Ensaio sobre a cegueira: indústria 4.0 na América Latina

imagemImagem: Popcreto para um Popcrítico (Waldemar Cordeiro)

Diógenes Moura Breda*

Tradução de João Victor de Oliveira

A visão positiva sobre a função da ciência e da técnica na modernidade está tão arraigada entre nós que logo que se anunciam novos descobrimentos que podem revolucionar as formas como produzimos, comerciamos e nos comunicamos, somos torpedeados por uma centena de análises cujo ponto de partida é a pergunta: “Como aproveitar as potencialidades e diminuir os riscos inerentes aos avanços da técnica moderna?”. Por debaixo desta pergunta subjaz a noção de desenvolvimento neutro e unilateral da ciência e da tecnologia (C&T), de onde derivam todas as interpretações que dão à ciência e à técnica a qualidade de “motores da história”. Nesta transmutação, que coloca em segundo plano o verdadeiro sujeito da técnica, o ser humano, se bloqueia a possibilidade de uma formação crítica sobre o problema[1].

Na segunda década deste século, o debate sobre a C&T ganhou nova visibilidade mundial com a emergência dos conceitos de quarta revolução industrial e indústria 4.0. Mas distante da problemática classificação temporal das revoluções tecnológicas, a quarta revolução industrial se caracteriza por um conjunto de novas tecnologias capazes de articular, em tempo real e de forma automática, uma quantidade incalculável de informações produzidas por pessoas e aparatos (computadores, máquinas, robôs, meios de transporte, câmeras, sensores etc.) [2]. Estamos frente a novos circuitos integrados, de dimensões manométricas e muito mais potentes devido à utilização de materiais supercondutores; sensores novos e mais econômicos, permitindo a aquisição de novos dados do mundo material, novos softwares de ampla capacidade de processamento da informação, a inteligência artificial –já de uso corrente-, a computação de Big Data, a possibilidade da superação da computação binária com a computação quântica, e uma capacidade inédita de manipulação e transformação de seres vivos para fins empresariais.

As advertências iniciais deste ensaio são o ponto de partida para colocar a América Latina no contexto das transformações tecnológicas apontadas. Do nosso ponto de vista, a interpretação das novas tecnologias como o produto de um desenvolvimento científico neutro e unilateral, oculta interesses muito concretos que movem a investigação, o desenvolvimento e a produção de ciência e de tecnologia. Estamos falando de uma ciência e uma técnica essencialmente capitalista, subsumidas realmente – quanto a sua forma e conteúdo – à reprodução ampliada do capital, a qual é coordenada a partir dos países imperialistas, no centro do sistema[3].

A preocupação por trazer à luz afirmações que parecem óbvias tem seu motivo: desmontar as falsas esperanças dos que veem na quarta revolução industrial uma “janela de oportunidade” para a inserção mais vantajosa da América Latina dentro do capitalismo global. Atualmente abundam as propostas que prometem retirar os países da região da defasagem tecnológica até o status de novas Coréia do Sul e novas Chinas na suposta economia mundial de conhecimento. Parte-se do suposto de que aqui, sob as condições do capitalismo periférico e dependente, é possível um projeto soberano de desenvolvimento científico e tecnológico, bastando, para tal, haver vontade política e uma correlação de forças favoráveis.

Mas e se não? E se o lugar que esta região do planeta ocupa no capitalismo contemporâneo demanda um desenvolvimento próprio em ciência e tecnologia? E se as classes dominantes, que são as que controlam os estados latino-americanos, não se interessam por um desenvolvimento deste tipo? Em geral, estas perguntas nunca se fazem, o que resulta em uma quantidade enorme de tinta derramada para construção de propostas que quiçá sequer são executáveis no contexto do capitalismo dependente, o único capitalismo possível na América Latina.

