Marx, expropriações e capital monetário

imagemNotas para o estudo do imperialismo tardio

Lavra Palavra

Por Virgínia Fontes*, via O comuneiro

O descompasso entre capital fictício e capital efetivamente respaldado no processo de reprodução ampliada do valor se aprofunda com o predomínio do capital monetário, o que vem fomentando recorrentes crises capitalistas na atualidade.

Introdução

Este texto resulta de releituras, no contexto de pesquisa que experimentou uma inflexão a partir de convite para intervenção no 3º Colóquio Marx e Engels, realizado em Campinas em novembro de 2003 (1). Naquela ocasião, apontei elementos teóricos procurando contribuir para a compreensão das transformações econômicas e políticas no capitalismo contemporâneo. Indicava então, dentre outras questões, a) que a análise do fenômeno deveria levar em consideração a centralidade do tema da expropriação como condição para a compreensão da dinâmica capitalista contemporânea; b) a emergência de uma nova correlação entre subsunção real e formal do trabalho no capital, com o predomínio atual da subsunção real recriando subalternamente um quase simulacro da subsunção formal ao capital; e, c) a correlação entre as expropriações contemporâneas e as formas assumidas pela política.

Com vistas a aprofundar essas questões empreendi uma sequência de estudos sobre o tema do imperialismo. O percurso adotado procurou identificar e retomar os desafios diante dos quais se encontrava Lênin quando elaborou e publicou O Imperialismo, etapa suprema do capitalismo (2). Embora essa etapa do estudo tenha começado por uma releitura cuidadosa da obra de Lênin (3), incorporou simultaneamente a leitura d’O Capital, de Marx, procurando identificar os elementos que, já no século XIX, este apontava sobre os desdobramentos do capital em sua dinâmica expansiva.

O artigo a seguir retoma, num primeiro momento, o tema da expropriação como núcleo central da relação social capitalista, condição para a conversão do dinheiro em capital. Em seguida, analisa alguns elementos cruciais da expansão madura do capitalismo, presentes na Seção V d’O Capital. Não se propõe a uma apresentação sistemática do capítulo 21, ainda que ele ocupe uma posição privilegiada, mas pretende estimular sua leitura, posto se constituir em referência central para entender a expansão capitalista e que esclarece muito do trabalho levado a cabo por Hilferding e por Lênin sobre o fenômeno do capital monopolista em inícios do século XX (4). A ênfase de nossa abordagem recai sobre as implicações sociais do predomínio do capital monetário, o que exige esclarecer a distinção entre capital monetário e capitalista funcionante e a unidade contraditória entre todas as formas do capital. Finalmente, este artigo apresenta algumas questões provocativas sobre contradições do capitalismo no período contemporâneo.

Agradeço especialmente ao raro trabalho coletivo realizado no curso História e Imperialismo, na Pós-Graduação em História da Uff, no 2º semestre de 2006, onde o debate rigoroso e estimulante com uma turma carinhosa, curiosa e exigente muito me ensinou, sem falar de minha grata dívida pelo registro das aulas e sua transcrição.

Expropriações – base social do capital

Nos dois primeiros livros de O Capital são exaustivamente trabalhados de maneira quase simultânea a dimensão histórica e a dimensão lógica da expansão do capitalismo. O livro I enfatiza o processo de produção do capital. Nele, Marx reitera inúmeras vezes o eixo de sua análise: compreender histórica e logicamente o capitalismo exige não perder jamais de vista a base da vida real, o conjunto das atividades que asseguram a reprodução da existência, objetiva e subjetivamente. A produção material da vida social – o solo concreto no qual se enraízam as mais diversificadas práticas – remete, nos termos de Marx, a uma relação social dominante, na qual se embebem todas as cores e que marca, objetiva e subjetivamente, o conjunto dos seres sociais para os quais tais práticas, muitas vezes, aparecem como se fossem naturais.

O conceito de modo de produção não se limita à atividade econômica imediata, mas remete à produção da totalidade da vida social, ou ao modo de existência. Longe de ser um tratado de economia, como imaginam alguns, O Capital desmonta a suposição burguesa de uma natureza humana mercantil e apresenta de forma minuciosa as relações sociais que sustentam o capitalismo.

Nos dias atuais, o termo capital parece óbvio ao senso comum, como sinônimo imediato de dinheiro. Refere-se entretanto a um dinheiro especial, que se transforma em algo que produz mais dinheiro, ou seja, capital. A definição, de evidente, revela-se circular e tortuosa. Dinheiro, de maneira imediata, não é capital. Ora, que processo permite tal metamorfose? É possível isolar uma situação específica e analisar singularmente um ciclo da produção de lucro, ou ciclo de atividade do capital, ou ainda, de extração de mais-valor. Este ciclo depende da contratação (formal ou informal, por salário mensal, por peças, tarefa ou ainda de outros tipos) da força de trabalho por um proprietário ou controlador de meios de produção, que produz mercadorias e, ao vendê-las no mercado, realiza um lucro.

Esse foi o caminho da Economia Política Clássica, que isolava o processo imediatamente produtivo de valor (através da produção de mercadorias) e, em seguida, dele derivava leis gerais da produção, convertidas em leis econômicas, naturais. De fato, o momento produtivo constitui o processo imediato de transformação do dinheiro (massas concentradas de equivalente geral) em capital. Nele, ocorre a exploração do trabalho vivo ao produzir mercadorias, trabalho colocado em contato com as demais mercadorias (trabalho morto) que constituem os meios de produção sob controle do capitalista. Isso significa que, para o processo de produção capitalista ocorrer, é preciso existir um mercado e, nele, mercadorias. Dentre estas, apenas uma é incontornável – a mercadoria força de trabalho, motor vivo de todo o processo, que precisa disseminar-se.

A conversão de dinheiro em capital se torna incompreensível se for sua análise for limitada apenas à atividade de exploração imediata. Embora o lucro de cada movimento singular do capital decorra da exploração do trabalhador livre pelo proprietário (de meios de produção ou de recursos sociais de produção), a conversão de dinheiro em capital envolve toda a vida social numa complexa relação que repousa sobre a produção de trabalhadores livres, ou em outros termos, a expropriação dos trabalhadores diretos. Somente em presença dessas condições sociais o processo produtivo de mercadorias, no qual reside a extração do mais-valor, pode se realizar. É por obscurecer, por velar tal base social, que a produção capitalista, ou o momento da atividade produtiva de valorização do capital se apresenta como meramente “econômico”, apesar de envolver todo o conjunto da existência social.

A produção histórica de trabalhadores disponíveis para o mercado, necessitando vender sua força de trabalho para subsistir resulta de processos extremamente violentos, que nada têm a ver com suposições ligadas à “natureza humana”. Ao iniciar O Capital apresentando a mercadoria, Marx enfatiza o caráter de objetividade adquirido pelas relações sociais, que se crispam, congelam, como se as coisas fizessem desaparecer a materialidade concreta dos trabalhadores reais que as produziram:

“Em direta oposição à palpável e rude objetividade dos corpos das mercadorias, não se encerra nenhum átomo de matéria natural na objetividade de seu valor. (…) sua [da mercadoria] objetividade de valor é puramente social…” (5)

A expropriação, base social que permite a exploração da força de trabalho, ao enrijecer-se como condição natural da existência humana sob o capital, parece desaparecer sob a noção de liberdade.

No livro I de O Capital Marx dedica-se sobretudo à análise do processo produtivo do capital em situações nas quais a força de trabalho já se encontra convertida em mercadoria, expropriada. Entretanto, ao longo de todo o livro, a expropriação (o trabalhador “livre”) figura como pré-condição permanente para a existência do próprio capital. No capítulo dedicado à crítica da idílica suposição dos economistas de que teria ocorrido uma “acumulação prévia (“essa acumulação primitiva desempenha na Economia Política um papel análogo ao pecado original na Teologia” (6) ), Marx como o momento original corresponde ao um tortuoso e violento processo histórico no qual o campesinato europeu viu-se despojado da capacidade de assegurar sua própria subsistência:

“Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles requerem sua transformação em capital. Mas essa transformação mesma só pode realizar-se em determinadas circunstâncias, que se reduzem ao seguinte: duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem a valorizar a soma-valor que possuem mediante compra de força de trabalho alheia; do outro, trabalhadores livres, vendedores de sua própria força e trabalho e, portanto, vendedores de trabalho. (…) Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho” (7).

