trabalho. Esse contingente é formado por dois grupos: 1. Pessoas que realizaram busca efetiva por trabalho, mas não se encontravam disponíveis para trabalhar na semana de referência; 2. Pessoas que não realizaram busca efetiva por trabalho, mas que gostariam de ter um trabalho e estavam disponíveis para trabalhar na semana de referência”.
Ao se analisar qualitativamente os dados apresentados nas pesquisas sobre o mercado de trabalho brasileiro, a informação sobre a população subutilizada indica uma aproximação mais real sobre a quantidade de trabalhadores que, ou não estão trabalhando, ou estão trabalhando menos do que gostariam. Esses, assim parece, são os verdadeiros desempregados, ou, ao menos, compreendem um contingente de pessoas que gostariam e/ou necessitam vender sua força de trabalho, mas não encontram condições no capitalismo brasileiro.
Pesquisadores experientes conseguem minimamente separar, a partir dos dados brutos, as diversas condições de trabalho dos brasileiros, mas as informações diariamente veiculadas estão envolvidas em nomenclaturas e conceitos duvidosos que se transformam em instrumentos ideológicos poderosos. Portanto, a construção da ideia de mercado de trabalho no Brasil ainda se afirma como um instrumento de classe da ordem do capital que tergiversa sobre a exata definição da classe trabalhadora brasileira.
***
Para aprofundar a reflexão, recomendamos a leitura do livro A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo, do historiador Marcelo Badaró Mattos. Publicada pela coleção “Mundo do trabalho”, coordenada por Ricardo Antunes na Boitempo, a obra contribui de forma decisiva para os estudos do trabalho ao combinar uma síntese da elaboração de Marx e Engels sobre a classe trabalhadora com o debate sobre o perfil atual do proletariado no Brasil e no mundo. Leia também, no Blog da Boitempo, o texto escrito por Sofia Manzano por ocasião do lançamento do livro novo de Antonio Carlos Mazzeo, Os portões do Éden: Igualitarismo, política e Estado nas origens do pensamento moderno.
***
Sofia Manzano é professora da UESB; economista (PUC/SP); mestre em economia (UNICAMP); doutoramento em História Econômica (USP); autora do livro Economia política para trabalhadores (ICP, 2ª ed., São Paulo: 2019); pesquisadora nas áreas de trabalho, desigualdade, política econômica, teoria econômica; participa do conselho editorial das revistas Crítica Marxista e Novos Temas.