A organização mundial da ciência e da tecnologia

O ponto de partida para qualquer discussão em torno da C&T é reconhecer a existência de uma organização mundial do trabalho científico e tecnológico que concentra em todos os países centrais as etapas estratégicas, de vanguarda, da produção de conhecimento das tecnologias, enquanto as regiões subdesenvolvidas ou dependentes ocupam o lugar de consumidores de tecnologia importada ou produtores de etapas secundárias. A concentração é brutal, como mostram os informas da UNESCO e da Fundação Nacional de Ciências dos EUA[4]. Segundo os informes, América do Norte, União Europeia, China, Japão e Coréia do Sul concentraram, em 2015, 82% dos gastos – públicos e privados – mundiais em pesquisa e desenvolvimento (P&D). São cerca de 30 países que controlam quase a totalidade da produção da C&T no mundo. Estados Unidos foram responsáveis por 26% dos gastos (US$ 502 bilhões). China, como resultado de um projeto de potência mundial que segue em curso, tem visto crescer sua participação em P&D mundial de 9% em 2006 para 21% em 2015, totalizando nesse ano um gasto de US$ 410 bilhões. Seguem o Japão, com 9% (US$ 170 bilhões), e a Alemanha, com 8% dos gastos mundiais em P&D (US$ 113 bilhões).

América Latina e o Caribe aparecem em 2015 com apenas 3,5% dos gastos mundiais em P&D. Os países da região gastaram, juntos, naquele ano US$ 67 bilhões, 13% do orçamento estadunidense. Há nestes gastos uma clara liderança do Brasil, responsável por mais da metade deles em 2014 (56% na região, 2,3% dos gastos mundiais em 2014), momento em que o gasto em P&D chegou a seu auge no país. Argentina participou, neste mesmo ano, com 7,3% dos gastos em P&D na região, 0,27% dos gastos mundiais. México, por sua vez, participou com 17% do gasto da região e 0,61% dos gastos mundiais. Uruguai aparece com 0,01% dos gastos mundiais, e 0,35% dos gastos da região. Ainda faltam, até o momento, dados oficiais para o período 2014-2017, mas tudo indica que a participação da América Latina, sobretudo em países que aprofundaram suas políticas neoliberais nos últimos 4 anos, tem caído consideravelmente, em um contexto de permanentes elevações dos gastos em nível mundial, que saltaram de US$ 1,1 bilhão a US$ 1,9 bilhão entre 2006 e 2015, um incremento de 72%[5].

Outro dado importante é o das patentes, mostrando que o resultado da concentração dos gastos em P&D gera o monopólio de seus frutos nos mesmos países. O Tratado de Cooperação de Patentes (PCT) registrou em 2016 que, juntos, indivíduos ou empresas dos EUA, Japão, China, Coréia do Sul, Alemanha e França foram responsáveis por 80,2% dos pedidos mundiais de patentes. Empresas ou indivíduos dos Estados Unidos requereram o registro de 53.318 patentes de invenção; da China, foram 25.834 pedidos de patentes; empresas e indivíduos de Japão 42.653; da Coréia do Sul, 13.148; e da Alemanha 17.746; enquanto indivíduos ou empresas argentinas, brasileiras e mexicanas requereram, neste mesmo ano, 57, 662 e 302 patentes, respectivamente [6].

Mais importante são os pedidos de patentes nos setores estratégicos da indústria 4.0. No setor de fármacos, em 2015, o PCT acusou o pedido de 4.636 patentes por parte de residentes nos EUA, 998 do Japão, 852 da China, e apenas 4 da Argentina, 27 do México e 35 do Brasil. Esta defasagem implica, no caso brasileiro, a importação de 80% de todos os insumos farmacológicos ativos utilizados no país. No setor de nanotecnologia, o PCT acusou o pedido de 232 patentes por parte de residentes nos EUA, 97 do Japão, 37 da China, nenhum da Argentina, 5 do México e 5 do Brasil. Finalmente, nos setores da tecnologia da informação (TI), tão aclamados como um dos setores capazes de dinamizar a economia dos países periféricos, o PCT acusou o pedido de 22.215 patentes por parte de residentes nos EUA, 16.988 do Japão, 15.818 da China, 6.009 da Coréia do Sul e 15 da Argentina, 54 do México e 121 do Brasil.