Este momento inaugural, a expropriação do povo do campo de sua base fundiária, constituiu a pré-condição para a gênese do capitalismo. Marx não para aí e, no mesmo parágrafo, afirma que a expropriação não se limita a esse primeiro momento, pois nela repousa a base social da dominação capitalista:

“Tão logo a produção capitalista se apoie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que o processo de separação de trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho…” (8)

Marx dedica boa parte do capítulo 24 à análise dos processos brutais dos quais resultou essa expropriação original e, após descrever as torturas, a escravização e outros procedimentos nada idílicos utilizados para subjugar (“libertar”) a população, conclui:

“Tanto esforço fazia-se necessário (9) para desatar as ‘eternas leis naturais’ do modo de produção capitalista, para completar o processo de separação entre trabalhadores e condições sociais de trabalho, para converter, em um dos pólos, os meios sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados, em ‘pobres laboriosos’ livres, essa obra de arte da história moderna” (10).

Façamos um pequeno parêntese. A expropriação é a produção de trabalhadores livres e, nesse sentido, a liberdade corresponde à mais plena disponibilidade da força de trabalho para o capital. A liberdade da força de trabalho é real, dúplice e contraditória. Ela consiste em enorme negatividade, expressando a impossibilidade de crescentes massas populares de prover a própria subsistência (singular ou familiar) fora de relações de subordinação “voluntária” ao capital (ao mercado); tende a destruir as formas de solidariedade tradicionais entre trabalhadores; a desmantelar as crenças e modos de existência até então predominantes; exacerba a concorrência; impessoaliza os contatos sociais, ao promover uma individualização contraditória, opondo seres isolados e competitivos que precisam porém cooperar estreitamente no processo social de produção, sob a batuta do capital. Ainda que sob a forma negativa, essa liberdade se expressa também na redução de laços de dependência pessoal de trabalhadores frente a clientelas e patronatos.

Por outro lado, entretanto, tal liberdade tem como contrapartida a socialização do processo produtivo, o que acena com enormes possibilidades, bloqueadas porém pelo próprio capitalismo. A socialização da força de trabalho se expande internacionalmente, mas de maneira desigual, hierarquizada e segmentada. Os seres sociais expropriados – convertidos, portanto, em trabalhadores livres – são conectados direta ou indiretamente num processo produtivo crescentemente socializado, coletivo, cooperativo e internacionalizado. Entretanto, tal coletividade – a cooperação real entre as inúmeras atividades sociais, acoplada a uma sempre crescente divisão social do trabalho – impõe-se aos indivíduos como competição, como estranhamento, como alienação, por estar subordinada ao controle central do capital. Este apregoa sem cessar o advento da liberdade, porém em nenhum outro período histórico a vida da grande maioria da população foi tão marcada pelo seu oposto, pela necessidade imperiosa de subsistir no mundo cada dia mais abstrato do mercado. A censura policial é duplicada pela sanção mercantil, encolhendo a liberdade de expressão. Censura tão mais mais eficaz quanto mais generalizada for a necessidade urgente de subsistir nas condições do mercado.

Prosseguindo sobre a expropriação, Marx demonstra a tendência histórica da produção capitalista: a “dissolução da propriedade privada baseada no próprio trabalho” (11). A propriedade predominante incide sobre as “condições de realização do trabalho”, as quais são históricas e se modificam ao longo da própria expansão do capitalismo. O processo de expropriação não se interrompe nesse ponto:

“Tão logo esse processo de transformação tenha decomposto suficientemente, em profundidade e extensão, a antiga sociedade, tão logo os trabalhadores tenham sido convertidos em proletários e suas condições de trabalho em capital, tão logo o modo de produção capitalista se sustente sobre seus próprios pés, a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior da terra e de outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados, portanto, coletivos, a consequente expropriação ulterior dos proprietários privados ganha nova forma. O que está para ser expropriado já não é o trabalhador economicamente autônomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores. Essa expropriação se faz por meio do jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada capitalista mata muitos outros” (12).

Nesta passagem, Marx remete a três modalidades distintas de expropriação. Aquela que incidiria sobre os pequenos proprietários que conseguiam ainda evitar sua proletarização; em seguida, a que incidiria sobre os próprios capitalistas (pequenos ou grandes), sob o peso da concentração de capitais. Finalmente, assinala a contradição entre a expropriação generalizada e a socialização do processo de trabalho, a qual indicaria “a hora final da propriedade capitalista”, quando “os expropriadores são expropriados” (13).

Marx reitera, inúmeras vezes, que a expropriação constitui a relação social que permite a certo tipo proprietários privados converterem-se em capitalistas, e que se modifica, se expande, tendendo a abranger a totalidade da vida social. A propriedade capitalista não se limita a coisas específicas, a qual pode se generalizar (como propriedade de bens), mas significa o monopólio do controle das condições (ou recursos) sociais da produção.Veremos ao final deste artigo que o tema da expropriação reaparece ao final do Livro III de O Capital.

O predomínio do capital promove um modo de existência contraditório. Suas raízes mergulham na expropriação permanente dos recursos sociais de produção. Nem todos os expropriados serão convocados a produzir mais-valor diretamente para o capital. No entanto, para que seja possível a produção de valor, a expropriação necessita ser incessante e ampliada.

Na atualidade, ao lado da persistência e expansão de sua forma original (14), outras expropriações seguem reconduzindo gigantescas massas trabalhadoras à sua condição de plena disponibilidade para o mercado de força de trabalho, através da destruição sistemática de diversos anteparos que atuaram como redutores dessa disponibilidade – a qual continua a ser trombeteada como a “liberdade”. Vale destacar duas formas renovadas de expropriação: a da resistência operária pela proximidade através da introdução de tecnologias que permitem manter a cooperação entre os trabalhadores malgrado a distância física, apresentada como “liberdade” de movimentos, liberação espacial, e como “democratização do processo de trabalho”. A segunda é a expropriação contratual, tornada uma prática contínua através da pulverização desigual e combinada das formas contratuais e eliminação tendencial de direitos associados ao contrato de trabalho. Também se apresenta como “libertação” do trabalhador de “amarras” tais como extensão da jornada de trabalho ou do controle patronal direto, através do “autoempresariamento”. Outras vezes o argumento utilizado remete ao “fim de privilégios”, como as aposentadorias, assegurando maior tempo de disponibilidade da força de trabalho no mercado.

As expropriações contemporâneas incidem também sobre persistências culturais, resultantes de certas tradições, sobre conquistas sociais (direito à saúde, à educação, por exemplo, crescentemente privatizados) e sobre elementos naturais, cuja mercantilização resulta de uma massiva expropriação, como as águas ou patentes sobre elementos genéticos (ou mesmo sobre formas de vida) (15).

Todos os que não detêm os recursos sociais de produção nas imensas magnitudes requeridas vêm sendo disponibilizados, libertados de freios sociais e impulsionados à extrema concorrência para a venda mercantil de sua força de trabalho. São impulsionados “economicamente” ao mercado, posto necessitarem, de maneira a cada dia mais premente, sobreviver. Esse impulso não responde a uma pura economia e sim ao conjunto das relações sociais que as expropriações exacerbam e que sustentam a dinâmica capitalista. O mais-valor permanece gerado por trabalhadores cuja cooperação segue sendo estabelecida segundo as necessidades de valorização do capital, e não de necessidades da vida social ou da maioria da população. Da mesma forma, a atividade produtiva de mercadorias permanece coordenada, dirigida e controlada pelos detentores dos recursos sociais de produção, controle exercido de maneira direta ou indireta.

A expansão mundial desse modo de existência contraditório aumenta incessantemente a produtividade e a produção de bens, mas impulsiona sem cessar a produção da escassez. A mercadoria, base fundamental da extração de sobretrabalho sob o capitalismo é também uma relação social e não meramente uma coisa: ela expressa uma divisão social do trabalho a cada dia mais extensa, expandindo a equivalência entre atividades concretas díspares através da forma valor.