Para além dos dados de concentração, é importante destacar que os líderes desses países se construíram com a participação decisiva de seus estados nacionais. Se o discurso hegemônico da inovação trata atualmente de glorificar a figura do empreendedor, e que, de fato, as empresas são responsáveis por 65% dos gastos e P&D entre os países desenvolvidos [7], o certo é que sem a participação dos estados imperialistas, a disputa por hegemonia econômica (para não falar da hegemonia militar, totalmente dependente dos gastos públicos) ficariam impossibilitadas [8]. Como mostra Mariana Mazzucato, por exemplo, no caso dos EUA, sem a iniciativa do Estado, os principais avanços técnicos da chamada terceira revolução industrial, e suas empresas símbolos, como Microsoft, Intel e Apple, simplesmente não existiriam [9].

A leitura dos informes enviados semestralmente ao presidente dos Estados Unidos pelo Conselho de Ciência e Tecnologia da presidência é esclarecedora neste sentido. No informe de janeiro de 2017, chamado “Garantindo a liderança de longo prazo dos EUA no setor de Semicondutores”, os conselheiros, eleitos entre os principais cientistas e CEO’s de transacionais estadunidenses afirmam:

A inovação em semicondutores enfrenta grandes desafios nos EUA. A inovação em semicondutores está diminuindo e enfrenta limites tecnológicos fundamentais. (…) Neste momento, um movimento preocupante da China para reconstruir este mercado a seu favor (…) ameaça a competitividade da indústria dos EUA, e os benefícios que produz. (…) A indústria global de semicondutores nunca tem sido um mercado livre: está baseada sobre a ciência, a atual é guiada, em parte substancial, pelo governo e pela academia (…) e é objeto frequente das políticas industriais nacionais. [10]

Agora, bem mais importantes que os dados acima pontuados são as interpretações que derivam deles. A enorme concentração da C&T e de seus frutos configura um panorama, no presente, da tendência do capitalismo central em constituir e reatualizar periodicamente a divisão internacional do trabalho (DIT) a seu favor. O que aqui chamamos de tecnologia não é outra coisa senão conteúdo técnico desta DIT, sua base material, o esqueleto do autômato global que organiza a produção e distribuição mundial de mais-valor.

A razão do controle da tecnologia de ponta pelos países centrais e suas empresas são claras: tais setores são os nós estratégicos [11] do capitalismo mundial e seu domínio garante não apenas a imposição do conteúdo técnico aos demais setores da produção, sendo que lhes dá a prerrogativa da apropriação de lucros extraordinários por diversas formas: a) permite-lhes coordenar as cadeias globais de valor, de onde transferem valor das etapas situadas nos países periféricos, com trabalho superexplorado, para si mesmas [12]; b) devido ao monopólio que exercem sobre a tecnologia de ponta, podem praticar preços de monopólio e/ou exigir o pagamento de royalties pelo uso da tecnologia; c) devido à maior produtividade em relação aos demais setores da economia, transferem para si parte do mais-valor produzido pelos setores menos produtivos da economia mundial [13].

Esta necessidade de controle da produção estratégica se volta como uma exigência nos períodos de crise mundial, como a que vivemos atualmente. No contexto de uma larga depressão da economia capitalista mundial [14], esta disputa está marcada por uma necessidade impostergável de recuperação da taxa de ganância nos países imperialistas. Neste sentido, ademais as formas diretas e indiretas de transferências de valor dos países periféricas até o centro do sistema e do açambarcamento dos recursos naturais globais, o que está em jogo na quarta revolução industrial é a redefinição da geografia e das modalidades da hegemonia econômica mundial, ao redor dos novos setores estratégicos da nano e biotecnologia, da Inteligência Artificial, da computação quântica, dos materiais supercondutores, etc.

No panorama que esboçamos acima, de disputa hegemônica e maior concentração no campo da C&T, não parece haver nada próximo de uma “nova janela de oportunidades” para os países dependentes, como querem alguns analistas. Ao contrário, se apresenta o reforço dos laços de dependência.

Modernização capitalista e dependência tecnológica no século XXi

O chamado ao “catching up” (decolar) tecnológico da América Latina é uma constante entre organismos oficiais como a CEPAL e em grande parte da literatura sobre inovação. Além das comparações absurdas com países como Coréia do Sul e China – cujas particularidades impedem a reprodução de seu progresso tecnológico em outros contextos -, o que se propõe, em geral, e reconhecendo a enorme defasagem da região nesta matéria, é que a ação estatal pode criar uma cultura inovadora e ocultá-la neste empresariado nacional e na comunidade científica, criando, assim, as tão ansiadas sinergias entre Estado, universidade e empresa. Foi este discurso que articulou as políticas científicas dos governos latino-americanos nas últimas décadas e, apesar das subvenções ao empresariado, as leis que permitiram a apropriação do conhecimento criado nas universidades pelas empresas privadas, os incentivos públicos ao “empreendedorismo”, as inversões em C&T pública e privada, etc., não ocorreu nada próximo a uma mudança de posição da região na hierarquia mundial da ciência e tecnologia.

Ao contrário, o que se observou foi uma especialização regressiva nas economias da região. Brasil, o país que mais investiu em C&T nas últimas décadas, observou o desmonte de seu parque industrial, o aumento da importação de bens de consumo e bens de capital (máquinas e equipamentos), o aumento no pagamento de royalties e serviços técnicos devido à utilização de tecnologia estrangeira, que alcançou os US$ 20 bilhões em 2015. E tudo isso apesar do aumento do orçamento para a C&T. Como pontuamos mais acima, Brasil chega à segunda década do século XXI como um país irrelevante no jogo mundial da C&T. No que toca aos demais países da região, a situação é mais grave ainda. Por estas razões, é lícito afirmar que, nas primeiras décadas do século XX, a América Latina observou um aprofundamento de sua dependência.

Tal afirmação não desconhece a existência de cientistas qualificados e pesquisas de ponta na América Latina, mas neste caso rege o princípio de que a soma das partes (laboratórios e pesquisadores) não resulta necessariamente em uma política científica que responda às necessidades do país. Melhor, na ausência de uma estrutura científica e tecnológica claramente destinada a superar o subdesenvolvimento e a dependência, as iniciativas de ponta terminam operando como enclaves articulados com as grandes empresas, laboratórios e universidades estrangeiras.

Quais são as explicações para um desempenho tão medíocre do Brasil e do resto da América Latina em matéria de C&T ? Por um lado, as teorias da inovação enfatizam a ausência de uma cultura inovadora no empresariado nacional e a excessiva burocracia nas universidades e no Estado; por outro, setores da esquerda responsabilizam a comunidade científica por cooptar a política científica a seus interesses corporativos. Cremos que ambas explicações são incapazes de chegar ao centro da questão.

Em nossa opinião, as explicações mais frutíferas devem ser buscadas no funcionamento do capitalismo dependente latino-americano e em suas transformações nas últimas décadas. Desde as décadas de 70 e 80 do século XX, com a crise dos projetos industrializadores na região, o capitalismo latino-americano passou por importantes modificações. A crise dos anos 80 não só enterrou o processo de industrialização e abriu as portas ao neoliberalismo, como também reconfigurou a subordinação das burguesias latino-americanas às imposições das potências imperialistas, relação que se vinha construindo durante toda segunda metade do século XX.