No século XIX como em nosso século XXI, a mercadoria fundamental, a única capaz de valorizar as massas acumuladas de capital é a força de trabalho. Esta somente se converte, entretanto, em mercadoria perfeitamente disponível caso esteja sob permanente necessidade, o que as lutas dos trabalhadores procuraram limitar e bloquear. Tudo o que figure como anteparo à livre exploração da força de trabalho pelo capital é por ele convertido em obstáculo a ser expropriado. Os processos atuais de redução da força de trabalho, em escala mundial, a patamares de disponibilidade sem reservas para o capital evidenciam a construção de formas renovadas de expropriação, destroçando laços sociais e formas jurídicas que, apesar de plenamente capitalistas, se erigiram em freios à liberdade do capital face à força de trabalho. Os saltos na escala da acumulação internacional de capitais demonstram que, a partir de certo patamar de concentração, mesmo as populações pois países centrais, que se acreditavam a salvo de novas investidas através de defesas jurídicas, tornam-se alvo de expropriação.

Longe de expressarem um suposto “fim do trabalho”, essas expropriações demonstram o quanto a força de trabalho prossegue o elemento crucial. A atividade subjetiva que se objetiva no processo de produção continua subordinada entretanto ao domínio e controle exercido pelos proprietários de enorme massa de recursos (trabalho morto, passado, acumulado) cujo intuito é unicamente a ampliação da própria acumulação. A humanidade vem sendo asperamente reconduzida à condição de mera força de trabalho livre, isto é, disponível e necessitada. A atividade criativa continua a ser permanentemente ressaltada como o ato social fundamental, para o qual devem tender todos os seres singulares, porém desqualificada e desumanizada. A dinâmica da extração de mais-valor jamais assegurou a todos os seres singulares a possibilidade de vender a própria força de trabalho nas condições requeridas para sua reprodução segundo os padrões socialmente aceitáveis em cada época. Mesmo nos momentos expansivos, nos quais o desemprego se reduzia em algumas formações sociais, essa forma de existência aprofundou desigualdades e construiu escassez, através da destruição impiedosa dos bens coletivos mas, sobretudo, pela competição imposta a trabalhadores de diferentes origens nacionais no plano interno ou internacional. Isso, sem mencionar a tendência à produção de objetos e bens de crescente inutilidade ou descartáveis (16).

Estamos diante de um duplo e único movimento: a extensão e generalização da relação social especificamente capitalista se expressa pela expansão das expropriações, cujas dimensões atuais assinalam transformações significativas no capitalismo. Marx observava, no século XIX, um salto na escala de concentração de capitais, que resultava em transformações qualitativas, convertendo o próprio capital em mercadoria.

Marx e o capital portador de juros

O capitulo 21 – O capital portador de juros – do livro III d’O Capital (17), apresenta a dinâmica da expansão das relações sociais capitalistas no momento de maior concentração de recursos sociais de produção. Marx já abordara o tema nas Teorias da Mais Valia e nos Grundrisse (18) e, n’O Capital, retoma o conjunto das análises anteriores, direcionado para o fenômeno em seu mais pleno desenvolvimento, em finais do século XIX, assinalando as profundas transformações que serão posteriormente analisadas por Hilferding e por Lênin. A interrogação central que norteia o capítulo é: que implicações decorrem do momento histórico a partir do qual o capital se converte, ele próprio, numa mercadoria?

Ao longo desse capítulo Marx reafirma que a riqueza social provém do trabalho. Os juros, ou a remuneração do capital que se converte em mercadoria, correspondem portanto a uma parcela do mais-valor extraído pelos capitalistas funcionantes, cuja atividade destina-se a extrair mais valor. Os juros são uma parte do lucro produzido: “a parte do lucro que lhe paga chama-se juro, o que portanto nada mais é que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro, a qual o capital em funcionamento, em vez de pôr no próprio bolso, tem de pagar ao proprietário do capital” (19).

Neste capítulo, ele não denomina a concentração de recursos sob forma monetária de capital bancário, utilizando os termos capital portador de juros, prestamista ou capital monetário para designar os proprietários de capital cuja valorização se apresenta como D-D’; capital que resulta da expansão do capital industrial ou funcionante e que, por seu turno, a impulsiona.

O papel das instituições concentradoras dessas enormes massas monetárias se altera – quer elas sejam bancos ou outras instituições – para assegurar sob diversas modalidades o processo de venda de capital, venda que impõe a condição de que seus compradores o convertam em capital ativo, isto é, que os mutuários atuem socialmente como extratores de mais-valor. Isso significa que massas crescentemente concentradas de recursos impõem ao conjunto da vida social uma extração acelerada e intensificada de mais-valor.

O valor de uso do capital portador de juros (ou capital que imagina se manter permanentemente sob forma monetária) é o de ser utilizado como capital, impulsionando a produção de valor através do capitalista funcionante. Marx assim designa a personificação do capital que produz a mais-valia, ao realizar o percurso d-m-d’: fungierenden Kapitalisten. O proprietário de capital monetário exige dele crescente eficácia nessa extração, de maneira a remunerar tanto o próprio capital funcionante como o capital monetário, ou, ainda, o capital tornado mercadoria. Nessas condições,

“B [o capital funcionante, o mutuário] tem de entregar a A [o capital portador de juros, o prestamista] parte do lucro obtido com essa soma de capital sob o nome de juro, pois A só lhe deu o dinheiro como capital, isto é, como valor que não apenas se conserva no movimento, mas cria mais-valia para seu proprietário. Permanece nas mãos de B apenas enquanto é capital funcionante” (20).

O movimento de separação entre a propriedade e a gestão (que assegura o funcionamento da extração de mais-valor) se evidencia através da imposição, pela magnitude da propriedade do capital monetário, da extrema intensificação dessa extração. O capital monetário converte seus mutuários em agentes funcionantes para a extração de mais-valia:

“mesmo quando se concede crédito a um homem sem fortuna – industrial ou comerciante – isso ocorre confiando que ele agirá como capitalista: com o capital emprestado, se apropriará de trabalho não pago. Ele recebe crédito na condição de capitalista em potencial” (21).

Podemos visualizar o processo através da fórmula D-d-M-d`-D`, que apresentaremos também de maneira desdobrada:

D (capital portador-de-juros, ou dinheiro nas mãos de detentores de grandes massas monetárias, bancos ou outros) é convertido em capital através de empréstimo (ou outras formas de aplicação) para –>

d (dinheiro nas mãos de quem vai extrair sobretrabalho, capitalista funcionante, quer seja ou não proprietário dos meios de produção) —>

M- processo de produção, realizado através da compra de força de trabalho e de meios de produção, quando o dinheiro d se imobiliza durante o processo de produção —>

d’ – após o processo produtivo, ocorre a venda das novas mercadorias produzidas e reconversão em dinheiro, com um lucro (‘) –>

D’ – pagamento de juros ou remuneração ao capital portador-de-juros ou capital monetário (‘), como parcela do lucro gerado no processo produtivo.

Do ponto de vista do detentor de dinheiro D, que o converte em mercadoria-capital, esta deve ser valorizada, isto é, vendida a quem precisará a investi-la em força de trabalho e meios de produção, no circuito d-M-d’, no qual ocorre a extração do sobretrabalho. Para D, isso representa apenas tempo que medeia entre o empréstimo e o retorno. De seu ponto de vista, o movimento se limita a D-D’, que corresponde aos seus interesses diretos e que lhe aparece como sendo sua única relação real – a venda mercadoria-capital inicia-se e se conclui como troca de dinheiro, apenas tendo como intermediação, sempre de seu ponto de vista, um certo tempo, maior ou menor, e uma certa taxa.

Na perspectiva da reprodução do capital portador de juros, como detentor de recursos sociais de produção sob forma monetária, todo o processo subsequente não lhe interessa e, portanto, a atividade específica da extração de sobretrabalho não lhe diz respeito. Seu problema é assegurar a venda do capital monetário, tendo como contrapartida sua reprodução ampliada. O capital funcionante permanente pois fundamental, uma vez que a especulação, a fraude ou o saque, outras tantas atividades a que se dirige o capital monetário, se limitam a puncionar, sem produzir ampliada e regularmente mais-valor.