A década dos anos 80 marca a recuperação dos países centrais da crise mundial. Há abundante literatura sobre os mecanismos que tiraram esses países da crise – desregulação financeira, segmentação produtiva, ofensiva contra a classe trabalhadora mundial etc. -, mas o elemento central para o tema que nos ocupa são as novas tecnologias que emergiram nesta década para dar forma ao paradigma baseado na microeletrônica e na informática [15], paradigma a partir do qual se organizou uma nova divisão internacional do trabalho. Esta reorganização da reprodução do capital em nível mundial reatualizou a velha oposição entre países centrais e produtores de bens industriais e países dependentes e produtores de matérias primas e alimentos, mas também introduziu a segmentação da produção industrial através das cadeias globais de valor, cuja lógica, reconhecida pelos especialistas no tema, é a concentração das etapas estratégicas da produção nos países centrais e o deslocamento dos segmentos não estratégicos e, em geral, intensivos em mão de obra, aos países dependentes [16].

Justamente no momento da crise e da incapacidade de aprofundar sua industrialização, cujo evento paradigmático foi a crise da dívida externa, o continente latino-americano é chamado a reordenar sua participação na divisão internacional do trabalho. Neste contexto, a crise latino-americana pôs a burguesia interna em uma encruzilhada: aceitar um papel ainda mais subordinado reclamado pelas potências imperialistas no capitalismo mundial ou romper com o imperialismo e proceder um desenvolvimento capitalista próprio. O caminho eleito foi a da aceitação das imposições e o abandono do projeto industrializador latino-americano. Esta escolha da classe dominante pôde se impor por conta das perseguições e desarmes exitosos, nas décadas anteriores, das esquerdas que lutavam por construir um projeto socialista na região [17]. Assim, se pavimentou o caminho para a penetração completa do capital transnacional e do neoliberalismo como substrato ideológico da reconfiguração das economias latino-americanas na década de 80.

Com a convivência das classes dominantes latino-americanas, a reestruturação do capitalismo central, a partir dos anos 80, fundado no paradigma eletroinformático, atribuiu à América Latina as seguintes funções: a) produtora de etapas inferiores – não estratégicas – das cadeiras produtivas globais, fundamentalmente para a exportação; b) produtora de alimentos e matérias primas estratégicas para a exportação; c) espaço de valorização do capital fictício, principalmente por meio da dívida pública. Não é difícil concluir que tais funções significaram, em grande medida, uma regressão econômica em relação ao padrão anterior.

As razões da aceitação das burguesias latino-americanas a este papel se explicam pelo mecanismo de funcionamento do capitalismo na região: ao manter a reprodução do capital baseada na compressão do mercado interno, sem a elevação sistemática da produtividade do trabalho – isto é, em um capitalismo fundado na superexploração da força de trabalho – não há outra alternativa aos países da região a não ser tentar manter um equilíbrio débil voltando-se ao mercado mundial, construindo um padrão de reprodução do capital orientado a cumprir aquelas funções, um padrão exportador de especialização produtiva [18].

Cada país do continente articulou este novo padrão de reprodução em função de suas especificidades. No caso dos países de maior desenvolvimento capitalista relativo, como México e Brasil, a transformação do padrão de reprodução se efetivou sob uma reconfiguração do pacto de classes, que teve a partir de então à frente o capital financeiro estrangeiro e nacional, o grande capital agrário e a grande burguesia industrial monopólica. Junto ao grande capital vinculado ao mercado mundial, o grande capital monopólico vinculado ao mercado interno – caso das empresas de telecomunicações, alimentos e grandes redes comerciais – também teve seu êxito neste período, às custas do esmagamento dos setores médios e pequenos do que restava de uma burguesia nacional.

Além das conhecidas consequências do neoliberalismo na América Latina, queremos pontuar que o novo padrão significou um reforço da dependência tecnológica, com a intensificação da subordinação aos setores estratégicos da produção mundial. A abertura das economias da região aos fluxos internacionais do capital rompeu os encadeamentos produtivos manufatureiros, como os da indústria de autopeças. Também eliminou a capacidade de lograr uma política industrial soberana, definir e proteger setores estratégicos. Desta maneira e posto que na etapa atual da economia mundial a política industrial tem que ser, por sua vez, uma política de ciência e tecnologia, a nova posição da América Latina na divisão internacional do trabalho cancelou as possibilidades de um desenvolvimento científico e tecnológico autônomo nos marcos do capitalismo dependente, não apenas pela pressão dos países centrais, e muito menos por falta de visão de nossos burguesias, senão porque a posição da América Latina na economia mundial contemporânea é funcional ao pacto de classes vigente. Em outras palavras, à grande burguesia latino-americana não interessa romper com o seu lugar na DIT porque se beneficia dela.