Essa representação, referenciada no ponto de vista do capital monetário, implica num fetiche potencializado, ao espelhar a experiência imediata dos proprietários de capital monetário para o conjunto da vida social. Se a existência de grandes proprietários de massas monetárias é real, se a imagem que constroem lhes corresponde, sua generalização é unilateral, descolada do substrato efetivo do conjunto da vida social que lhes dá existência. Em outros termos, dissemina a suposição de que haja atividades puramente monetárias, sem envolvimento com os processos produtivos, como um puro produto da multiplicação do capital.

O predomínio atual do capital monetário em escala internacional se acompanha, pois, da generalização de dois mitos, ambos resultantes de sua percepção unilateral: o de que é na atividade da gestão intelectual (sobretudo na complexa gerência de riscos e de taxas, na gestão internacionalizada de capital monetário), que se produz o lucro e o segundo mito, seu complemento, o de que o trabalho vivo não mais teria qualquer função na vida social.

Em capítulos precedentes Marx apresentara como o processo de crescimento do capital bancário – o capital de comércio de dinheiro – na sua configuração de emprestadores de capital, derivou da própria expansão capitalista (22). Os bancos existiam antes da generalização do capitalismo, porém com uma função sobretudo usurária, baseada no empréstimo a juros. A reprodução do capital usurário e a do capital monetário parecem similares. As duas fórmulas são idênticas, mas a relação social de que fazem parte e que fomentam é totalmente distinta. Ambas existem como D-D`, como dinheiro que se multiplicaria em mais dinheiro.

Para o capital usurário anteriormente dominante, D’ resultava de de uma punção exercida por um determinado setor sobre outros grupos sociais. Ele poderia – e o fazia – alterar as relações de força entre grupos sociais, mas raramente se imiscuía diretamente no processo produtivo. Assim como o agiota, a função usurária realiza uma punção no valor já criado e, em geral, depende do uso direto da coerção para assegurar sua remuneração. O lucro auferido convertia-se em entesouramento ou em consumo suntuário, e a punção usurária incidia principalmente sobre “nobres esbanjadores” ou sobre produtores que controlavam suas próprias condições de trabalho (23).

Na medida em que a expansão ampliada do capital produtivo (de mais-valia) favoreceu a generalização dos bancos, estes, sem eliminar jamais totalmente esse viés usurário, passaram a cumprir uma nova função, a de de crédito para o processo produtivo, ou de “capital de comércio de dinheiro”. O bancos passavam a depender, de maneira estreitamente associada, da expansão da extração de mais valia e de sua realização (comércio). Esse novo papel, a médio prazo, alterou completamente o sentido e a abrangência anteriores dos bancos e constituiu um sistema bancário propriamente capitalista, um dos pilares da acumulação. Isso não significou a eliminação de práticas usurárias mas estas reduziram-se a um papel subordinado face à potência da extração permanente de valor.

Cada capitalista singular, originalmente proprietário dos meios de produção, precisa extrair cada vez mais mais-valia, empurrado pela concorrência. E o faz seja ampliando/diversificando seu processo produtivo, seja aumentando o tempo de trabalho, seja intensificando a produtividade do trabalho, seja ainda uma combinação entre elas. Para ampliar a escala de sua produção, precisa aguardar um ciclo (ou vários ciclos de venda de suas mercadorias e, portanto, de realização de seu lucro), reunindo recursos até conseguir expandir o processo produtivo ou diversificar sua base produtiva. Precisa pois reservar parcela de seus lucros e aguardar que atinjam uma proporção suficiente para a nova inversão. A transformação do papel usurário, puncionador, dos bancos em crédito caracteristicamente capitalista, cujo papel social torna-se assegurar crédito ao capital, decorre também dos crescentes depósitos dos próprios lucros capitalistas. Mas não apenas, pois os bancos tendem a reunir crescentemente todos os recursos monetários existentes na sociedade. De entesouradores usurários os bancos converteram-se em coadjuvantes da exploração capitalista. São simultaneamente intermediários (ou depositários) para os grandes proprietários capitalistas e tornam-se também proprietários de capital monetário. Dependem, pois, de uma parte da mais-valia (o lucro) produzida.

O crescimento exponencial da acumulação que esse novo papel bancário favoreceu estará na base de outra transformação, ainda mais significativa: a conversão dos grandes proprietários em proprietários de capital monetário, que impulsiona expansão ainda mais acirrada e acelerada da forma valor e da dinâmica propriamente capitalista, que é a extração de mais valor do trabalho livre. Essa conversão não é apenas, como imaginam alguns, do próprio capital bancário, mas torna-se uma tendência permanente para todos os grandes grandes proprietários, cuja extensão e alcance das atividades produtivas (de mais-valor) ultrapassa – e muito – a capacidade individual ou familiar de controle do processo de extração de mais-valor. Retomemos algumas características de tal conversão: em primeiro lugar, a expansão bancária deriva da expansão da acumulação capitalista; em segundo lugar, a assegura; finalmente, a autonomização do capital monetário, originário de diferentes atividades de produção de valor, dirige e impulsiona o conjunto da atividade de extração de mais-valor, o que pode ocorrer através dos bancos (como locais de reunião dessas massas de capitais, cujos proprietários podem ou não ser banqueiros) ou de outras formas de reunião e controle de tais massas de capitais. A reunião de grandes proprietários de capital monetário, com ou sem a orquestração de seus administradores (quer sejam bancos ou outras formas jurídicas) converte o capital numa força social anônima, ao mesmo tempo concentrada e extremamente difusa. O capital monetário não se limita a puncionar: precisa expandir relações sociais capitalistas. O capital assume uma configuração diretamente social.

Marx insiste, como se adivinhasse que exatamente isso seria esquecido: o juro é uma cota-parte da mais-valia, é uma parcela da mais-valia! Resulta dela, depende dela e, portanto, está a cada dia mais estreitamente ligado à extração de mais-valor. Procura impedir que esqueçamos o chão social, a relação social na qual segue enraizado o capital monetário. Enfatiza o quanto os bancos, apesar de terem se constituído historicamente antes do capital industrial, dele derivam em sua configuração moderna. Mas Marx não está mais tratando, no capítulo 21, apenas do setor bancário, mas de uma forma do capital, de sua forma mais desenvolvida. Essa ênfase marxiana mostra o quanto é preciso lutar contra a suposição ingênua de que o juro derivaria de um acordo entre os capitalistas, através do qual decidiriam “quanto custa o dinheiro”. Ou, ainda, que o juro derivaria de uma imposição do Estado, definindo abstratamente quanto deveria “custar o dinheiro”. Os governos intervêm no processo? Certamente, uma vez que se constituem sempre em equilíbrio instável entre os diferentes setores capitalistas. No entanto, o excedente numa sociedade capitalista é fruto do trabalho humano, trabalho vivo que fertiliza as imensas massas de capital monetário, ou trabalho morto. A extração desse excedente torna-se distante dos olhos dos grandes proprietários e sua partilha entre eles depende sobremaneira da escala da concentração do capital monetário e de seu grau de autonomização. Em todos os casos, resulta da mesma base social e, para ambos, quanto maior a extração de mais-valor, melhor o resultado final. Que seja mais ou menos complicado esse processo de divisão, que gere tensões e conflitos – como em alguns momentos – ou, ao contrário, que as reclamações contra as taxas de juros se tornem uma ladainha coletiva quase unânime da qual os próprios bancos participam, é outro desafio a compreender. O que não se pode é esquecer a base social desse processo.

Algumas mediações importantes merecem destaque. A mais-valia gerada no processo produtivo (insistimos: é produtivo para o capital apenas o que permite a extração de mais-valor) deverá ser dividida entre o capital que a extrai, d-M-d’, e o capital que não só a permitiu, mas a estimulou (D-D’). A rigor trata-se de uma espiral tensa de um mesmo processo, na qual a intensificação da extração de mais-valor através do capital funcionante, com o o consequente aumento do excedente, impulsiona a concentração e centralização monetária (o capital monetário) e este, por seu turno, difunde, impõe e generaliza a extração de mais-valor, ou seja, expande as diferentes formas de capital funcionante.

Uma característica evidente desse processo é que tanto D-D’ quanto d-d’ são investidores de dinheiro que almejam mais dinheiro ao final de um certo tempo. O capitalista monetário vive o sonho dourado da pura reprodução do dinheiro, D-D`, o outro vive o mesmo sonho, porém intermediado pelo processo transformação do dinheiro em capital, que precisa agenciar, agregando trabalho vivo ao trabalho morto, d-m-d’. O sonho dourado D-D’ só pode existir com a transfusão permanente que resulta da atividade da força de trabalho, concatenada por d-m-d’. A concentração do capital monetário favorece intenso movimento especulativo, que passa a integrar a dinâmica da expansão do capital monetário, gerando um capital fictício através da multiplicação de títulos sem correspondência com a magnitude dos capitais funcionantes aos quais supostamente remetem. Não obstante, o conjunto do processo segue tendo como solo a expansão da extração de valor, ou, melhor dizendo, de sobretrabalho sob a forma do mais-valor (24).

Estamos acostumados a pensar nos bancos como o local por excelência do capital monetário. De fato, são seus principais intermediadores e, em alguns casos, também grandes proprietários de capital monetário, mas não os únicos proprietários e não necessariamente os mais importantes. Ao longo do último século XX importantes modificações ocorreram, desde a fusão entre capitais bancários e industriais, até intensa especialização de inúmeras funções do capital monetário, sobretudo a partir da segunda metade do século, envolvendo e mesclando atividades como crédito, seguros, corretagem, câmbio, investimentos, dívidas públicas, etc. Sua concentração inaudita impulsionou, mais recentemente, a ascensão de formas não bancárias (fundos de pensão ou fundos mútuos, Bolsas de Valores, etc.). No século XIX, Marx mostrou como a expansão do capital de comércio de dinheiro (propriamente definido como capital bancário) implicara numa extensa divisão técnica do trabalho para a gerência do capital:

“há uma divisão do trabalho em duplo sentido. Torna-se [o capital de comércio de dinheiro] um negócio específico e, porque é executado como negócio específico para o mecanismo monetário da classe toda, passa a ser concentrado, exercido em larga escala; e então ocorre novamente uma divisão do trabalho dentro desse negócio específico, tanto por divisão em diferentes ramos, independentes entre si, quanto pelo aperfeiçoamento da oficina dentro desses ramos (grandes escritórios, cobrança, acerto dos balanços, operação de contas correntes, guarda do dinheiro, etc.), separados dos atos pelos quais essas operações técnicas se tornam necessárias, convertem o capital adiantado nessas funções em capital de comércio de dinheiro” (25).

Ao agigantar-se a massa de capitais sob forma monetária em busca de valorização, os bancos tornam-se os intermediários entre os diferentes grandes proprietários de capital monetário e as diversas maneiras possíveis de fazê-lo valorizar-se através de seu direcionamento aos capitalistas funcionantes. Marx sublinha então o papel que os bancos exerceram como os administradores do capital monetário, mas o fizeram enquanto mediadores da concentração:

“Em correspondência com esse comércio de dinheiro, desenvolve-se o outro aspecto do sistema de crédito, a administração do capital portador de juros ou do capital monetário como função particular dos comerciantes de dinheiro. Tomar dinheiro emprestado e emprestá-lo torna-se seu negócio especial. Aparecem como intermediários entre o verdadeiro prestamista e o mutuário de capital monetário. Em termos gerais, o negócio bancário, sob esse aspecto, consiste em concentrar em suas mãos o capital monetário emprestável em grandes massas, de modo que, em vez do prestamista individual, são os banqueiros, como representantes de todos os prestamistas de dinheiro que confrontam os capitalistas industriais e comerciais. Tornam-se os administradores gerais do capital monetário” (26).

A especificidade fundamental do capital portador de juros (ou monetário) é a conversão do capital em mercadoria (e não simplesmente em capital de crédito (27)):

“Qual é então o valor de uso que o capitalista monetário aliena durante o prazo do empréstimo e cede ao capitalista produtivo, o mutuário? É o valor de uso que o dinheiro adquire pelo fato de poder ser transformado em capital, de poder funcionar como capital e assim produzir em seu movimento determinada mais-valia, o lucro médio (o que está acima ou abaixo deste aparece aqui como fortuito), além de conservar sua grandeza original de valor. No caso das demais mercadorias consome-se, em última instância, o valor de uso e com isso desaparece a substância da mercadoria, e com ela seu valor. A mercadoria capital, ao contrário, tem a peculiaridade de que, pelo consumo de seu valor de uso, seu valor e seu valor de uso não só são conservados, mas multiplicados.

É esse valor de uso como capital – a capacidade de produzir o lucro médio – que o capitalista monetário aliena ao capitalista industrial pelo período em que cede a este a disposição sobre o capital emprestado” (28).

Essa configuração permite aos detentores dessas crescentes massas de dinheiro encarnar de maneira abstrata a própria figura do capital, como se toda a vida social se encontrasse descarnada. A propriedade dos recursos sociais de produção afasta-se do processo de produção imediato. Esse distanciamento, entretanto, não significa que este capital torne-se ausente ou que tenha sua eficácia reduzida enquanto capital (enquanto dinheiro a valorizar-se através da extração de mais-valor). Ao contrário, é também o momento de sua maior expansão. O capital monetário (ou capital-mercadoria) torna-se não apenas aquele que possibilita o processo, mas o que exige e impõe que outros, os capitalistas funcionantes, extraiam mais-valia em ritmo acelerado (no nível médio, no nível que eles próprios, os grandes proprietários, contribuem para determinar) para reembolsá-lo e assegurar sua própria reprodução enquanto extração de mais-valor.

Este último, o capitalista funcionante, não precisa mais ser um grande proprietário e nem mesmo ser o proprietário efetivo dos recursos sociais de produção, detendo porém o controle dos meios de produção. Aprofunda-se a separação entre a propriedade e a gestão dos empreendimentos. O capitalista funcionante tem o papel social de extrair mais-valor, o que lhe permite realizar um excedente com o qual aspira a converter-se em… capital monetário. A função de extrator direto de mais-valia permanece ao mesmo tempo central e subalternizada: “O dinheiro assim emprestado tem nessa medida certa analogia com a força de trabalho em sua posição em face do capitalista industrial” (29). A analogia traduz uma tensão no interior de uma unidade. Expressa os conflitos existentes entre dois setores, ou frações de proprietários, contrapondo funcionantes a proprietários de dinheiro que pretendem convertê-lo em capital. No entanto, tal tensão somente existe no interior de uma unidade complexa, pois:

a) ambos aspiram ao mesmo resultado, o lucro, expresso em d’. Observe-se que, nos dois movimentos, o resultado é similar: d-m-d’ ou D-D’. Vistos na fórmula completa D-d-m-d’-D’, pode-se observar que constituem de fato uma unidade, a do dinheiro que se converte em capital;

b) para ambos, o tempo despendido no processo de produção aparece como um desperdício (desqualificação do trabalho vivo e do processo produtivo) ainda que, para ambos, esse processo seja ineliminável. A rigor, para ambos, o objetivo é reduzir o tempo de valorização do valor, de modo a aproximar-se de um impossível D-D’ sem a intermediação do trabalho vivo;

c) o crescimento do capital funcionante – a acumulação ampliada de mais-valor – tende a converter o proprietário de meios de produção em proprietário de capital monetário, assim que sua escala de acumulação o permita. Em outros termos, o capital industrial (ou funcionante) transforma-se em capital monetário quando a acumulação atinge determinados patamares;

d) a transformação do capital em mercadoria (a expansão do capital monetário) impulsiona a atividade de inúmeros capitalistas funcionantes, quer sejam ou não proprietários dos meios de produção.

O capital monetário se recobre da aparência da pura potência do dinheiro em si, que se valorizaria a si mesmo apenas através do tempo.

“Como mercadoria de natureza peculiar, o capital possui também um modo peculiar de alienação. O retorno [o lucro, repartido na forma do juro] não se expressa aqui portanto como consequência e resultado de determinada série de atos econômicos, mas como consequência de um acordo jurídico especial entre comprador e vendedor. O prazo do refluxo depende do decurso do processo de reprodução; no caso do capital portador de juros, seu retorno como capital parece depender do simples acordo entre prestamista e mutuário. De modo que o refluxo do capital, com respeito a essa transação, já não aparece como resultado determinado pelo processo de produção, mas como se o capital emprestado nunca tivesse perdido a forma de dinheiro” (30).