Os grandes prejudicados neste panorama são as maiorias da região: os trabalhadores das cidades, levados ao desemprego estrutural ou a um regime de trabalho mais intenso e em condições precárias; os trabalhadores do campo e as comunidades originárias, golpeados pelas políticas de livre comércio e pela expansão da fronteira agrícola de exportação e dos megaprojetos mineiros e energéticos; a burguesia média e pequena, debilitada pela abertura externa e pela quebra dos encadeamentos produtivos existentes durante o padrão de reprodução anterior; a juventude pobre, que, não tendo perspectiva alguma de ascensão social por meio do estudo, ingressa precocemente na informalidade ou em atividades ilegais; mas também a juventude universitária, principalmente os egressos de carreiras científicas e tecnológicas (matemática, biologia, física, química e engenharias) que, frente à perspectiva de passar toda vida manejando processos científicos secundários (muitas vezes importados) em condições de trabalho precarizadas, optam por abandonar seu país como única alternativa de ter uma carreira profissional exitosa (a denominada “fuga de cérebros”).

Mais além da política científica

O que tentamos mostrar brevemente neste ensaio é que a defasagem dos países latino-americanos em matéria de Ciência e Tecnologia tem um caráter estrutural cujo fundamento é a dependência e a superexploração da força de trabalho – as marcas do desenvolvimento capitalista na América Latina. A dependência tecnológica é uma das caras da dependência e demonstra a incapacidade da região em definir seu futuro em âmbito científico, tecnológico e produtivo. Esta conclusão é claramente visível no momento atual, momento de ofensiva das classes dominantes da região sobre os trabalhadores e sobre o que sobrou do estado latino-americano, mas também vale para as experiências dos chamados governos progressistas que, apesar do aumentos nos pressupostos em C&T – casos de Brasil e Argentina – ampliaram a dependência tecnológica da região. Novas universidades públicas foram criadas, aumentaram os investimentos públicos em C&T, houve projetos importantes de inovação como o caso do submarino nuclear no Brasil, o número de artigos científicos produzidos aumentou de forma consistente, etc. Tudo isso é certo, mas não houve nada parecido a um projeto nacional de ciência e tecnologia que buscasse romper os laços de dependência.

A expansão quantitativa das universidade e da produção científica fortaleceu um modelo de universidade alheio às necessidades nacionais, uma universidade cujos critérios de êxito em ciência se medem pelas revistas científicas dos países centrais, as que definem os temas prioritários, os métodos e os critérios de avaliação. Neste esquema se situa a maioria dos cientistas latino-americanos, que creem estar contribuindo para o progresso de uma ciência universal que nunca existiu, em uma atividade já denunciada nos anos 60 por Óscar Varsavsky em seu livro Ciências, Política e Cientificismo. Do ponto de vista geral, isto é, da reprodução social como um todo, é absurdo pensar que iniciativas isoladas ou um simples aumento do pressuposto possam romper com o mecanismo estabelecido para a produção mundial de C&T. Melhor, o alimentam.

Hoje, mais do que nunca, o pacto de classes em vigor, com a hegemonia do capital financeiro, do capital transnacional e do capital monopólico nacional, é a razão central que impede o desenvolvimento tecnológico e científico dos países dependentes latino-americanos. Todas as advertências para aproveitar as oportunidades da quarta revolução industrial são quimeras, frente a um pacto de classes desta natureza, pois à classe dominante latino-americana não lhe interessa criar uma estrutura de C&T soberana, esforço que implicaria afrontar seus próprios interesses.