Vale relembrar que o capital monetário já não pode ser apresentado como realizando uma mera punção, tal como ocorre com a função usurária, que ele também pode, aliás, paralelamente, seguir realizando. O capital monetário expressa a expansão do capital industrial ou funcionante, resulta dela e a impulsiona numa escala muito superior. Se pode afastar-se da propriedade direta dos meios de produção e das atividades que envolvem a extração da mais-valia, é exatamente porque concentra a pura propriedade das condições e recursos sociais da produção.

“A determinação social antagônica da riqueza material – seu antagonismo ao trabalho enquanto trabalho assalariado – já está, independentemente do processo de produção, expressa na propriedade de capital enquanto tal” (31).

No momento em que o capital monetário se autonomiza frente ao trabalho – do qual segue extraindo a sua valorização – no momento portanto em que a pura propriedade do capital se evidencia, a determinação social antagônica, do comando sobre trabalho alheio, está colocada de forma generalizada. Ademais, a propriedade doravante incide não apenas sobre os “meios específicos de produção”, de forma imediata, mas converte-se em potência social acumulada (capital), como capacidade de transferir de uma a outra massa de meios de produção a capacidade social de fazê-los existir enquanto tais, isto é, de fazê-los atuar para a extração de mais-valor.

A lógica absolutamente irracional da reprodução do capital tende a apresentar o capital monetário como a principal mercadoria do capitalismo. Expande as relações sociais que permitem a extração de mais-valor e descola-se ficticiamente das condições reais da própria vida social. Podemos atribuir ao termo fictício um duplo sentido: expressa a existência de enormes massas de capital fictício (especulativo ou fraudulento); e exerce a mais exacerbada pressão sobre o trabalho, embora aparentemente totalmente apartado dele (ou seja, ficticiamente distanciado do trabalho). O capital monetário só pode se realizar expandindo a atuação funcionante, a extração do mais-valor que o nutre. O aparente descolamento entre os dois momentos do capital – funcionante e monetário – expressa sua estreita imbricação. Ela, entretanto, tende a ser secundarizada pelos grandes proprietários de capital monetário, como se existissem isoladamente das totalidade do processo produtivo.

Não se trata simplesmente da subordinação de capitalistas industriais a capitalistas bancários ou agiotas. Trata-se do ponto máximo da concentração da propriedade capitalista, isto é, quando o capital monetário extrapola o capital bancário, enquanto capital de crédito a serviço dos grandes proprietários diretos de meios de produção, e se converte na ponta mais concentrada da propriedade capitalista, propriedade das condições sociais de produção a cada dia envolvendo dimensões mais extensas – dispondo de maiores volumes de inversões para extrair o mais-valor. O capital monetário subordina o conjunto do processo de extração da mais-valia, ao mesmo tempo impulsionando e exigindo não apenas a extração de mais-valor, mas que seja realizada mais intensa e mais rapidamente e, simultaneamente, distanciando-se aparentemente do processo efetivo de produção do valor.

Em outros termos, o advento do capital monetário (o capital como mercadoria) socializa, torna expandido e crescentemente social – nacional e internacionalmente – o processo de extração de mais-valor. Ao mesmo tempo, obscurece e nega a base social sobre a qual se ergue.

Alguns comentários provocativos

Chegados a esse ponto, destacaremos alguns aspectos, problematizando temas contemporâneos. Em primeiro lugar, a ênfase marxiana no papel socializador do capital monetário. Essa socialização incide sobre o próprio capital, que expropria outros capitalistas e reconcentra sem cessar a propriedade, tornando-a algo de abstrato, como pura potência social em busca de extração de mais-valor. Ela impulsiona também a socialização da dinâmica capitalista pelo impulso à extensão do capital funcionante e, portanto, das bases sociais de extração de mais-valor. Sua escala impõe sem cessar o aprofundamento da divisão social do trabalho, tanto vertical quanto horizontalmente (32).

Com relação à socialização do próprio capital, três elementos contraditórios e interligados se destacam: a tensão entre distintos setores do capital; o caráter fusional entre os dois processos (o monetário e o funcionante) e a autonomização monopólica da propriedade de recursos sociais sob forma monetária exigindo imperiosamente sua valorização. Em inícios do século XX, Lênin assinalou a fusão monopolista entre o capital bancário e o capital industrial, mostrando a intensificação da exportação de capitais e, portanto, das relações sociais capitalistas. Identificava a forma histórica, precisa, pela qual se construía no âmbito internacional o predomínio do capital monetário, naquele momento – os conglomerados e os sistemas de participação – e as características políticas que generalizava – a partilha política do mundo, a colonização, a xenofobia.

Em nosso período, quase um século de acumulação imperialista depois da obra de Lênin, duas dimensões do capital monetário parecem acoplar-se: na primeira, a autonomização do capital monetário no plano internacional permite aprofundar sua atuação como impulsionador de atividades funcionantes, impondo a extração de sobretrabalho (mais-valor) sob diversificadas formas jurídicas para o assalariamento. A escala monopólica da propriedade do capital monetário estimula simultaneamente a concentração e a dispersão do capital funcionante. As grandes corporações, em número reduzido, convivem e nutrem (através de subcontratações) uma rede capilar de modalidades mais ou menos formais de exploração dos trabalhadores. Tais corporações, em grande parte propriedade de um punhado de capitalistas monetários monopólicos consorciados (holdings), são por vezes divididas em setores concorrentes. Inúmeras atividades, aparentemente distantes dos grandes monopólios e dispersas numa miríade de “empreendedorismos”, ligam-se ao capital monetário sob vínculos diversificados de financiamento. Nesse âmbito, a atividade extratora de mais-valia é instada a se realizar a partir de empreendimentos de portes variados. Sua extrema diversificação atravessa toda a malha social, renovando expropriações, aprofundando a divisão vertical do trabalho e impondo novas formas de subordinação do trabalho ao capital. A isso poderíamos denominar de difusão de relações sociais capitalistas em todos os níveis da vida social, impondo formas de extração de mais-valor muitas vezes sob condições extremas a trabalhadores tendencialmente desprovidos de direitos. Ao mesmo tempo, a grande propriedade se condensa, através da intensificação de fusões e aquisições empresariais, concentrando-se em alguns proprietários monopólicos internacionais gigantescas massas de capitais.

A aproximação entre essas duas formas (dispersão e concentração) configuraria uma característica peculiar, muito próxima daquela apresentada por Marx: massas concentradas de capital monetário (direcionadas através de instituições de cunho bancário ou outras, genericamente denominadas como financeiras) impulsionam a concorrência capitalista, a qual se abate prioritariamente sobre os próprios trabalhadores. Mas a concorrência atinge também empresas de porte multinacional, as quais, mantida a concentração da propriedade, são repartidas e segmentadas de maneira a impor a concorrência entre setores até então internos, designando-se novos e competitivos capitalistas funcionantes (gestores); espraia-se sobre um amálgama de pequenos empreendimentos (porém ativamente funcionantes), disseminando-os como vasos comunicantes. A atuação do capital-mercadoria se estende para o conjunto das atividades de subsistência na vida social. Transforma assim igualmente grandes e pequenos empreendedores em ‘capital funcionante’, em extratores de mais-valia.

A concorrência se acirra, mas a contradição entre os diferentes tipos de capital vem sendo até aqui diluída através da incorporação seletiva de grandes e médios funcionantes à propriedade genérica do capital monetário, ainda que de forma subalterna. Como exemplo, gerenciamentos de segundo e terceiro escalão são remunerados através de pacotes de ações; fundos de pensão são lastreados em poupança de trabalhadores, cujos dirigentes integram-se às formas de extração de mais-valor de maneira “autonomizada”, característica do capital monetário, como copartícipes subalternos.

Isso nos leva ao segundo ponto a problematizar, a generalização de uma certa subjetividade ligada ao predomínio do capital monetário em escala internacional. O relativo distanciamento produzido pela autonomização do capital monetário frente à multiplicidade exponencial de atividades concretas de trabalho que fomenta e das quais se nutre aparece como total descolamento entre a riqueza e o trabalho, como o fim do trabalho. A evidência imediata partilhada pelos setores monopólicos aparece como se fosse a expressão da vida real, apresentando uma visão parcial e unilateral como se representasse o todo. Uma extrema valorização do trabalho intelectual (ou cognitivo) se dissemina, obscurecendo os processos reais, como a intensificação da divisão social internacional do trabalho e das expropriações, como a conversão de parcelas crescentes da população mundial em pura disponibilidade de força de trabalho, o acirramento da concorrência entre os trabalhadores em todos os níveis de qualificação e em todos os segmentos do mercado de trabalho. Ora, como compreender a enorme adesão a essa ficção?

O capital monetário se apresenta socialmente como um capital acima dos demais, que não “suja” as mãos no processo produtivo, tarefa que impõe aos agentes funcionantes, quer estes sejam ou não proprietários diretos dos meios de produção, é bom lembrar. Ao capital monetário – e a seus agentes diretos, concentradores de tais capitais ou, para usar um termo atual, alavancadores da acumulação – fica reservada a tarefa especificamente intelectual de comparar rentabilidades internacionais, calculadas em termos de tempo de retorno, taxa de retorno e de grau de risco. Comparar, calcular e investir aparecem como as únicas atividades concretas de tais agentes. Mesmo a penalização dos agentes funcionantes – a ameaça de retirada dos investimentos – que se demonstrem incapazes de intensificar a concorrência entre os trabalhadores até o seu ponto mais extremo, tanto pela extensão da jornada quanto pela intensidade da extração de mais-valor, aparece como pura decisão intelectual, “racional”, expressão direta de cálculos de custos e benefícios descarnados da vida real, materialmente humana, que produz tais valores (33). Representam para si próprios um mundo no qual a remuneração do capital ocorre unicamente sob forma monetária, composto de enorme variedade de “cestas” de aplicações internacionais apresentadas sob forma abstrata, reduzidas a puro cálculo. De fato, para os megaproprietários do capital monetário e para seus agentes, o trabalho deixou de cumprir o papel central, uma vez que dele estão distanciados física e intelectualmente. Isso conduz alguns críticos a supor que tal magnitude de capitais se reproduz unicamente através do saque e da especulação (predação), desconsiderando-se os efeitos reais produzidos por essas massas concentradas de capitais (inclusive os fictícios).

As representações imediatas não devem, entretanto, obscurecer que a extensão da expropriação traduz um aprofundamento das relações sociais propriamente capitalistas, não se reduzindo ao saque – que incorpora e expande – mas também na expansão de atividades de produção de valor sob modalidades as mais diversas.

Ainda no terreno das representações que configuram uma percepção do mundo dominante e amplamente difundida, essa distância ou autonomização do capital monetário permite apresentar as atividades exigidas para a sua realização como majoritariamente de dois tipos: como “limpas” ou como puramente especulativas. As duas formas se completam, a rigor, uma vez que nas duas representações, o processo social de extração de valor parece desaparecer. A “limpeza” deriva do fato de que, ao distanciar-se da produção direta, não se envolve imediatamente com as formas brutais de extração de valor que intensifica. No máximo, identifica-se às formas mais científicas, às atividades de pesquisa (que também impulsiona), considerando-as como formas “elevadas” do espírito, descoladas da extensa rede da divisão internacional do trabalho que permite sua efetiva aplicação à produção e à valorização do próprio capital. A contradição entre seu papel de fomentador da concorrência mais exacerbada e violenta entre os trabalhadores e o aspecto autonomizado da pura remuneração monetária não é eliminável. A aparente “limpeza” do capital monetário é exatamente a forma pela qual “branqueia” ou “limpa” recursos sob forma monetária procedentes de qualquer tipo de atividade – tráficos, máfias, etc. Estes, aliás, são também impulsionados pelo capital monetário, uma vez que se adaptam perfeitamente ao processo de concentração monetário, ao qual se agregam todas as formas de extorsão, saque ou extração de sobretrabalho. O capital monetário atua “limpando” qualquer modalidade de retorno monetário, uma vez que sua função social para o conjunto do processo de reprodução do capital é a de concentrar todas as formas monetárias disponíveis para direcioná-las para sua valorização, em especial a extração de mais-valor. Está totalmente embebido no processo de extração de mais-valor e só pode existir caso impulsione sem cessar essa extração, mas apresenta-se como puro cálculo, distante do mundo real. Nega, pois a existência do trabalho – e, sobretudo, de trabalhadores concretos – ainda que exacerbe como jamais a extração do sobretrabalho.

Chegamos assim ao terceiro ponto, que concerne a especulação. A questão é muito complexa e merece maiores desdobramentos ulteriores. Aqui nos limitaremos a alguns comentários preliminares. Marx não apenas dedica o capítulo 25 ao crescimento do capital fictício e ao impulso especulativo que implica, como retoma o tema no capítulo 27. Neste, contrapõe a expansão da expropriação à especulação. Enfatiza o crescimento das múltiplas formas de expropriação social, apontando seu caráter de socialização das relações capitalistas, socialização que incide sobre o próprio capital (que se torna socialmente abstraído, generalizado) e sobre o conjunto da vida social; ao mesmo tempo aponta para o aventureirismo contido no enorme distanciamento entre os grandes proprietários e o processo imediato de produção; na ausência de responsabilidade dos ‘administradores’ de capital monetário, que reúnem gigantescas massas de recursos a valorizar de qualquer forma.

“Essa expropriação constitui o ponto de partida do modo de produção capitalista; sua realização é seu objetivo; trata-se em última instância de expropriar todos os indivíduos de seus meios de produção, os quais, com o desenvolvimento da produção social, deixam de ser meios da produção privada e produtos da produção privada e só podem ser meios de produção nas mãos dos produtores associados, por conseguinte sua propriedade social, como já são seu produto social. Essa expropriação apresenta-se, porém, no interior do próprio sistema capitalista como figura antitética, como apropriação da propriedade social por poucos; e o crédito dá a esses poucos cada vez mais o caráter de aventureiros puros” (34).

Ora, a existência e mesmo a potencialização das atividades especulativas e fraudulentas geradas pelo predomínio social do capital monetário não significam, entretanto, que a base real – a das expropriações, da extração de mais-valor e da socialização do trabalho – desapareça ou reduza sua importância. Ao contrário, não apenas segue sendo o solo social da acumulação capitalista, como a concentração desses capitais permitem aprofundar e generalizar as expropriações, libertando os trabalhadores unicamente para o capital. Assim, a ênfase exacerbada na suposição de que a característica principal do predomínio do capital monetário seria sua vocação para a pura especulação arrisca-se a esquecer as relações sociais fundamentais sobre as quais continua se apoiando, expandindo-as e aprofundando-as. Corre assim o risco de cegar-se diante das modalidades de extração de mais-valor, ofuscada pelos gigantescos montantes especulativos. A enorme massa de trabalho morto acumulado pelos megaproprietários contemporâneos precisa valorizar-se a toda velocidade e com altas taxas de exploração, em busca do lucro médio internacional, ainda que sob as modalidades mais dramáticas de subalternização dos trabalhadores.

O fenômeno das crises, em suas diversas configurações (superprodução, subconsumo, especulação, destruição de forças produtivas), permanece um elemento constitutivo da dinâmica capitalista. A cada dia são mais graves e mais agudas as crises sociais e o sofrimento que infligem a gigantescas massas populares, mas isso não significa de maneira mecânica que a dinâmica capitalista seja posta em xeque por tais crises. Dramaticamente, entretanto, crises sociais podem devastar conquistas dos trabalhadores e reassentar as bases para o aprofundamento da exploração, ainda que ao custo de enorme destruição social (apodrecimento das relações sociais, devastação da natureza, etc.).

O descompasso entre capital fictício e capital efetivamente respaldado no processo de reprodução ampliada do valor se aprofunda com o predomínio do capital monetário, o que vem fomentando recorrentes crises capitalistas na atualidade. Também aqui a correlação entre crises e processos de transformação social não deve ser estabelecida de maneira mecânica pois, em diversas circunstâncias, a queima ou a destruição de excedentes ou de capitais especulativos recompôs a dinâmica intercapitalista, aprofundando a expropriação de grandes massas de trabalhadores (35).