Uma política de C&T que tivesse como guia superar a dependência tecnológica teria, por exemplo, que mudar a política do comércio exterior, protegendo os setores estratégicos nacionais incipientes; revisar o pagamento da dívida pública para realocar esses recursos a universidades e institutos de pesquisa; limitar as remessas de lucros transnacionais, assim como limitar sua operação em território nacional; investir na qualificação da força do trabalho e levar sua remuneração consideravelmente, buscando criar um mercado interno forte. Fica claro que o atual pacto de classes não aponta para este caminho. O máximo que se pode conseguir neste cenário atual é criar pequenas ilhas de inovação – como algumas empresas de software, alguns pequenos laboratórios de biotecnologia – que não possuem nenhuma capacidade de dinamizar o sistema científico e tecnológico e que, em grande parte dos casos, são absorvidas pelas transnacionais logo que demonstram a capacidade de inserção no mercado.

Portanto, o caminho para a superação da dependência tecnológica é mesmo o caminho da superação do capitalismo dependente, o único capitalismo possível nesta parte do mundo. Frente a burguesias que apoiam e acumulam em função da miséria das maiorias, apenas estas últimas podem advogar uma soberania política, econômica e tecnológica no continente, soberania que necessariamente apontará para um horizonte anticapitalista. Não se trata de uma mudança de gestão estatal, muito menos de valores empresariais, e sim de uma modificação nas classes que exercem o poder nestes países. Assim, desse ponto de vista de política científica, a possibilidade de um projeto soberano vinculado às necessidades da maioria da população apenas será executável se aliado a processos de transformações estruturais da sociedade em todos os âmbitos da vida social. Este tema, tão claro para a geração do pensamento latino-americano em C&T nos anos 60 e 70, atualmente é, em grande medida, desconsiderado ou tratado como utópico. Mas é a única saída factível.

Obviamente, uma ciência rebelde não deverá ter como meta realizar o catching up tecnológico, sem adequar a produção de conhecimentos às necessidades dos povos, pensar em outros estilos tecnológicos [19]. Está claro que a América Latina terá de construir capacidades próprias em setores de ponta da tecnologia, como em maquinaria industrial e transporte, na informática e computação, no setor energético, biotecnológico, etc. Não nos faltam capacidades para tal. Mas, ao mesmo tempo, esta adequação sociotécnica terá que estabelecer uma mudança de prioridades na produção das ditas tecnologias e de outras que não terá que ver com os interesses das classes dominantes de nossos países e dos países imperialistas – estes últimos que, com suas fundações, bolsas, revistas científicas e programas de intercâmbio, direcionaram desde sempre a pesquisa na América Latina – e sim com as necessidades mais urgentes da população em termos de saúde, educação, moradia, transporte, cultura, produção de alimentos, preservação do meio ambiente, etc.

Neste caminho, a ciência moderna também deverá dialogar com os conhecimentos dos povos originários e das classes populares do continente, cujo acervo tecnológico não poderá brindar soluções muito eficazes do ponto de vista da reprodução da vida nestas latitudes. Tal mudança de perspectiva passa, da mesma maneira, por uma modificação do paradigma na produção das ciências, em que, junto ao laboratório, devem figurar a experiência e a participação do povo no projeto e na execução de alternativas políticas, econômicas e tecnológicas.

Já é hora de abandonar as ilusões sobre a capacidade redentora da política científica na América Latina.

Notas

[1] Pinto, Álvaro Vieira (2005). O conceito de tecnologia. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Contraponto.

[2] El término cuarta revolución industrial o industria 4.0 ganó visibilidad en 2016, durante la 46ª Reunión Anual del Foro Económico Mundial de Davos, Suiza. Las ideas generales de la interpretación dominante sobre el tema están en el livro The Fourth Industrial Revolution de Klaus Schwab, fundador e ejecutivo do Foro Económico Mundial.

[3] Sobre los conceptos de subsunción formal y real, véase: Marx, Karl (1990). El Capital. Libro I, capítulo VI, inédito: resultados del proceso inmediato de producción. México: Siglo Veintiuno Editores.