Permanece fundamental, portanto, identificar – como aponta Marx – as bases sociais de expropriação que aprofundam e generalizam, agora em escala planetária, a extração do sobretrabalho. As contradições efetivas dessa socialização truncada da vida social promovida pelo capital é o chão histórico que permite avançar na luta contra o próprio capitalismo. É preciso pois atentar para as condições de vida objetivas, isto é as formas sociais diversificadas a partir das quais se drena sobretrabalho para nutrir o capital, mas também para as formas subjetivas, formas de consciência social subalternas que vêm sendo plasmadas sob o predomínio do capital monetário. Se a atuação de sujeitos revolucionários – a organização da classe trabalhadora – parece excessivamente discreta, o mesmo não se pode dizer das formas de atuação sociais, políticas e ideológicas dos setores patronais e empresariais, assim como dos grandes megaproprietários do capital monetário, sob suas diversas formas (empresas e investidores). Essas são, parece-me, as condições concretas nas quais se travam na atualidade as lutas de classes.

(*) Professora visitante da EPSJV-Fiocruz; docente do Programa de Pós-Graduação em História da UFF, pesquisadora do CNPq e docente da Escola Nacional Florestan Fernandes, MST. Agradeço à cuidadosa leitura de João Quartim de Moraes, cujos comentários auxiliaram uma revisão geral do artigo. A responsabilidade pelos eventuais percalços do texto segue, entretanto, minha. Esta é uma versão ligeiramente aumentada de texto publicado originalmente na revista CRÍTICA MARXISTA, n. 26. Rio de Janeiro, Revan, 2008.

NOTAS:

(1) Interrogações sobre o capitalismo na atualidade – trabalho e capital, economia e política. In: Galvão, A. et al. Marxismo e socialismo no século 21. Campinas, Ed. da Unicamp/IFCH: Xamã, 2005, pp. 167-196.

(2) Lenin, V. L’impérialisme, stade suprême du capitalisme. Paris, Moscou; Ed. Sociales/ d. du Progrès, 1975.

(3) Cf. Fontes, V. Lênin, O Imperialismo e nosso desafio contemporâneo. Encaminhado para publicação no periódico Marx Ahora, La Habana, Cuba, 2007.

(4) Sobre o assunto, é obrigatória a leitura do artigo de François Chesnais, La préeminence de la finance. In: Séminaire d’Etudes Marxistes. La finance capitaliste. Paris, PUF/Actuel Marx, 2006. Apresentando pesquisa em andamento, Chesnais retoma a leitura de toda a Seção V do Livro III d’O Capital e das Théories sur la plus-value, além de incorporar o livro de Hilferding sobre o imperialismo. Trata-se de artigo de extrema erudição e que esmiúça diversas questões também abordadas no presente artigo. A direção central do artigo de Chesnais, entretanto, é algo distinta da aqui empreendida, pois enfatiza sobremaneira o papel do capital fictício e do fetichismo. Chesnais apresenta ainda excelente e documentado histórico da concentração da finança capitalista mundial contemporânea.

(5) Marx, K. O capital. 2a. ed., São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1985. Livro I, vol. 1, A mercadoria, p. 53-4. Grifos meus, VF.

(6) Marx, K. Op. cit., Capítulo 24 – A assim chamada acumulação primitiva. L. I, vol. 2, p. 261.

(7) Marx, K. O Capital. SP, Nova Cultural, 1985. A assim chamada acumulação primitiva. Livro I, Tomo. 2, p. 262, negritos no original, KM; itálicos, VF.

(8) Id., ibid. grifos, VF.

(9) Em latim no original: Tantae molis erat, expressão de Virgílio.

(10) Id., p. 292.

(11) Id., p. 292.

(12) Id., p. 293.

(13) Id., p. 294.

(14) Nos dias atuais a expropriação original (camponesa) persiste e ainda encontra fronteiras de expansão. Subsistem grandes massas de trabalhadores rurais não plenamente expropriados, como na China, na Índia ou na América Latina.

(15) A análise concreta das expropriações contemporâneas merece maiores desdobramentos, ultrapassando os limites de um artigo. A esse respeito, ver Harvey, D. O novo imperialismo. São Paulo, Loyola, 2004, que designa o fenômeno de “capitalismo por espoliação”. Harvey considera ocorrer uma duplicidade no capitalismo, com um retrocesso a uma forma primitiva (predatória) ao lado de suas formas já estabilizadas ou normalizadas, em leitura algo distinta da aqui proposta.

(16) Cf. Meszáros, I. Para além do capital. Rumo a uma teoria da transição Campinas/São Paulo, Unicamp/Boitempo, 2002, esp. Cap. 15 – A taxa de utilização decrescente no capitalismo, pp. 634-74.

(17) Marx, K. O capital. Livro III, t. 1, v. IV. 2a. ed., SP, Nova Cultural, 1985-86, pp. 255-268.

(18) Cf. Marx, Théories de la Plus-Value. Paris, Ed. Sociales, 1978 e Grundrisse, Paris, Ed. Anthopos, 1968 (coleção 10/18). Ver também Rosdolsky, R. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio, EDUERJ/Contraponto, 2001, esp. cap. 27, Fragmentos sobre o juro e o crédito, e Chesnais, op. cit., passim.

(19) Marx, K. O capital, L. III, op. cit., p. 256.

(20) Id., ibid., p. 257

(21) Rosdolsky, R. op. cit., p. 324.

(22) Marx, id., ver especialmente os caps. XIX (O capital de comércio de dinheiro), pp. 237-242 e o XX (Considerações históricas sobre o capital comercial), pp. 243-252.

(23) Rosdolsky, R. op. cit, p. 323.

(24) Cf. Marx, K., op. cit., L III, capítulo 25. Crédito e capital fictício e, especialmente, cap. 27, O papel do crédito na produção capitalista.

(25) Marx, id., p. 238.

(26) Id., ibid., p. 303. Grifos meus, VF.

(27) “A integração da finança e da indústria pelo viés do crédito portador de juro gera o ‘capital financeiro’, enquanto as ‘as transações das instituições financeiras engendram sua forma específica própria de capital. Guttmann, R. How Credit-Money Shapes the Economy. M. E. Sharte, Armonk, N.York, 1994, p. 41. Apud. Chesnais, F. op. cit., p. 83.

(28) Id., ibid., p. 266. Grifos meus, VF.

(29) Id., ibid., p. 264. Grifos meus, VF.

(30) Id., ibid., p. 262. Negritos do autor, Marx; itálicos meus, VF.

(31) Id., ibid., p. 267. Grifos meus, VF.

(32) Por divisão horizontal do trabalho estamos considerando a cooperação imediata entre os trabalhadores num dado processo produtivo, cooperação que vem sendo a cada dia menos perceptível aos próprios trabalhadores, pela extensão de procedimentos de subcontratação, resultante da multiplicação de capitalistas funcionantes em diferentes momentos do mesmo processo produtivo. Por divisão vertical do trabalho, estamos designando a cada vez mais extensa cadeia hierárquica que diferencia os diversos processos produtivos entre si (graus de complexidade), cujos trabalhadores são instados a não mais se reconhecerem como integrantes de uma divisão social do trabalho que os abrange a todos, tamanhas as desigualdades internas, ocultando o caráter de cooperação que essa divisão expressa do ponto de vista do conjunto social.

(33) Vale ver, por exemplo, os filmes O corte, de Costa-Gravas (2005), e O grande chefe, de Lars von Trier (2006), nos quais setores intermediários tornam-se truculentos para subsistir enquanto tal sob concorrência acirrada.

(34) Marx, K. O capital, op. cit., p. 334. Grifos meus, VF.

(35) Marx, op. cit., Seção III (Lei da queda da taxa de lucro), em especial suas causas contrariantes e contratendências. A esse respeito, vale ler Mandel, E. “El Capital” – Cien anos de controvérsias em torno a la obra de Karl Marx, 2ª ed., México, Siglo XXI, 1998.

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