[4] Véase: NSF, Nacional Science Foundation. Science and Engineering Indicators 2018 y UNESCO (2016). Science Report: towards 2030.

[5] Los datos arriba ocultan diferencias cualitativas importantes en la composición de los gastos en I&D de cada país. Es decir, además del abismo que existe en términos de presupuesto entre los países centrales y América Latina, la región dedica un porcentaje mucho menor a sectores como ingeniería, ciencias médicas y ciencias naturales en comparación con los países centrales.

[6] WIPO, Word Intelectual Property Organization. World Intelectual Property Indicators. Suiza, 2017

[7] OCDE. OECD Science, Technology and Industry Scoreboard 2017. Washington: OECD Press.

[8] Ceceña, Ana Esther; Barreda, Andrés (1995). “La producción estratégica como sustento de la hegemonía mundial. Aproximación metodológica”. En: Producción estratégica y hegemonía mundial. México: Siglo Veintiuno Editores.

[9] Mazzucato, Mariana (2015). The entrepreneurial state: debunking public vs. private sector myths. Londres: Anthem Press.

[10] PCAST, President’s Council of Advisors on Science and Technology. Report to the President: Ensuring Long-Term U.S. Leadership in Semiconductors. White House, 2017.

[11] Ceceña, Ana Esther; Barreda, Andrés (1995), op. cit.

[12] Para una interpretación marxista de las cadenas globales de valor y, en particular, para la explicación del mecanismo de transferencia de valor a partir de la superexplotación de la fuerza de trabajo, véase: Smith, John (2016). Imperialism in the Twenty-First Century: Globalization, Super-Exploitation, and Capitalism’s Final Crisis. New York: Monthly Review Press, NYU Press.

[13] El análisis de cada uno de esos mecanismos, algunos evidentes, otros invisibles a la economía política burguesa, exigiría un largo desarrollo. Para los objetivos de este ensayo, basta con establecer la relación entre el esfuerzo de Estados y empresas por el dominio de los sectores estratégicos de la producción capitalista contemporánea y las ganancias extraordinarias resultantes de dicha competencia.

[14] Roberts, Michael(2016). The Long Depression. How It Happened, Why It Happened, and What Happens Next. Chicago: Haymarket Books.

[15] Ceceña, Ana Esther; Palma, Leticia y Amador, Edgar (1995). “La electroinformática: núcleo y vanguardia del desarrollo de las fuerzas productivas”. En: Producción estratégica y hegemonía mundial. México: Siglo Veintiuno Editores.

[16] Marini, Ruy Mauro (2000). “Proceso y tendencias de la globalización capitalista” En: La teoría social latinoamericana. Tomo IV: Cuestiones contemporáneas. México: Ediciones El Caballito.

[17] “Las políticas contrainsurgentes aplicadas en América Latina entre las décadas de 1960 y 1980 fueron mucho más que medidas para hacer frente a la emergencia de brotes guerrilleros o de movimientos y gobiernos populares. Eran políticas de disciplinamiento y control social que alentaban la construcción de nuevas modalidades de reproducción del capital y de un nuevo Estado neoligárquico, botín de unos cuantos grupos económicos poderosos”. Osorio, Jaime (2009). Explotación redoblada y actualidad de la revolución. México: Itaca, UAM-X, p. 195.

[18] Osorio, Jaime (2004). Crítica de la economía vulgar: reproducción del capital y dependencia, 1ª ed. México: Universidad Autónoma de Zacatecas, M. Á. Porrúa, p. 101.

[19] Varsavsky, Oscar (2013). Estilos tecnológicos : propuestas para la selección de tecnologias bajo racionalidad socialista. Buenos Aires : Biblioteca Nacional, 2013

Diógenes Moura Breda é economista pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor em Estudos Latinoamericanos na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM).

Fonte:
https://www.hemisferioizquierdo.uy/single-post/2018/06/17/Ensayo-sobre-la-ceguera-la-industria-40-en-Am%C3%A9rica-Latina